segunda-feira, agosto 03, 2015

Decorridos três dias do enterro de Merência
TOCAIA GRANDE
(Jorge Amado)




Episódio Nº 302


















Com as delicadas mãos arteiras, nas horas vagas, com papel e flecha fabricava arraias e as dava de presente aos meninos para que as empinassem no céu do povoado.

Vinha apreciar as habilidades de seus protegidos e batia palmas aplaudindo a altura do vôo e as evoluções. Desejara um filho, ah, como o desejara! Mas tinha a matriz virada, o oveiro seco.

Na falta de filho mimava moleques, criava bichos. Quem não a recordava com a água pela cintura na manhã da cheia, a jibóia enroscada em seu busto?

Se Zé Luiz passava das medidas, na cachaça ou no puteiro, bêbado ou enrabichado, Merência se zangava e chegava-lhe a roupa ao corpo sem que ele reagisse.

Ia buscá-lo, chumbado, na Baixa dos Sapos e o reconduzia ao lar aos xingos e bofetões. Nos enterros cabia-lhe recitar a oração da despedida.

Ah! teria sido sentinela de muito riso e de muita compunção!

Fora enterrada às carreiras como os demais consumidos pela febre. Para que os miasmas não se alastrassem no ar penetrando no sangue dos viventes.

Devota, uma capacidade em catecismo e reza, Merência teria gostado de acompanhamento com ladainhas e louvados. Tão merecedora, na hora extrema tudo lhe faltou: velório, carpideiras, preces.

Não teve sequer o coro das putas a dizer amém. A febre matava depressa, ainda mais depressa o defunto era levado ao cemitério na avexação do medo.

No atabalhoado corre-corre, mal deu tempo para Fadul engrolar um padre-nosso em árabe.


12


Decorridos três dias do enterro de Merencia sem que se soubesse de novos casos de sentença e danação no arraial deserto de movimento e de alegria, Pedro Cigano aparecera na oficina de Castor Abduim em missão de vida e alegria.

Para discutir a idéia de um fovoco: era preciso esquecer os dias negros, suster o choro, apagar a memória da febre, por cobro às comemorações da morte: os mortos só ressuscitam por ocasião do juízo final.

Em seguida à festa do barracão, Pedro Cigano havia desaparecido de Tocaia Grande e certa gentinha linguaruda se aproveitou para baixar-lhe a lenha.

Capara o gato com tal pressa e tamanho medo de bater a caçoleta, a ponto de haver abandonado o fole no armazém do turco: na hora da pândega era presença obrigatória, os cinco dedos estendidos, para cobrar os caraminguás da música, a boca escancarada para beber por conta dos mãos-abertas.

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