terça-feira, maio 03, 2016

Tieta do Agrest

(Jorge Amado)


EPISÓDIO Nº 136

























DA TROVA POPULAR E DA POESIA ERUDITA



Ao vê-la estendida sobre o lençol, as feias queimaduras, pernas e braços em carne viva, os cabelos chamuscados, Ricardo engoliu o soluço mas não pôde impedir a lágrima. No sal da lágrima havia sabor de orgulho.

Quando, obedecendo às ordens do doutor Caio Vilasboas, todos se retiraram para que Tieta pudesse repousar, o sobrinho ficou de sentinela. Ela lhe disse:


- Venha e dê um beijo.

Se o assunto da luz da Hidrelétrica, cujos fios e postes se aproximavam velozmente da cidade, fizera de Antonieta Esteves Cantarelli cidadã benemérita, figura ímpar entre os filhos de Agreste, o salvamento da velha Miquelina, abandonada no fogo pela neta e lá deixada à espera da morte pelos curiosos aglomerados diante do incêndio, elevara-a à categoria de santa. 

Entronizada no altar-mor da Matriz, ao lado da Senhora Sant’Ana como previra Modesto Pires, um dos primeiros a visitá-la no dia seguinte.

Os poetas acertaram sempre, deles é o dom divinatório. Gregório Eustáquio de Matos Barbosa, o vate De Matos Barbosa, versejador elogiado nas colunas dos jornais da Bahia, reconhecido nos cafés de literatos da cidade da capital, apaixonado antigo de Tieta, compôs uma ode em seu louvor, exaltando-lhe a beleza e a coragem, beleza deslumbrante, indómita coragem; em versos de rigor clássico e rimas ricas a comparou àquela guerreira e santa que um dia tomou das armas, salvou a França e enfrentou as chamas da fogueira com um sorriso nos lábios.

Joana d’Arc do sertão, assim escreveu, impávida vencedora das trevas e do fogo, desafiando a morte, resgatando a vida.

Por coincidência também o trovador Claudinor das Virgens, ao inspirar-se no incêndio para compor versos de cordel, canonizara-a em rimas pobres:

Da neta escutou o rogo
Trouxe a velhinha nos braços.
Vinha vestida de fogo:
Pelos dons do coração
Pela beleza dos traços
Santa Tieta do sertão

Durante o dia inteiro, na porta, uma romaria de viventes querendo notícias, mandando recados, abraços de amizade. À cabeceira da cama, ao lado de Leonora, o poeta Barbozinho, o ex-boa pinta, murcho e reumático mas fiel à paixão da mocidade, declamando a ode consagradora. Aos pés do leito, junto a Elisa, o sobrinho Ricardo, robusto e terno, ansiando beijar cada queimadura, pedir perdão dos maus pensamentos, tê-la nos braços. Peto trouxera-lhe uma flor colhida nos matos.

Na cama de casal do doutor Fulgêncio e de dona Eufrosina, na lembrança imperecível de Lucas, ouvindo o rumor do povo na praça a lhe pronunciar o nome, entre o gasto poeta e o ardente seminarista, Tieta, santa pelos dons do coração e pela beleza dos traços, impávida Joana d’Arc do sertão, navega em mar de amor.

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