terça-feira, agosto 23, 2011

Nenhum deus é falso

Os acontecimentos ocorridos na capital de Espanha a propósito da visita do Papa Bento XVI, com manifestações contra e a favor da realização de um encontro mundial de jovens católicos, recordam-me os fantasmas das velhas lutas entre a Espanha clerical e a anticlerical.


No actual contexto político e económico, recordam-me também (não sei porquê) a divisão entre a Europa da Reforma e a da Contra Reforma; entre a Europa da crise que (só) atinge os países católicos (Irlanda, Portugal, Grécia, Espanha e Itália) e a Europa protestante, endinheirada e do panmercantilismo.


Recordam-me, por fim (ainda sem saber bem porquê), as divisões dentro da própria Igreja Católica, entre uma igreja de proibições, fechada nos seus dogmas milenares e aqueloutra de libertação e aberta ao Homem, à sociedade e à modernidade. Entre a Igreja vaticanista, do poder, da ostentação e da soberba e uma outra de amor ao próximo, voltada para os problemas do ser humano, para as suas angústias e necessidades concretas e solidária com as lutas pela dignidade humana. Recordam-me a igreja herdeira da Inquisição, de perseguidores, dos Bórgias e de patriarcas que degrada a mulher na sua condição humana e a igreja dos perseguidos que desperta e fecunda algumas das aspirações mais elevadas do ser humano, herdeira de António Vieira e Bartolomeu de Las Casas. Há, de facto, uma igreja que degrada e outra que dignifica a pessoa humana; há, em suma, uma igreja que escraviza e outra que liberta.


A Igreja Católica tem, como qualquer confissão religiosa, direito às suas realizações, sejam actos de culto, sejam apenas manifestações que mostrem o seu poder de mobilização social. Todo o crente tem, obviamente, direito de dar testemunho da sua fé, de exprimir livremente aquilo em que acredita, mas, em público, deve fazê-lo com moderação e respeito pelas convicções de outros crentes ou de não crentes.


A Igreja ocupa como nenhuma outra instituição o espaço do debate público com as suas realizações, as suas propostas, os seus dogmas e as suas verdades. E quem ocupa o espaço do debate público tem de aceitar as críticas que essa exposição suscita. Quem se manifesta em público tem de aceitar contramanifestações desde que umas e outras sejam pacíficas.

A hierarquia da Igreja Católica assume posturas rigidamente vinculantes sobre questões controversas da actualidade que dizem respeito a toda a sociedade e não apenas aos católicos. Ela discrimina as mulheres, condena o uso do preservativo, proíbe o aborto, combate a investigação genética, opõe-se ao casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, tal como outrora fora contra o uso da pílula e até contra a vacinação.

Por outro lado, a aproximação demasiada entre a Igreja e o Estado gera anticlericalismo na sociedade o qual radicaliza o clericalismo. O passado demonstra que ambos se alimentam um do outro numa espiral irracional de fanatismo.


Por mim, há muito que aprendi as virtudes da tolerância e do respeito pelos crentes de todas as religiões. Tenho por um católico o mesmo respeito que por qualquer outro cristão, seja ele qual for, que é, aliás, o mesmo que nutro por um judeu ou por um muçulmano. E o respeito que tenho pelos fiéis de uma religião monoteísta ou revelada é igual ao que sinto por qualquer outro crente de outra qualquer religião desde as mais primitivas às mais sofisticadas da actualidade.


A História demonstra-nos que o homem é capaz dos piores crimes e dos mais elevados actos de generosidade e de solidariedade; e mostra-nos também que, muitas vezes, os melhores homens são capazes das piores atrocidades desde que tenham uma boa causa para isso. E não há melhor causa do que a glorificação de um Deus verdadeiro ou a exaltação de um ideal de libertação. Só as grandes causas podem fanatizar o ser humano. Alguns dos crimes mais hediondos da história da humanidade foram praticados em nome de religiões de amor ao próximo e algumas das piores formas de servidão foram justificadas por ideologias de libertação.

Na humildade do meu ateísmo descobri, há muito, que todos os deuses são verdadeiros.




António Marinho Pinto - Bastonário da Ordem dos Advogados

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