Nascera como a avó, para ser dona de casa... |
Tieta do Agreste
(Jorge Amado)
Episódio Nº 66
ONDE TIETA COMPRA UM TERRENO EM MANGUE SECO E LEONORA, BEM-EDUCADA, DEVANEIA
Haviam voltado aos cômoros na noite enluarada, ela e Tieta.
Leonora parecia
flutuar na paisagem encantada – de repente liberta do passado, recém nascida na
magia da lua cheia derramada sobre as dunas e o oceano, no embalo do marulho
das ondas. Gostaria de demorar no cimo, deitada sobre a areia, invadida de paz.
Mas, quando o Comandante veio recordar o encontro marcado com dona Aída e
Modesto Pires, Leonora não que s ser
desatenta, regressou com Tieta à Toca da Sogra.
Por sua vontade teria permanecido no alto dos cômoros, sob o luar encomendado
por Ascânio, deslumbrante como ele prometera, a sentir o mar nocturno
arrebentando contra as montanhas de areia.
Mesmo sozinha: pensaria nele, cioso
dos deveres de administrador, tão correcto. Sujeito decente, diziam de Ascânio.
Decência, virtude rara, constata Leonora. Teve de atravessar o Brasil, chegar
ao sertão para vislumbrá-la. Dá-se conta que comete uma injustiça: Tieta é
decente: a seu modo, sem dúvida. Decência não significa candura, castidade.
Mulher direita, diziam dela no Refúgio.
Se estivesse nas dunas poderia escorregar, estendida sobre uma palma de
coqueiro, igual a Peto, moleque travesso. Não fora travessa, não fora moleca
nem menina. Não tivera infância, tão pouco adolescência; não provara o gosto do
primeiro beijo recebido ou dado em ímpeto de ternura. Não tivera namorados, não
ouvira palavras sussurradas, cálidas. Aos treze anos já lhe apalpavam
inexistentes seios.
Tenta reconhecer os sons da harmónica – há festa na povoação. Passaram por lá,
viram os pescadores reunidos diante de uma choupana em torno do tocador.
Não
era outro senão Claudionoro das Virgens, com a harmónica, as emboladas, as
trovas, os improvisos, de lugarejo em lugarejo, de bapara izado
em bapara izado, de casamento em
casamento, onde houver festa. Ao vê-los saudara:
Salve o senhor Comandante
E sua ilustre companhia.
Na Toca da Sogra, Antonieta, apressada como sempre que deseja alguma coisa,
acerta os últimos detalhes da compra do terreno. Leonora persegue o som da
harmónica, distante da conversa.
- Pague como bem entender, em quantas prestações que ser.
Nem por ser dono vou mentir: terreno em Mangue Seco não se compra nem se vende. De muitas
dessas terras nem se sabe o dono. Faz mais de quatro anos que vendi um lote.
Para um gringo que apareceu por aque ;
se lembra, Comandante?
- Lembro muito bem, era um alemão, pintor. Anunciou que se ia desfazer da casa
da Baviera para vir morar em Mangue Seco.
Eu quero pagar à vista seu Modesto. Dinheiro batido, moeda corrente… - anunciou
Tieta a rir.
- Vê-se que a senhora não é mulher de negócios, dona Antonieta: com a inflação,
comprar a prazo sempre é melhor.
- Não gosto de dever, é por isso, mas não pense que sou tola. Como pago à vista
quero abatimento.
Foi a vez de Modesto Pires rir:
- Abatimento? Vá lá. Cinco por cento, que lhe parece? Não por ser à vista mas
pelo prazer da vizinhança.
Espreguiçadeiras, tamboretes, um banco rústico na porta de casa, debaixo dos
coqueiros. Ali conversam enquanto a lua se desmancha. Peto adormecera deitado
na esteira.
Leonora escuta vagamente o diálogo, também ela se pudesse, compraria terreno em Mangue Seco. Não
para a velhice mas para ficar desde agora.
Ansiara a vida inteira por sentimentos e verdades de cuja existência tinha
notícias por ouvir dizer, através de filmes de cinema, das novelas de
televisão. Nada de mais, sentimentos normais, verdades corriqueiras. A avó,
referindo-se à vida na aldeia toscana antes da viagem, falava de coisas
simples: família, sossego, paz, amor. Amor como seria? Nas ruelas podres, no
cortiço seboso, ninguém soubera responder.
Quanto mais por baixo, batida, derrotada, lacerada, rota por dentro mais se
refugiava Leonora no modesto sonho irrealizável: afecto, ternura, bem-querer de
um homem.
Vida limpa como existia fora dos limites onde nascera, crescera e se
fizera mulher, mais além do círculo de dor e desespero. Subindo e descendo a
Avenida nas frias madrugadas, carregando seu fardo, o castigo por ter nascido
filha de pais tão pobres em terra tão rica, as chagas abertas, ainda assim
sonhava. Se não sonhasse só lhe restaria a morte.
Inesperadamente, quando o horizonte se fizera aperto na garganta, estertor
final, conheceu a bondade e nela descansou, aprendeu novos valores, sentiu-se
uma pessoa.
Os sonhos loucos de amor eterno adormeceram pois, não sendo torpe a
nova condição, apenas triste, menos carente estava. Não de todo satisfeita:
sempre no desejo, na intenção de sair daquele invólucro para a existência
desejada: casa e companheiro – não previa casamento – um par de filhos.
Outros
reclamam dinheiro e fama. Leonora nascera como a avó, para ser dona-de-casa,
mãe de família, não almeja mais do que isso.
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