sexta-feira, setembro 11, 2015

Iluminado pelo fogo do inferno
Tocaia Grande
(Jorge Amado)

Episódio Nº 335




















Na solidão da cela, em noites indormidas de prece e cilício, flagelava-se com o azorrague para domar o corpo, livrá-lo das seduções do mundo, da idolatria e da luxúria.

Ornato único na parede nua, a estampa do Coração de Jesus, o sangue escorrendo do sagrado coração devido aos pecados cometidos contra a glória de Deus, ganhava vida, o sangue se espalhava, salpicando coxas e ventre, nádegas e tronco do monge atormentado.

Jesus lhe ordenava partir a combater o pecado a ferro e fogo, até extirpá-lo por completo.

Na opinião de frei Zygmunt não possuía a Santa Madre Igreja santo de maior virtude, mais digno de honraria e devoção do que Torquemada, o inquisidor-mor de Espanha e Portugal: não fora canonizado, injustiça que não o fazia menos venerável.

Capitão das hostes da virtude e da doutrina, do exército de Deus, sob sua bandeira inscreveu-se frei Zygmunt e partiu para a luta sem quartel contra os hereges, os depravados e os anarquistas.

Sustentava-o a fúria dos iluminados. Iluminado pelo fogo do inferno.

Durante a fatigante travessia, de arruado em arruado, os dois padres haviam tomado conhecimento da fama de Tocaia Grande, negra, sinistra.

Sendo o mais próspero lugarejo do vale, nele campeavam a impiedade e a desordem. Ao que se ouvia contar, entre o gentio sem religião e sem lei, sem dogmas e sem códigos -  pagãos, amigados, jagunços, marafonas -, existiam negros macumbeiros e árabes maometanos.

O nome do lugar já dizia tudo. Traduzido em termos bíblicos, Tocaia Grande significava Sodoma e Gomorra reunidas na danação dos sete pecados capitais.

2

Na esteira dos frades, acompanhante e concorrente, palmilhava a lama, em demanda de Tocaia Grande, o popular sanfoneiro e troca-pernas Pedro Cigano.

 Onde se anunciava a presença de monges e padres em santa missão de apostolado: prédica, batismo, casamento, confissão, conjura e expiação, chegava, na mesma batida, parte integrante do grandioso evento e ao mesmo tempo sua negação, a sanfona de Pedro Cigano.

Para abrilhantar a temporada de forrós com que o povo do lugar iria comemorar batizados e casamentos.

De tanto freqüentar santas missões, Pedro Cigano seria capaz de servir de sacristão e ajudar na celebração da missa. Apesar disso, frei Zygmunt, ao avistá-lo atento às palavras candentes do sermão, na primeira fila dos devotos, sentia as tripas se revolverem nas fanáticas entranhas: via a figura de Satanás, em carne e osso, o riso de deboche no rosto alvar.

Muito sofre um missionário em época de desvario e decadência dos costumes, desactivado o Santo Ofício, abolida a santa escravidão.

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