Iluminado pelo fogo do inferno |
Tocaia Grande
(Jorge Amado)
Episódio Nº 335
Na
solidão da cela, em noites indormidas de prece e cilício, flagelava-se com o
azorrague para domar o corpo, livrá-lo das seduções do mundo, da idolatria e da
luxúria.
Ornato único na parede nua, a estampa do
Coração de Jesus, o sangue escorrendo do sagrado coração devido aos pecados cometidos
contra a glória de Deus, ganhava vida, o sangue se espalhava, salpicando coxas
e ventre, nádegas e tronco do monge atormentado.
Jesus lhe ordenava partir a combater o
pecado a ferro e fogo, até extirpá-lo por completo.
Na opinião de frei Zygmunt não possuía a
Santa Madre Igreja santo de maior virtude, mais digno de honraria e devoção do
que Torquemada, o inqui sidor-mor de
Espanha e Portugal: não fora canonizado, injustiça que não o fazia menos
venerável.
Capitão das hostes da virtude e da
doutrina, do exército de Deus, sob sua bandeira inscreveu-se frei Zygmunt e
partiu para a luta sem quartel contra os hereges, os depravados e os anarqui stas.
Sustentava-o a fúria dos iluminados.
Iluminado pelo fogo do inferno.
Durante a fatigante travessia, de arruado
em arruado, os dois padres haviam tomado conhecimento da fama de Tocaia Grande,
negra, sinistra.
Sendo o mais próspero lugarejo do vale, nele
campeavam a impiedade e a desordem. Ao que se ouvia contar, entre o gentio sem
religião e sem lei, sem dogmas e sem códigos - pagãos, amigados, jagunços, marafonas -,
existiam negros macumbeiros e árabes maometanos.
O nome do lugar já dizia tudo. Traduzido
em termos bíblicos, Tocaia Grande significava Sodoma e Gomorra reunidas na
danação dos sete pecados capitais.
2
Na esteira dos frades, acompanhante e
concorrente, palmilhava a lama, em demanda de Tocaia Grande, o popular
sanfoneiro e troca-pernas Pedro Cigano.
Onde
se anunciava a presença de monges e padres em santa missão de apostolado:
prédica, batismo, casamento, confissão, conjura e expiação, chegava, na mesma batida,
parte integrante do grandioso evento e ao mesmo tempo sua negação, a sanfona de
Pedro Cigano.
Para abrilhantar a temporada de forrós com
que o povo do lugar iria comemorar batizados e casamentos.
De tanto freqüentar santas missões, Pedro
Cigano seria capaz de servir de sacristão e ajudar na celebração da missa.
Apesar disso, frei Zygmunt, ao avistá-lo atento às palavras candentes do sermão,
na primeira fila dos devotos, sentia as tripas se revolverem nas fanáticas
entranhas: via a figura de Satanás, em carne e osso, o riso de deboche no rosto
alvar.
Muito sofre um missionário em época de
desvario e decadência dos costumes, desactivado o Santo Ofício, abolida a santa
escravidão.
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