quinta-feira, novembro 05, 2015

A prudência do Sargento era-lhe ditada...
Tocaia Grande
(Jorge Amado)


Episódio Nº 381




















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Quanto aos referidos jornais da Capital, travaram ruidosa polêmica, incruenta porém furibunda: ficou nos anais da imprensa baiana devido aos fulgurantes talentos que dela participaram, plêiade de águias!

No único jornal da oposição, vibrantes plumitivos botaram a boca no mundo, em artigos, sueltos e a pedidos, que respingavam, todos eles, indignação, vergonha e sangue, falando na volta dos tempos ignominiosos quando o sul do Estado era terra de criminosos desnaturados, monstros desalmados, bandidos sem lei.

Os três diários governistas, não menos veementes, retrucaram afirmando que, muito ao contrário, o que se dera fora a imposição da ordem e da lei em remanescente valha couto de bandidos, réus confessos e condenados, trânsfugas fugidos da polícia.

Simples, rotineira operação de limpeza que viera pôr termo aos últimos resíduos de uma era de infâmia e barbárie.

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Apesar da insistência das autoridades superiores, apressadas
e levianas, o sargento Orígenes esperou, para ditar as ordens, uma boa meia hora após terem cessado os tiros esparsos vindos do cruzeiro e do barracão, sinal que, feridos ou mortos, os obstinados estavam fora de combate.

A prudência do Sargento era-lhe ditada pelas perdas sofridas.

Não previra tantas baixas nas fileiras dos jagunços e dos soldados.

Dos oito praças efetivos, restavam-lhe apenas três, cinco haviam tombado, além do cabo Chico Roncolho. Uns quinze cabras -  não contara mas o cálculo devia ser bastante exato - tinham entregue a alma a Deus ou ao Diabo.

Os tipos de Tocaia Grande, alguns deles tomando das armas pela primeira vez, comportaram - se como profissionais, venderam caro a vida.

Por que demónios o fizeram, o Sargento não sabia, mas, sendo do ramo, antigo jagunço, valorizava a façanha. A sorte tinha sido a morte do capitão Natário da Fonseca. Sem ele, o resto ficara fácil.

Prolongando-se a calmaria, marcada a meia hora no cebolão, Orígenes ordenou ao contingente ainda numeroso, apesar das duras perdas, avançar sobre o barracão, com cuidado, devagar, de armas embaladas.

Nunca é demais estar prevenido contra um louco, em todas as partes eles existem e se exibem.

Tivesse apostado, teria ganho. Estavam se aproximando do cruzeiro quando dos esconsos da noite surgiu uma figura estranha, empunhando e agitando uma espécie de bandeira enquanto, com a mão livre, disparava uma garrucha carcomida: tiros ao léu, por isso mesmo perigosos.

Incontinenti, o Sargento comandou fogo e foi obedecido. A descarga derrubou o solitário atirador; a bandeira revolteou sozinha e veio cair aos pés da cruz.

Servira de bandeira mas não passava do estandarte de reisado, encarnado e azul. Quem o conduzira e manejara a garrucha fora sia Leocádia que, em lugar de seguir os parentes na retirada, à espera de ver como seria depois, preferira ficar em Tocaia Grande, arriscando a vida.

Idosa de oitenta anos, envergara os trajes da Senhorita Dona Deusa, usados no Dia dos Reis Magos pela neta Aracati, empunhara o estandarte e a garrucha e viera desfilar no descampado.

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