Decorridos três dias do enterro de Merência |
TOCAIA GRANDE
(Jorge Amado)
Episódio Nº 302
Com as delicadas mãos arteiras, nas horas
vagas, com papel e flecha fabricava arraias e as dava de presente aos meninos para
que as empinassem no céu do povoado.
Vinha apreciar as habilidades de seus
protegidos e batia palmas aplaudindo a altura do vôo e as evoluções. Desejara
um filho, ah, como o desejara! Mas tinha a matriz virada, o oveiro seco.
Na falta de filho mimava moleques, criava
bichos. Quem não a recordava com a água pela cintura na manhã da cheia, a
jibóia enroscada em seu busto?
Se Zé Luiz passava das medidas, na cachaça
ou no puteiro, bêbado ou enrabichado, Merência se zangava e chegava-lhe a roupa
ao corpo sem que ele reagisse.
Ia buscá-lo, chumbado, na Baixa dos Sapos
e o reconduzia ao lar aos xingos e bofetões. Nos enterros cabia-lhe recitar a
oração da despedida.
Ah! teria sido sentinela de muito riso e
de muita compunção!
Fora enterrada às carreiras como os demais
consumidos pela febre. Para que os miasmas não se alastrassem no ar penetrando no
sangue dos viventes.
Devota, uma capacidade em catecismo e reza,
Merência teria gostado de acompanhamento com ladainhas e louvados. Tão
merecedora, na hora extrema tudo lhe faltou: velório, carpideiras, preces.
Não teve sequer o coro das putas a dizer amém.
A febre matava depressa, ainda mais depressa o defunto era levado ao cemitério
na avexação do medo.
No atabalhoado corre-corre, mal deu tempo
para Fadul engrolar um padre-nosso em árabe.
12
Decorridos três dias do enterro de Merencia sem que se soubesse de novos casos de sentença e danação no arraial deserto de movimento
e de alegria, Pedro Cigano aparecera na oficina de Castor Abduim em missão de
vida e alegria.
Para discutir a idéia de um fovoco: era
preciso esquecer os dias negros, suster o choro, apagar a memória da febre, por
cobro às comemorações da morte: os mortos só ressuscitam por ocasião do juízo
final.
Em seguida à festa do barracão, Pedro
Cigano havia desaparecido de Tocaia Grande e certa gentinha linguaruda se
aproveitou para baixar-lhe a lenha.
Capara o gato com tal pressa e tamanho medo
de bater a caçoleta, a ponto de haver abandonado o fole no armazém do turco: na
hora da pândega era presença obrigatória, os cinco dedos estendidos, para cobrar
os caraminguás da música, a boca escancarada para beber por conta dos
mãos-abertas.
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