O Nosso rei Fundador
- Esse que vós dizeis que tendes nunca mais porá os pés neste
claustro. Agora, se não me quereis dar um, desaparecei-me da vista que eu me
encarrego de fazê-lo.
Desvaneceram-se os cónegos nas sombras do claustro, mais
fugitivos uns que outros. Entretanto, viu D. Afonso Henriques avançar para ele
um negro de sotaina.
- Pst, pst, olha cá, és clérigo? Como te chamas?
- Çuleima.
Sabes celebrar os ofícios? Lês o latinório?
- Como água. Não há dois em Espanha que me vençam…
- Pois serás Bispo, D. Çuleima. Vai-te paramentar para me
dizeres missa!...
- Falta-me a coroa, senhor, isto é, ordens de presbítero…
- Eu dou-tas. Eu te ordeno padre, e pois que padre estás,
eu te ordeno bispo. Agora anda-me depressinha se não queres que te arranque a
pele. De hoje em diante, és o prelado desta diocese.
E assim foi. Encolhidos como láparos que sentem o podengo, os
frades, cónegos e mais eclesiásticos seculares dobraram a cerviz ao jugo do
preto, produto híbrido mosárabe, provavelmente.
Há que estranhar? Não há. Naqueles tempos, do homem leigo ao
ordinando não havia mais que um escalão. Subia-se com um pé. Não era precisa nenhuma
preparação especial.
Bastava a ciência infundida por Deus. Se cortava letra redonda,
então improvisava-se um padre, um arcipreste, um príncipe da Igreja em três
tempos. Çuleima, pois, não significa nenhum atentado à lógica e muito menos ao
bom senso.
Quando em Roma se soube do expediente fantástico de D. Afonso
Henriques, rompeu um coro de invectivas: - Que bárbaro! Que hereje! Que alarve!
Despacharam-lhe um cardeal, entendido na catequese, com
imunidades de legado e grande plenipotenciário, a ensinar ao ignorantão
os artigos fundamentais da fé cristã. Junto com a cartilha levava o temeroso
azorrague do interdito.
Soube-se em Coimbra da missão evangélica do cardeal-legado,
porquanto vinha pela corte dos reis cristãos e notícias destas correm como o
vento. Foram dizê-lo a D. Afonso Henriques.
- Senhor, por toda a parte onde passa, dá beija-mão e
enchem-no de honras…
- Que venha. O que fiz, fiz. Não me arrependo. Lá quanto a
eu beijar-lhe a mão em minha casa, seja ele cardeal ou papa, que tente, e nem
Deus nem Santa Maria o livram de apanhar uma espadeirada que lhe corto o braço
pelo cotovelo.
Advertido das intenções de el-rei quando chegou a Coimbra, e
tanto mais que ele não viera recebê-lo, o cardeal-legado cobrou grande susto.
Recalcando suas apreensões, dirigiu-se a Alcáçova onde o rei
pousava.
- Então a que vindes, cardeal amigo? Trazeis-me dinheiro
para custear a guerra que, noite e dia, ando há tantos anos ando a fazer aos
mouros? Se trazeis, desatai a bolsa, se não tratai de rodar e volver por onde
viestes.
- Venho de mando do Santo Padre ensinar-vos a fé de
Cristo…
- Ensinar-me a mim a fé de Cristo…? Então o Credo que cá
se usa não é o mesmo que em Roma? Ouvide lá…
E D. Afonso Henriques recitou-lhe tim-tim por tim-tim o símbolo
dos apóstolos tal como vigorava por toda a cristandade.
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