Nasceu
Portugal
(Domingos Amaral)
Episódio Nº 32
Mem deu o seu aval com um
aceno de cabeça. A mulher percebeu que ele estava demasiado impressionado para
se conseguir aproximar do pai, por isso disse:
- Deixai estar, eu faço isso.
O rapaz viu-a rodar o corpo
do pai de forma a que ficasse com as costas no chão, e endireitar as pernas e
os braços, juntando as primeiras e alinhando os segundos junto ao tronco.
De seguida viu-a pegar na
cabeça com cuidado e colocá-la junto ao pescoço, de onde fora abrupt amente separada, colocando duas pedras, uma de
cada lado da cabeça, para que esta não rolasse.
Terminado, este meticuloso
trabalho, a velha perguntou:
- Quereis rezar, dizer umas palavras?
Mem continuava incapaz de
falar. A mulher entendeu as suas limitações e desatou a deitar por cima do
corpo do pai um pó que trazia num saco, enquanto murmurava uma ladainha
incompreensível, numa língua que Mem desconhecia, talvez um cantar do Levante.
Quando acabou este ritual,
questionou-o:
- Sabes porque está tão
escuro e o sol ficou castanho?
Explicou que a Lua passava
em frente do Sol, roubando-lhe os raios e a luz. E declarou que era melhor só
queimarem o pai quando o Sol voltasse, pois os deuses não recebiam bem os
mortos durante aquele milagre, achavam que eles eram capazes de roubar a luz e
temiam-nos.
Com um suspiro, Mem
concordou, era melhor os deuses não terem medo do pai, queria que ele ficasse
em paz para toda a eternidade.
Por isso, esperaram que o
Sol regressasse, o que aconteceu passado algum tempo, tendo o dia voltado a ser
o que era e as estrelas desaparecido.
Nesse momento a mulher
executou um gesto rápido e o corpo do pai de Mem pegou fogo imediatamente, e
ficaram a vê-lo arder.
Depois, a mulher despediu-se
de Mem dizendo que tinha de ir queimar os outros corpos. Indicou-lhe onde
estavam as suas roupas, à beira rio, e antes de partir sugeriu que devia
dirigir-se a Coimbra, havia lá gente que lhe daria trabalho.
- Sois filho de um homem
almocreve, um dia sereis como ele.
Parece que ainda o ouço
perguntar espantado:
- Lourenço Viegas, eu nesse dia só me
interrogava! Como conhecia ela o meu pai? Sabia que era almocreve!
Mem disse-me que ainda
pensou em segui-la, mas não o fez, pois queria ficar junto do pai até ao fim.
Horas mais tarde, quando o
corpo já era um monte de cinzas e ele já não tinha mais lágrimas nos olhos, Mem
seguiu o conselho da velha mulher e dirigiu-se à cidade.
No dia em que os três recordámos esta
história, Zaida sorriu-nos e disse:
- Foi a bruxa que nos ligou
uns aos outros.
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