quinta-feira, março 01, 2007

Zeca Afonso



ZECA AFONSO

O meu sobrinho Rui Pedro, do Macroscópio, desafiou-me a escrever sobre Zeca Afonso a propósito da passagem do vigésimo aniversário da sua morte.

Ele não desconhece, com certeza, a minha muita admiração pelo cantor da liberdade pelo que o desafio colhe totalmente e este texto só peca pelo atraso de alguns dias por motivos de saúde.

Zeca Afonso foi uma personagem ímpar, inigualável no panorama musical e na história deste país.

Não possuo nenhuma preparação musical para falar da voz e da música de Zeca Afonso, e nem sequer o meu pobre ouvido me pode ajudar nesse aspecto mas em mim, o impacto das suas canções é tão grande que, fora eu um crítico musical, e a diferença não se faria sentir.

A música e a voz do Zeca Afonso bate-nos em cheio, entra-nos pelos poros, sente-se na alma, comove-nos, sensibiliza-nos.

No tempo, separam-me de Zeca Afonso quase dez anos, ele nasceu em 29 e eu em 39 mas se ele não tivesse desaparecido prematuramente seria hoje, com os seus 77 anos, que faria em Agosto, o mais jovem de todos nós.

Zeca Afonso foi sempre igual a si próprio, os anos não o moldaram, a sua intransigência à volta dos valores era total porque o seu mundo não era deste mundo, o seu mundo era o da Utopia, ele mesmo explica:

Cidade
Sem muros nem ameias
Gente igual por dentro
Gente igual por fora
Onde a folha da palma
Afaga a cantaria
Cidade do Homem
Não do lobo mas irmão
Capital da alegria

Braço que dormes
Nos braços do rio
Toma o fruto da terra
É teu a ti o deves
Lança o teu desafio

Homem que olhas nos olhos
Que não negas
O sorriso a palavra forte e justa
Homem para quem
O nada disto custa
Será que existe
Lá para os lados do oriente
Este rio este rumo esta gaivota
Que outro fumo deverei seguir
Na minha rota?

Por isso, quando começamos a falar do artista inevitavelmente acabamos na pessoa que sobreleva os restantes aspectos. Os dotes de cantor e de músico constituíram uma “prenda” da natureza a uma personalidade rica, pura e de carácter excepcional.

Por sete anos que não nos cruzámos na cidade da Beira, em Moçambique, pois ele saiu em 1967 enquanto que eu cheguei em 1972 mas o contacto aconteceu através dos seus 5 Álbuns editados por essa altura dos quais me atrevo a destacar as Cantigas de Maio e dentro delas a enorme e deliciosa Grândola Vila Morena que de tão deliciosa que era conseguiu enganar a PIDE que não a proibiu de passar na Rádio ficando disponível para marcar o arranque irreversível da Revolução do 25 de Abril.

Dizia - um amigo meu, há muitos anos atrás, ainda em Moçambique, que sempre que ouvia a Grândola os cabelos dos braços eriçavam-se e ficava com pele de galinha…, e era um pacato comerciante mais entendido em bacalhau que em política ou música ou cultura (lato senso).

Foi por esta altura que o meu sobrinho Rui Pedro, do Macroscópio, me visitou acompanhado do seu falecido pai.

Demasiado menino, tudo lhe passou ao lado até porque umas das características das sociedades coloniais eram a “disciplina” e a “ordem” que faziam parecer aquelas terras Oásis de paz e progresso delícia das criancinhas, filhas dos colonos brancos.

Mas esta “guerra” não era directamente do Zeca Afonso, era da Frelimo e por isso regressou a Portugal deixando lá ficar o exemplo do único professor branco que deu aulas numa associação de negros e, claro…as canções, que foram de tal forma importantes que levaram Samora Machel, anos mais tarde, a recebê-lo com honras de Chefe de Estado.

Considero Zeca Afonso um dos injustiçados deste país: a solidariedade, a justiça social, o respeito pelas pessoas, o amor desinteressado pelos outros que foram suas bandeiras em vida, nunca constituíram verdadeiros desígnios da nossa sociedade e, por isso, Zeca Afonso não tinha muito espaço nela se é que tinha algum.

O Portugal dos lucros exorbitantes, dos especuladores, dos milionários na hora, dos oportunistas e corruptos, dos políticos que passam a vida a manobrar para ganharem ou manterem-se no poder, constitui uma realidade do pós 25 de Abril que seria sempre um espinho cravado no seu coração de poeta das utopias.

Mas a sua obra é vasta e está longe de ser apenas de temas políticos e sociais: as baladas, o folclore, os fados, as canções de embalar, tudo lá está na melhor voz masculina do nosso panorama musical.

Ouçam e comparem. Dizem entendidos insuspeitos que não tivera ele nascido neste pequeno país e as suas canções já teriam dado várias voltas ao mundo.

De qualquer maneira, elas estão editadas em CD e não há razão nenhuma para não nos deliciarmos em ouvi-las.



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