segunda-feira, setembro 14, 2015

Seriam professoras primárias como o avô
Tocaia Grande
(Jorge Amado)

Episódio Nº 336
















3

Desde que vendera o depósito de cacau para Koifman & Cia,
o coronel Robustiano de Araújo espaçara seu trânsito por Tocaia Grande. Contudo, vez por outra, tomava pelo atalho e vinha deitar uma espiada no curral, dar dois dedos de prosa com o árabe Fadul e com o capitão Natário, fazer uma visita ao compadre Castor Abduim, botar a bênção no afilhado.

Tinha o negro em grande estima, ajudara-o a estabelecer-se por conta própria. Preocupara-se ao vê-lo murcho, desenxabido, desinteressado de tudo, após a morte da comadre Diva.

 Não restara nem sombra do rapaz expansivo e expedito a astuciar e promover presepadas e enredos, que animara com sua jovialidade a Fazenda Santa Mariana e com sua inventiva transformara os hábitos do arruado.

A repentina ressurreição do ferreiro alegrara o Coronel. O compadre lhe contara em confiança o episódio do egum, manifestando-se no descampado para lhe ordenar o fim do luto e restituir ao corpo vazio e suicida o gosto de viver.

Tocara-lhe a testa, o coração e a estrovenga. Para que Epifânia viesse cuidar dele e do menino, modificara o roteiro da rapariga, guiara-lhe os passos.

O egum de Diva, estrela acesa sobre as ondas do oceano, nos longes de Aiocá.

Ao contrário do que sucedia com muitos, o coronel Robustiano de Araújo não buscava esconder o sangue negro que lhe corria nas veias, abundante e poderoso.

Branco puro por ser rico, cacauicultor de mais de seis mil arrobas por safra, pecuarista de considerável rebanho de bovinos, sustentáculo da Igreja, sogro de franciú - a filha caçula casara-se com um Laffitte da Companhia de Iluminação a Gás -  nem assim renegava os orixás.

Sua mãe, a mulata Rosália, escura e bela, entrara num barco de iaôs para fazer o santo sem saber que estava prenha do patrão, o professor primário Sílvio de Araújo, lindo e pobre, fraco do peito.

Oxaguian, ao se apossar da cabeça de Rosália, tornou-se no mesmo passo senhor e dono do nascituro. Para resgatar-lhe o direito à vida, Rosália o recomprou ao encantado, cumprindo obrigações pesadas, pagando preço alto pela carta de alforria, mas teve êxito em seu cometimento, libertou o escravo e deu-lhe hierarquia de filho de Oxaguian.

O menino cresceu sadio e forte, ainda moço partiu para a guerra do cacau e dela regressou vitorioso.

Antes de morrer, o pai o perfilhara; nada mais tinha a lhe deixar além do nome da família. O jovem Robustiano se juntou a Basílio de Oliveira na luta legendária contra os Badarós: rompeu a mata, demarcou terras, enfrentou jagunços.

Corpo fechado, protegido de Oxaguian, não sofreu sequer um arranhão. Plantou cacau, elevou rebanhos, casou com moça rica, por sinal uma parenta dos Badarós, a menina Isabel.

Não teve filho varão, botou as filhas a estudar no Colégio da Piedade com as boas freiras ursulinas.

Seriam professoras primárias como o avô mas não teriam necessidade de lecionar - morenas formosas, herdeiras ricas, não lhes faltariam pretendentes.

Assim aconteceu: o médico Itazil Veiga casou-se com a primogénita; a cadete, de nome Kátia, ganhou na loteria, em dia de quermesse para São Jorge, o gringo Jean Laffitte, engenheiro formado nas estranjas.

O Coronel contribuía generoso para as festas da Igreja e para as do axé de pai Arolu. Carregava o andor do santo padroeiro nas procissões católicas. Não dançava na roda dos orixás, no candomblé; mas em casa dava de comer a Oxaguian.

4

Certa feita, no verão anterior, o coronel Robustiano de Araújo demorara-se em Tocaia Grande um tempo maior do que a habitual parada de algumas poucas horas para vistoriar o curral e cavaquear com os amigos.

Fizera-o para atender ao convite do capitão Natário da Fonseca por quem sempre demonstrara especial apreço.

Prometera-lhe uma visita à Fazenda Boa Vista cuja produção causava espanto e comentários: pedaço de terra mínimo se comparado às glebas da Atalaia ou da Santa Mariana, a colheita, na última safra, ultrapassara as quinhentas arrobas e o Capitão previa dobrar a cifra em poucos anos.

Ao cumprir o prometido - correu a fazenda de ponta a ponta, de roça em roça, examinou as benfeitorias uma a uma, barcaças, estufas, cocho, casas de alugados - o Coronel satisfez uma curiosidade: ficou sabendo o que de fato se passara entre Natário e Venturinha, quando o filho e herdeiro único do falecido coronel Boaventura Andrade tomara por fim posse de suas propriedades.

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