(Jorge Amado)
EPISÓDIO Nº 46
DA INSÓNIA NO LEITO DE DONA EUFROSINA, POVOADA DE EMOÇÕES,
SENTIMENTOS E MEMÓRIAS
Na primeira noite, vencida pelo cansaço da viagem da marinete, rude prova, das
emoções da chegada, após retirar a maqui agem,
Tieta arriara na cama e dormira de um só sono.
Há quantos anos não se recolhia às nove horas da noite? Ainda mocinha, já
atravessava a madrugada nos escondidos do Agreste.
Na segunda noite, porém, quando por volta das onze as últimas visitas
despedem-se, Tieta prossegue acesa, sem sono.
Na porta, ela e Leonora renovam
os votos de êxito a Ascânio na missão cívica a conduzi-lo a Paulo Afonso.
- Vá e vença… - deseja Tieta.
- E volte…- acrescenta Leonora.
Aminthas declara-se pessimista sobre os resultados: luz Hidrelétrica? Bobagem,
nem pensar. Terra esquecida dos políticos, município de eleitorado ralo, sem
prestígio, sem um chefe capaz de falar grosso, de influir na directoria, de
manobrar junto do Presidente da Empresa e das autoridades federais, Agreste está
destinada a continuar com escassa luz de motor – enquanto – o motor ainda
funciona.
Depois, voltaremos aos fifós e placas, prevê, em alarmante presságio.
Ascânio merece todos os louvores, sujeito rectado, não se dá por vencido. Mas
não tem prestígio político, força junto aos grandes, essa a verdade. Não é
mesmo Ascânio? De facto, concorda o Secretário da Prefeitura. Nem por isso
deixará de tentar.
Me perdoem senhoras e senhores mas eu sou contra essa luz de Paulo Afonso,
forte, brilhante, iluminando as ruas a noite inteira – proclama Osnar – um
desastre para os pobres caçadores nocturnos, vai afugentar a caça…
- Que caça? Quis saber Leonora.
- Descaração de Osnar, minha filha. Com caça ele quer dizer mulher, esses
debochados ficam procurando mulher nas ruas…
- A caça já é vasqueira, imagine com essa iluminação toda…
Em risos se separam. Barbozinha declamando farrapos de poemas de amor de sua
autoria, compostos todos, segundo diz, para uma única musa, adivinhem quem?
Tieta eleva os olhos para os céus, põe a mão sobre o coração, suspira, gaiata.
Perdem-se as visitas na escuridão. Despede-se também Leonora:
- Estou morta de sono. Boa noite, Mãezinha, estou adorando.
- Ainda bem. Tinha medo que você se chateasse.
No quarto, Tieta, abre a janela sobre o beco, espia a noite, o céu de estrelas.
Nos tempos de moça sabia o nome de todas elas e gostava de fitá-las na hora do
amor, quando leito era o capim da beira do rio. Durante quantas noites pulara
aquela janela para encontrar Lucas?
Apaga o lampião, deita-se, cadê o sono? Ali está ela, outra vez em Agreste, em
busca da moleca Tieta, pastora de cabras. Andara longo caminho, pisara pedras e
cardos, rompera os pés e o coração, antes de começar a subir, a ganhar, juntar
e aplicar dinheiro sob a orientação de Filipe, a ter propriedades e a ser
senhora do seu nariz.
Durante todos esses vinte e seis anos, imaginara a volta
a Agreste, sonhara com esse dia.
Recorda o embaraço do desembarque, aflora-lhe aos lábios um sorriso: a família
de luto cerrado, ela ostentando blusa e turbante vermelhos, Leonora em delavê
azul, esposa e filha sem coração, desnaturadas.
Ao chegar em casa, dissera em
brusca explicação: para mim luto se carrega é no peito, coisa íntima; a dor da
ausência não se exibe, nem a saudade; assim eu penso mas cada um deve pensar
como qui ser e agir de acordo.
Fim de papo, Perpétua. Zé Esteves apoiara em virulenta língua de sotaque: muito
bem dito, minha filha, luto não passa de hipocrisia; eu só botei essa roupa
preta para não ser tachado de cabra ruim, mas se nem conheci o teu finado
porque havia de pôr luto? Só por que era rico?
Fosse ou não da boca para fora,
a própria Perpétua concordara: cada qual pensa à sua maneira e age de acordo. A
dela era o respeito aos costumes antigos; vestida de negro por que com a morte
do Major – Deus o tenha em sua guarda! – perdera o gosto pela vida.
Mas não
criticava Antonieta, respeitando seu ponto de vista; não sendo nenhuma
ignorante sabe que em São
Paulo ninguém liga para esses hábitos do passado.
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