sábado, novembro 28, 2015

Finitos, carentes

 e mortais...



















Anselmo Borges é padre, professor de filosofia e escreve artigos de opinião no DN que por vezes leio.

Como sabem, sou ateu, assumido mas não militante porque toda a minha família é católica, os poucos que ainda cá estão, eu próprio, em jovem, frequentei durante dois anos um Colégio de Jesuítas e foram-me dados todos os sacramentos da Santa Madre Igreja mas, principalmente, por respeitar nessas pessoas as suas convicções mais íntimas.

A prática dessa militância implicava ir contra essas ideias íntimas, contrariá-las, desmenti-las o que, para elas, pareceria sempre uma afronta, um desrespeito, sem o ser.

Mas padre e filósofo, parece-me, não combinam porque a religião aprisiona o pensamento e eu tenho alguma dificuldade em olhar para um filósofo que não seja completamente livre no seu pensamento.

Quando Anselmo Borges fala da “verdade salvadora” eu fico perplexo: - A verdade? – Qual verdade? – Salvadora? - Eu preciso de ser salvo? – De quê? – De quem? – Por quê?

Anselmo Borges nunca poderá responder-me a estas perguntas como filósofo porque, sendo padre, vai dizer-me que as religiões têm na sua base o sagrado de Deus de quem se espera a salvação de todos e, nesse momento, Anselmo Borges já não fala para mim, fala para os crentes da sua religião, enquanto eu sou apenas crente em valores e princípios da sociedade, muitos deles apropriados pela religião como se fossem dela.

Anselmo Borges diz que somos “finitos, carentes e mortais” e como padre chega ao “bálsamo da existência que é a verdade salvadora” enquanto que eu, que sou ateu, limito-me a assumir a minha indiscutível natureza que é finita, sinónimo de mortal e carente apenas no sentido de que fazemos parte de um universo que é preciso desvendar e aprofundar e aqui, reside uma carência de conhecimento que, apesar de tudo, já nos trouxe do controle e domínio de fogo até ao telescópio Hubble, que a 600 km de altura da Terra observa o espaço até aos seus primórdios.

Mas neste artigo de Jornal, Anselmo Borges fala da violência das religiões. De facto, as várias religiões representam rupturas, linhas de fractura da sociedade humana, independentemente de se guerrearem ou entenderem-se umas com as outras.

É uma questão de estudar a história das sociedades humanas que não pode ser feito desligado da história das religiões, com a qual quase se confunde e nos mostra como fomos vítimas delas.

Mas se os homens, por hipótese, não tivessem guerreado entre si por causa das religiões, tê-lo-iam feito, quase de certeza, por outras razões que, de resto, sempre lá estiveram presentes, porque a verdade é que a natureza humana é violenta.

Não o fora, e não teríamos sobrevivido num mundo tão competitivo.

Apenas uma diferença, uma pequena diferença: - Quando um homem mata outro, se for por causa de um Deus, fá-lo com um sorriso de maior felicidade nos lábios...

ENGLEBERG - LOVE ME WITH ALL YOUR HEART

Para consolo da alma...



Fuga do ladrão














Uma loira policia chega apressadamente junto ao chefe e diz:

- Chefe, o ladrão acabou de fugir!

- Impossível!! Então não mandei fechar todas as saídas? – Pergunta o chefe.

E responde a loira:


- Mas chefe, ele fugiu pela entrada.

Linda, na sua nudez de mulher
Tieta do Agreste
(Jorge Amado)



EPISÓDIO Nº 17























OUTRA VEZ O CHATO, NA HORA DO DESCANSO


Um rápido parêntesis – não me demoro – para revelar factos condenáveis, iluminar com o facho da verdade detalhes obscuros, desmascarando, mais uma vez a senhorita Carmosina Sluizer da Consolação.

Não creiam que a pérsia, que não lhe tenho estima. Ao contrário, reconheço-lhe qualidades e louvo os motivos capazes de a levar a violar a lei dos homens e a lei de Deus, quando generosos ou nobres.

Quanto a persegui-la, quem ousaria em Agreste? Nem o coronel Artur de Tapitanga, nem Ascânio Trindade, tão cumpridor da lei. Com Ascânio ela redige cartas aos jornais da capital, petições ao governa do Estado, reclamando ajuda para Agreste. Inúteis, cartas e petições.

Há mais de quinze anos – dos vinte e três de sua nomeação para os Correios e Telégrafos – funciona o ilegal esquema estabelecido por ela e por Canuto Tavares, o outro funcionário da Agência, proprietário da oficina de consertos em Esplanada, onde ganha bons cobres, habilidoso com ele só.

Permanecesse em Agreste, não progrediria, vegetando a vida inteira, limitado ao magro ordenado de telegrafista em Agência de última classe; decidiu abandonar o emprego, mudar-se de vez, levando as ferramentas e a ambição.

Ao saber da decisão do colega, Carmosina propôs-lhe barganha capaz de beneficiar os dois: Canuto iria tranquilo cuidar da oficina em Esplanada, onde ganha bons cobres deixando exclusivamente por conta dela o funcionamento da Agência dos Correios e Telégrafos de Sant’Ana do Agreste, afinal não era trabalho de matar ninguém, em troca ele lhe daria metade do ordenado.

Para Canuto, disposto a demitir-se, a proposta caiu como sopa no mel. Para Carmosina nem se fala: aumentando-lhe a renda necessária ao sustento da casa – para o qual dona Milú já não podia concorrer devido à idade: parteira quase aposentada, ainda pegava menino, mas de raro em raro – deixava-a senhora única e absoluta de cartas, telegramas, encomendas, revistas e jornais, da vida, da cidade e do mundo.

Funciona o arranjo há mais de quinze anos – ela saberia dizer exactamente quantos, anos e meses – e em nenhum momento passou pela cabeça de alguém denunciar o escandaloso envio do livro de ponto da repartição a esplanada para recolher a assinatura de Canuto, levado em mão própria por Jairo. Quem ousaria?

Nela, o que me desgosta é a parcialidade. Queria ver como agiria Carmosina se um dos filhos de Perpétua morresse e a mãe quisesse esconder o facto de Antonieta para conservar a ajuda pontual e íntegra. Se teria idêntico comportamento ao que teve quando Elisa entrou na Agência em desespero devido à morte de Toninho.

Dona Carmosina a consolara, o inocente deixara de padecer, ruim de saúde desde o nascimento. Dona Milú ao retirá-lo do ventre de Elisa se assustara, parecia um feto em formação, verdadeiro milagre ter vivido tanto tempo.

Não adiantaram médico e remédio, pagos com as remessas de Tieta, a ida a Esplanada para consultar doutor Joelson, especialista em crianças. O pediatra balançara a cabeça: nem adianta receitar. O pobrezinho descansou e você também, quantas noites sem dormir? Mas nem assim Elisa se acalma.

Além de perder Toninho – por mais enfermo e raquítico, era filho e consolo – perdia a ajuda da irmã, o dinheiro mensal destinado ao leite, aos remédios, aos médicos, à futura educação do sobrinho, e não a cosméticos, revistas, sessões semanais de cinema, pilhas para rádio. Com Toninho partia para toda a eternidade essas regalias compradas com as sobras da caridade de Tieta. Que fazer, me diga, Carmosina?

Os olhos miúdos, apertados, fitaram Elisa – Carmosina a vira nascer. Dona Milú emérita aparadeira de menino, chamada às pressas no meio da noite para atender Tonha nas dores de parto, a soprar garrafa vazia a mando do Zé Esteves, levara a filha de ajudante. Carmosina e Tieta ferveram água, auxiliaram e assistiram a delivrança. Perpétua, pudica, trancara-se a rezar. Cada qual ajuda à sua maneira.

Meninota, no caminho para a escola, Elisa vinha pedir a sua bênção à sua mãe de umbigo, dona Milú; regalava-se com queimados de goiaba e coco, uma gostusura. Carmosina foi quem primeiro recordou a Elisa a existência de Tieta, cujo nome a família jamais pronunciava.

Tema escandaloso, mas Carmosina arranjava maneira de lembrar a amiga. Ao contar um caso, referia-lhe o apelido e boniteza: Tieta, tua irmã, estava comigo, bonita de dar gosto. Também Elisa crescera bonita de dar gosto, casara, parira; Carmosina a vira nascer. Elegante no vestido enviado por Antonieta, desesperada, nem sequer o filho doente para cuidar, que fazer? Desditosa era o objectivo certo. Carmosina aproxima-se, murmura:

- Não mande contar nada…

- Hein?

- Faça como se Toninho não tivesse morrido…

- E se Perpétua fuxicar? Você conhece ela, toda moralista: não tolera mentiras, vive dizendo.

- Se ela ameaçar, você ameaça também: quem tem mais podres a esconder? Ou você pensa que ela fala a Tieta das casas, dos alugueis, da herança do major? Diz que deposita na Caixa o dinheiro que Tieta manda para as despesas dos meninos porque não lhe faz falta? Diz, uma ova.

Comprove-se a falta de Carmosina a aconselhar mentira e chantagem à amiga em beco sem saída. Falta de honradez também: a par do conteúdo das cartas de Perpétua por abuso de poder não lhe cabe o direito de utilizar tal conhecimento. Mas Carmosina não liga importância aos conceitos de moral, às regras de honradez. Não somente aconselha, dirige e intriga:

- Deixe Perpétua comigo. Eu mesmo falo com ela.

Perpétua ergueu os olhos para o céu a pedir ao senhor perdão do pecado, descerrou os lábios:

- Por mim não vai saber. Se Antonieta cortar o dinheiro que lhe dá, no fim quem vai ter de aguentar com ela e o marido sou eu.

Motivo justo, correcto, Perpétua é osso duro de roer, não se deixa chantagear. Carmosina ri de leve, um riso de criança, tão inocente:

- Por isso ou pelo resto, o importante é calar o bico.

Mais um detalhe e vou-me embora. Lembram-se da carta de Ricardo pedindo bola de futebol, recomendando segredo à tia? 

Ao recordá-la, Carmosina por pouco deixa escapar a revelação: também ela escrevera a Antonieta, rememorando os dias da adolescência, a antiga amizade, enviando lembranças de dona Milú que não a esquece.

Além de um pedido: podia Antonieta comprar em São Paulo e lhe remeter, dizendo quanto custara, um bom, o melhor Dicionário de Rimas à venda nas livrarias? Não mandava comprar em Aracajú ou na Baía, para evitar mexericos. Não tardou a receber o livro com uma dedicatória: Para a querida amiga Carmô, pálida lembrança da amiga Tieta.

Madrugada adentro, à luz do candeeiro, na calada da noite, Carmosina escreve versos, com sílabas, rima ressonar com Osnar, pejo com desejo.

Agora que os senhores sabem, eu os deixo novamente na Agência dos Correios e Telégrafos, ou melhor, no Areópago. Até breve.


Assim Nasceu Portugal
(Domingos Amaral)


Episódio Nº 121




















Coimbra, Maio de 1126


As notícias correm depressa, mesmo entre regiões cristãs e mouras, e Zaida contou-me que um mês depois da Páscoa, elas foram informadas de que Taxfin fora morto no castelo da serra Morena.

Foi na mesma tarde que a mãe lhes explicou porque não fora a Ricobayo. As coisas pareciam todas ligadas umas às outras, no passado, no presente e no futuro, era o que eu estava a concluir, nesta fase de investigação.

Havia razões para tudo. Há sempre.

Ainda em Viseu, Zulmira pedira à rainha para regressar a Coimbra em vez de a acompanhar à vassalagem de Afonso VII, que decorreria na povoação de Ricobayo, próxima de Zamora.

As filhas haviam estranhado, era a segunda vez que a mãe inventava uma oportuna doença. Um ano antes da visita a Astorga e Sahagun, queixara-se de um misterioso mau estar e abandonara a comitiva que seguia para Toledo.

Contudo, só quando chegou a Coimbra é que Zulmira saciara a curiosidade das filhas.

Em Ricobayo estaria gente do tempo do imperador Afonso VI. Tal como em Toledo, no ano passado. Gente que se lembra de mim há muitos anos.

Convidou-as a sentarem-se na sua cama, e recuou várias décadas, à época em que Afonso VI, avô de Afonso Henriques e do agora Afonso VII, era o imperador de Leão, Castela e Galiza, e dominava as taifas de Sevilha, Badajoz e Mérida, obrigando vários reis mouriscos a pagarem-lhe chorudos tributos.

Um desses era Al-Mutamid, rei de Sevilha. Embora mais dado à poesia do que à guerra, e mais entusiasta de rapazes do que de mulheres, Al-Mutamid casar e tivera uma única filha, chamada Zaida, que mais tarde obrigara a desposar o wali de Córdova, Ismail Ibn-Abbad para poder anexar essa cidade a sua Sevilha.

Da união forçada entre Zaida e Ismail nascera Zulmira. Quando esta tinha treze anos, furioso com as submissões dos reis árabes ao imperador cristão, o califa Yusuf decidiu atacar Sevilha.

Assustado, o rei poeta Al-Mutamid, ordenou ao seu genro Ismail que pedisse ajuda a Afonso VI. Não podendo abandonar Córdova, cujo cerco estava próximo, Ismail enviou a Toledo sua esposa, Zaida.

Acompanhei minha mãe nessa embaixada – recordou Zulmira.

Pouco depois de partirem, a tragédia abateu-se sobre Córdova. A tomada da velha capital do califado foi uma carnificina sem nome, as tropas de Ismail foram dizimadas pelos sanguinários algozes de Yusuf, e as ruas tingiram-se de vermelho, com o sangue dos cordovezes derrotados.

- O último a morrer foi meu pai, Ismail, o governador de Códova. Quando a notícia chegou a Toledo, tínhamos acabado de nos instalar.

Zulmira, que muito amava o pai, ficou destroçada. Porém, sua mãe Zaida, não perdeu tempo e pediu uma audiência ao Imperador.

Nesse dia, algo de espantoso aconteceu – murmurou Zulmira.

Afonso VI tinha um talento especial para seduzir mulheres e comoveu-se com a solidão de Zaida, que julgava uma viúva sofrida.

Com quase cinquenta anos, o imperador já se casara três vezes, tinha várias filhas, entre as quais Dona Urraca e Dona Teresa, mas nunca gerara varão.

Encantado com aquela bela princesa moura, converteu-a e, algum tempo depois engravidou-a!


sexta-feira, novembro 27, 2015

Da Política

no meu país













Só o meu jornalista “predilecto”, Ferreira Fernandes, poderia ter escrito o que escreveu hoje no DN:

- Ontem, Cavaco tomou posse da sua ida embora.

Há quem afirme, erradamente, que Cavaco é um equívoco o que é perfeitamente falso. Nada tem de equívoco, embora tivéssemos tido muitos, políticos e políticas equívocas, de que fomos vítimas, Cavaco, sempre foi coerente, igual a si próprio na sua identidade que nunca procurou esconder.

Nas duas últimas semanas e no discurso de ontem limitou-se, apenas, a ser ainda mais igual a si próprio, isto para aqueles que andaram distraídos nos últimos anos com a benignidade do nosso clima.

Não, para mim, e não só, Cavaco foi um persistente erro de casting, exactamente por causa da sua coerência, diria mesmo, um grosseiro erro de casting, o que é diferente,  “um velho do Restelo moderno, de medo e receio, um mestre de escola antigo, sem uma palavra de esperança”, como se lhe referiu Lídia Jorge.

De tal forma, que agora já se ouvem vozes a dizer, que no futuro temos de ter mais cuidado quando escolhemos a pessoa para colocar neste lugar.

Cavaco é um Presidente de um sector, estreito, da sociedade portuguesa, um homem de facção que, por isso mesmo, nunca poderia ser Presidente de um país.

Quem ouviu ontem os discursos de Cavaco e Costa percebeu, perfeitamente, que alguém estava errado no seu lugar e não era Costa com as suas palavras apaziguadoras, tranquilas e abrangentes, enquanto que o primeiro se preparava para nos deixar num beco sem saída, num tom intratável, cujas palavras eram proferidas por uma autentica “cara de pau”.

Porque não marcou ele as eleições legislativas para mais cedo de forma a ficar com campo de manobra e poder marcar novas eleições depois de dissolver a Assembleia?

- Então, não era perfeitamente previsível que nenhum dos candidatos a 1º Ministro – porque foi nisto que, erradamente, se transformaram as eleições legislativas – não iria ter maioria absoluta e só poderia governar com estabilidade no apoio maioritário do Parlamento?

- Quem é o político bom? – O que não é capaz de perspectivar o futuro ou aquele que vê à distancia as soluções e acredita na sua capacidade dialogante, de entendimento com os outros, para as atingir?

- E então, aquilo que é constitucional não é legítimo?

Tantos elogios que ao longo dos anos ouvi à nossa Constituição, revista em 1982, e afinal ela alberga ilegitimidades?...

Cavaco, e a sua direita foram surpreendidos e a uma surpresa chamaram ilegitimidade.

Também eu fui surpreendido e a maioria dos portugueses igualmente. Para mim e para a maioria dessas pessoas de esquerda foi uma agradável surpresa dar voz que não fosse de simples protesto, a 996.872 votos, quase um milhão de portugueses, que nunca tinham entrado na zona do poder.

Uma surpresa explicada pela história e características do nosso leque partidário e que era preciso ultrapassar.

Sendo de direita e ferrenho, Cavaco não aceitou essa ultrapassagem pela esquerda e ter-lhe dado corporização no governo a que ontem deu posse foi, sem dúvida, o seu maior amargo de boca.

É com alívio que o verei pelas costas no dia 9 de Março do próximo ano para bem do arejamento democrático neste país. 

IMAGEM

Sempre amei as árvores. Já cá estavam quando chegámos. Vão ficar quando partirmos...




ANA MOURA- DESFADO



Gato Fedorento - Velório


Linda, na sua nudez de mulher
Tieta do Agreste
(Jorge Amado)



Episódio Nº 16





















Além das notícias, perguntas: ela, Antonieta, que fazia? Qual o endereço completo? Mandasse contar tudo, timtim por tintim.

A resposta não tardou sequer um mês. Antonieta enviou um cheque em nome do major, pedindo-lhe o favor de descontá-lo e entregar o dinheiro a Zé Esteves, destinava-se a ajudar o pai e a madrasta nas despesas.


O pai podia contar com aquele auxílio mensalmente. O valor do cheque despertou atenção e cobiça: dinheiro grosso, bem mais do que o casal necessitava para pagar o casebre onde habitava, mesmo pondo em dia os alugueis atrasados, para a comida e para a cachaça medida mas indispensável à dieta do Zé Esteves.

Perpétua insinuara divisão da ajuda mas um olhar do velho, o bastão erguido em arma de guerra, foi suficiente para encerrar o assunto. Para evitar a ida do Major a Alagoinhas, onde fica a mais próxima agenda do banco, seu Modesto Pires, dono do curtume, fez o favor de descontar o cheque. Esse primeiro e todos os demais.

Quanto às perguntas nem sombra de resposta, resumindo-se Antonieta a informar que graças a Deus gozava de saúde, casara-se e era feliz apesar de não ter filhos.

Sobre o marido, nome, profissão, idade, nenhuma palavra. Endereço? Nenhum melhor, mais seguro, do que a Caixa Postal 6211, toda a correspondência para ali dirigida chegaria às suas mãos.

No transcurso de mais de um decénio, as relações epistolares entre Tieta e a família mantiveram-se absolutamente regulares; uma carta por mês de cada lado, a de São Paulo, poucas linhas, papel e envelope de cor, perfumados. Variando a cor de ano para ano, o perfume mudara uma única vez. Mais suave e discreto o último, estrangeiro com certeza.

A quantia do cheque crescendo, não somente por causa da inflação. Quando Elisa teve menino e dona Carmosina acentuara as dificuldades de Astério, Tieta somou à ajuda ao pai certa quantia mensal para o leite do menino e sua futura educação.

Fazendo o mesmo quando Perpétua lhe escreveu dramática e, por uma vez na vida, sincera, chorando a morte do marido perfeito, a deixá-la viúva com dois filhos nos braços, necessitada.

Boca de siri sobre as casas de aluguer, as economias no banco, mas Tieta já se dera conta da diferença de sorte das irmãs pois mandava para uma e outra importância igual: se Perpétua tinha dois filhos, bem maiores eram as dificuldades de Elisa. Começaram a chegar os pacotes de roupa usada, os presentes de Natal e de aniversário, mas dela e do marido pouco mais soubera.

Muito pouco, quase nada, mas o suficiente para dona Carmosina juntar as peças e desatar o nó.

Há uns nove anos – nove anos e nove meses, exactamente – num número de Carnaval da revista Manchete, dona Carmosina reconheceu, apesar dos cabelos oxigenados, numa fotografia de foliões em plena animação no baile do Teatro Excelsior, na capital paulista.

Ali estava ela, bem no centro da foto, feliz, aconchegada e amorosa nos braços de senhor de certa idade, a se acreditar nos cabelos brancos.

Infelizmente do cavalheiro via-se apenas as costas, pois dançavam; ela sim, estava de frente, a boca aberta em riso, o rosto franco e brejeiro, uma gentil senhora, não mais a jovem estabanada cuja partida de boleia num caminhão Carmosina testemunhara. Crescera em formosura, opulenta de formas. Jamais fora magricela, sua beleza tinha onde pegar-se.

Dona Carmosina convocou a família inteira, foi uma sensação. Perpétua balouçou a cabeça, concordando. Antonieta, não havia dúvida; engordara e oxigenara os cabelos. Também o velho Zé Esteves reconheceu a filha:

- Tá pimpona, de cabelo pintado, na moda. Deus te acrescente. Minha filha! – olhava as outras duas em desafio. Queria ver quem se atreveria a criticar. Na sua vista, ninguém.

Elisa ficou feito doida, não tinha ideia de como fosse a irmã, de agora em diante podia imaginá-la melhor, tão linda na fantasia de Odalisca.

A notícia da descoberta da revista, transmitida em carta de Elisa, trouxe a primeira pista, pois Tieta, na resposta, revelou o pronome do marido: quem a tinha nos braços, no ritmo do samba carnavalesco, era Filipe, seu bem-amado esposo. Filipe de que não disse.

Não muito depois, em carta datada de Curitiba, fez referência aos negócios de Filipe, industrial com interesses no Paraná. 

De outra feita, desculpando-se, atribuiu a demora do envio do cheque – uma semana de atraso – à enfermidade do comendador a cuja cabeceira a dedicada esposa dera tempo integral. Filipe, industrial e comendador.

Para Perpétua bastava; aliás bastava-lhe o cheque, sendo o resto supérfluo. Elisa, ao contrário, desejava saber mais, muito mais. Durante horas inteiras comentava com Carmosina as reservas da irmã: tem vergonha de nós, medo que a gente abuse da bondade dela. Esquiva-se, no fundo com razão.

Com razão, dona Carmosina é quem mais sabe. Tieta saíra corrida – aqui não é casa de puta! – moída com pancada por denúncia de irmã mais velha.

Boa demais, isso é o que ela é, pois esquecera vexame, delação, a surra, o cajado de marmelo para vir em socorro da família. Boa demais, um anjo, concordava dona Carmosina. 

Quanto ao motivo das reservas e das reticências a agente dos Correios e Telégrafos silenciava: sobre esse assunto traçara, em segredo, teoria própria.

Reuniu dados, indícios, pistas, mistério digno de Hercule Poirot. Dona Carmosina o resolveu em definitivo quando começaram a chegar as encomendas postais com os elegantes vestidos, as saias e blusas finas, de medidas diversas.

Antonieta, em breve frase, explicara a razão dos diferentes talhes: estou mandando uns vestidos quase novos, meus e de minhas enteadas. Enteadas, notem bem, filhas do comendador Filipe mas não dela, que não tinha filhos. Claro, como a luz do dia, dona Carmosina Sherlock Holmes. Quem, em Agreste, a iguala, suplanta em inteligência?

Dissolução do vínculo conjugal com separação de corpos e bens, oito letras, divórcio.

Divórcio ou desquite, no Brasil não há divórcio, este país mais atrasado!, e eis a explicação certa e correcta, não há outra.

E aqui façamos nova pausa, um pouco de suspense, próprio dos folhetins.

Voltaremos após os comerciais, como dizem os locutores quando, no melhor da intriga, no momento mais empolgante, interrompem as novelas radiofónicas para anunciarem sabão em pó e marcas de cigarro, deixando Elisa trémula e vibrante.

A ASAE no Alentejo













Elementos da ASAE foram destacados para o Alentejo. Entraram numa tasca e pediram um café e um deles quis também um bolo.

O compadre deu-lhe o café, pegou no bolo com a mão e colocou-o em cima do balcão. Claro que foi chamado à atenção além de ter levado com uma valente multa.

Apressadamente, o alentejano ligou para o compadre que tinha uma tasca lá perto e avisou-o:

- Compadre a ASAE esteve aqui. Tome atenção que também são capazes de a seguir o visitar…


Ainda o alentejano estava a acabar de falar e os fiscais já entravam pela porta adentro.

- Bom dia. Quero um café e um bolo. – Diz um dos fiscais.

Com todo o cuidado, o alentejano deu-lhe o café e com a tenaz tirou o bolo e colocou-o num pires. Entretanto o fiscal, depois de ter tomado o café e comido o bolo, reparou que o homem tinha um cordel preso na braguilha e perguntou:

- Oiça, para que é esse cordel?


Explica o alentejano:

- Então, quando vou fazer xixi, abro a braguilha, puxo o cordel e faço o serviço… Nunca chego a tocar com a mãos só a pensar na higiene!


Espantado com a máxima higiene mantida pelo alentejano, curioso perguntou:

- Então e depois como é que mete isso para dentro?


E diz o alentejano:

- Ah! isso é com a tenaz dos bolos

Assim Nasceu Portugal
(Domingos Amaral)




Episódio Nº 120


















As pessoas começaram a chamar-lhes haschischins ou assasins, pois eram certeiros e letais. Quem Hassan-ibn-Sabbath declarasse que devia morrer era morto por um seu leal servidor. Depois, o assassino matava-se para não ser preso.

Taxfin mantinha-se em silêncio. A morte com duas pernas nunca deixara ninguém com vida, degolava todos os seus opositores.

Contudo, nunca se matara, ao contrário do que dizia ter acontecido aos seus colegas de Alamut.

Um dia fui escolhido por Hassan – Ibn – Sabbath para uma missão muito perigosa e longínqua, no Egipto. E cumpri-a, matando quem ele me ordenara. Mas não me matei como outros fedayn.

O homem riu-se para si próprio emitindo um som maligno como se estivesse possuído por um demónio. Depois acrescentou.:

- Já sabia o que ia acontecer em Alamut.

Nem um homem santo e glorioso consegue enganar a morte explicou o fedayn. Nenhum dos seguidores e sucessores de Hassan-Ibn- Sabbath conseguiu manter a união e, pouco a pouco, os valorosos fedayn foram partindo.

Apesar de bons religiosos e bons guerreiros, muitos perderam a fé, outros a capacidade de lutar. Sem Hassan-Ibn-Sabbath para iluminar as suas almas, apagaram-se na escuridão dos tempos.

Fui o único que prossegui o destino em que me iniciaram.

Do Egipto partira à procura de quem pagasse os seus serviços.

Sabia matar muito bem, mas só no califado Almorávida encontrara alguém que o compreendera.

- Ali Yusuf acolheu-me – disse o fedayn.

Há quase uma década que aquele carniceiro matava para o califa de Marraquexe, e Taxfin suspirou de novo. A perna doía-lhe, mexeu-se um pouco na cama. Depois perguntou:

 - É verdade o que dizem dos fedayn que fumam muito haxixe antes de matarem, para terem mais coragem?

O outro respondeu a Taxfin com uma pergunta:

- Queres fumar haxixe antes de morrer?

O marido de Zulmira disse que sim e então o persa atirou-lhe um saco e um cachimbo e Taxfin encheu-o. Depois perguntou:

 - Como o acendo?

Pela primeira vez o homem mexeu-se e dirigiu-se à lareira. Taxfim viu-o apanhar carvão em brasa com uma pinça de ferro.

Depois, aproximou-se da cama e estendeu-lhe a pinça, e Taxfin acendeu o cachimbo nela. Deu umas passas saboreando o fumo.

Sabia bem, era haxixe de Marrocos. Uma onda de nostalgia invadiu-o.

- Sabes, disse ao homem – fumei muito haxixe aqui, em Hisn Abi Cherif com alguns dos maiores poetas da Andaluzia a declamarem os seus versos à Zulmira.

É disso que vou ter saudades. Não é de ter sido governador, ou de ter morto tantos cristãos. Vou é sentir saudades deste castelo de arenito vermelho, e da minha Zulmira a passear no jardim, entre as margaridas e as rosas.

Deu uma nova passa no cachimbo e depois cerrou os dentes e disse:

 - Abu Zhakaria vai matar-vos.

Ignorando-o o outro declarou:

 - São as ordens do califa: matar-vos, matar a vossa mulher e matar as filhas dela e de Hixam de Hisn Abi Cherif.

Tranquilo. Taxfin apenas perguntou ao seu carrasco:

 - Porque não vos matais depois, como mandava o “Velho da Montanha”?

O alfange ergueu-se e caiu sobre ele com violência, degolando-o num só golpe.

quinta-feira, novembro 26, 2015

Mais dois mesitos e será aqui... finalmente!
O Render da guarda
















O Presidente Cavaco continua a demonstrar pela Assembleia da República, aquela que lhe alterou os planos e o obrigou a engolir sapos, a sobranceria e falta de educação que lhe conhecemos.

Agendou a tomada de posse do governo para hoje, às 16H00, coincidindo com o plenário da Assembleia que já estava marcado para as 15h00 quando não havia ainda notícia da hora de tomada de posse.

Ter em consideração este agendamento e levá-lo em linha de conta teria sido de elementar bom senso por parte de Cavaco que faz questão de não perder nenhuma oportunidade – desde o “indicar” e não “indigitar” de António Costa – para mostrar quanto esta solução para o país lhe desagrada.

Por esta razão, 21 deputados do PS estarão na cerimónia de posse em vez de ocuparem, a essa hora, os seus lugares no Parlamento a discutirem medidas legislativas como a eliminação da sobretaxa do IRS e da Contribuição Extraordinária de Solidariedade para a reposição salarial para a função pública, e outras.

Diz o Correio da Manhã, o jornal do povo, que é um governo de “cegos e de ciganos”,  faltando apenas acrescentar também que é de “pretos”, por causa da Van Dunem, ministra da Justiça.

Esta direita antropófoga é uma delícia...

De admirar, é que ao fim de 40 anos de democracia, e com a sociedade que temos, constituída por tantos cegos, ciganos e negros, só agora faça parte de um governo uma pessoa de raça negra.

Ou seja, foi preciso uma maioria de deputados na Assembleia da República, representando 60% dos votos dos portugueses que reprovaram as políticas do governo anterior, entenderem-se para formar um governo com maioria parlamentar, considerado, de acordo com a cassete dos falcões de Passos Coelho, politicamente “ilegítimo”, “imoral” e “sem ética” para, finalmente, reparar esta lacuna.

Tudo fez o Presidente da República para evitar este governo politicamente “ilegítimo, imoral e sem ética”,  apenas não teve a coragem para manter Passos Coelho como 1º Ministro em funções de gestão até se ir embora daqui a 2 meses... por tão pouco, terá ele pensado.

Corajoso é coisa que ele não é... sonso, sim!

IMAGEM

Sem comentários




Gato Fedorento - Inauguração do Túnel do Marquês


De regresso ao Pica dos 7


Sem ofensa aos meus compatriotas
 alentejanos que muito considero










Por que é que os Alentejanos gostam de tomar a bica na casa de banho?

Para tomarem a bica com cheirinho.

Linda, na sua nudez de mulher
Tieta do Agreste
(Jorge Amado)

EPISÓDIO Nº 15
















                                                                                       
                                                                                                






CONTINUAÇÃO DO CAPÍTULO INTERROMPIDO

Quando Perpétua casou, dona Carmosina teve um alento de esperança. Se Perpétua, mais velha, mais feia – pois simpatia também marca ponto em concurso de miss – mas com aquela cara de prisão de ventre crónica, sem graça, ressentida, encontrara quem a quisesse, quem lhe pedisse a mão em casamento e a levasse ao altar de véu e grinalda, figura ridícula!, cabia a Carmosina, mais moça, inteligente, culta, cultíssima! risonha e cordial, ao demais cozinheira de mão cheia, o direito a sonhar, a não cair em desespero.


Ah!, Major Cupertino Batista existiu um só, milagres não se repetem.

Reformado por motivos de saúde, cinquentão asmático e cardíaco, curto de entendimento, duro de cabeça, obtuso, um bobo alegre, nem por tudo isso partido desprezível.

 Solteiro, tinha economias, reservas monetárias e físicas: ao partir para o reino dos céus deixara Perpétua com dois filhos e herdeira de três casas, além da pensão e do dinheiro a render juros.

A herança, Carmosina dava de barato mas – suspira – durante seis anos e um mês, setenta e três meses, duas mil duzentas e vinte e uma noites, contando a do ano bissexto, a bruaca, a desinfeliz – a sortuda, a felizarda! – dormira em cama de casal com um homem ao lado, sob as mesmas cobertas, marido válido até à última gota, pois Perpétua tivera aborto pouco antes do Major bater continência e a festa terminar.

Escreve luxúria letra a letra nos quadrados de jogo das palavras cruzadas, o pensamento voa de Perpétua para Elisa (a pobre, agoniada, esquecera as revistas); de Elisa para Antonieta.

Antonieta, essa sim, merecera a vida conjugal e a fortuna: alegre, divertida, bondosa, um encanto de criatura. Muito chegada à casa de Carmosina, colegas na escola primária; dona Milú, dedicava-lhe particular estima e a defendia quando as más-línguas vinham tosar na pele da moça, melhor dito nas carnes da rapariga. Moça falada, na boca das comadres:

- Aquela já perdeu os tampos há muito…

- Já foi chamada às ordens…

- Moça, aquela sujeitinha? Rapariga é o que ela é… dá para Deus e o mundo…

Dona Milú punha fim à conversa, dispersava o elenco;

- Se ela está dando, dá o que é dela e eu nunca soube que se deitasse com homem por dinheiro, é o corpo que pede. Que pede a ela e a todas, não é mesmo Roberta? As outras não dão, trancam com sete chaves mas só a caixa da periquita. O resto não faz mal, não é isso, Gesilda? Do sovaco ao fiofó, tudo vasculhado.

Parecia mudar de assunto:

- Que apelido mais bonito os rapazes botaram nas tuas gémeas, Francisca. Não sabe? Pois lhe informo: Mãos de Ouro e Prata, achei lindo… - Dona Milú era uma parada!

Quando Tieta, surrada e expulsa partiu no caminhão, Carmosina viera se despedir, a única. Vá dizer adeus a sua amiga, a mãe ordenara. Visíveis as marcas da véspera, o bordão atingira-lhe o rosto, roxas equimoses nas pernas, Tieta não se queixou. Pode ser para meu bem, disse. Acertara.

Nos últimos onze anos e sete meses, raro o dia em que dona Carmosina não recorda Antonieta. Desde a chegada da primeira missiva, acompanhara, carta a carta, a correspondência trocada entre Sant’Ana do Agreste e a Caixa Postal 6211 da Capital de São Paulo.

Está por dentro de tudo, sabe mais que as próprias irmãs de Tieta, muito mais. Por conhecimento directo e por dedução.

Vira o cheque engordar ao passar do tempo, com a desvalorização do cruzeiro e as lamúrias das irmãs. Corrigira – na prática redigira – as cartas de Elisa, fraca na gramática; lera as de Perpétua, as de Perpétua e as demais.

As irmãs, após a morte do Major, haviam dividido o dever e o prazer das respostas, como dividiam o conteúdo das encomendas postais, vestidos, blusas e saias, camisolas. 

Perpétua, quando lhe competia escrever, vinha com o envelope fechado, tolice! Dona Carmosina não merecia o ordenado e o privilégio do cargo se não fosse perita em descolar envelopes, ler as páginas num piscar de olhos e por tudo em ordem novamente. Só lhe custava conter o desejo de emendar os erros de português.

Além da indefectível bênção do velho Zé Esteves. Deus te abençoe e te aumente, minha filha, cada carta continha queixas da filha, louvores à querida mana e a curiosidade das irmãs e do cunhado. Antonieta respondia com bilhetes curtos – a letra graúda, o papel caro e chique com um A gótico em alto-relevo – que Elisa e dona Carmosina devoravam juntas, ali mesmo na repartição.

Dona Carmosina lera também a carta de Ricardo, a de Ricardo e outras. Aliás, fora a ingénua epístola do rapaz, pedindo à tia bênção, bola de futebol e discrição que… nada, isso não interessa a ninguém – dona Carmosina afasta a lembrança, retorna às palavras cruzadas: fruta brasileira de origem asiática, cinco letras, fácil demais.

Essa longa correspondência, agora de repente encerrada sem explicação válida, a não ser doença grave ou morte de Tieta, revestia-se de aspectos dignos de atenção e estudo, a começar pela falta de endereço completo da destinatária de São Paulo, rua, número da porta e do apartamento, se vivesse em edifício; apenas uma caixa postal, fria e anónima.

Apesar de Agreste não passar de um ovo onde todos se conheciam, tanto Perpétua quanto Elisa apressaram-se a enviar endereços completos. Perpétua Esteves Batista, Praça Desembargador Oliva, número 19; Elisa Esteves Simas Rua do Rosado, 28; inclusive endereço do pai: José Esteves Filho, Beco da Matança, s.n.

E o marido? Sem idade, sem rosto, impalpável. Pronome, comendas, vagas indústrias, os cabelos brancos na foto da revista. Dona Carmosina dedicou grande parte do seu tempo à análise e ao esclarecimento da apaixonante advinha. Reunindo dados, pistas e conjecturando.

O Major, ainda vivo, encarregara-se da resposta inicial mas não chegou ao fim sem pedir auxílio a dona Carmosina. Ela pôs ordem nas notícias, dando ênfase aos factos, quando necessário. Carta longa, relatório abarcando cerca de quinze anos de acontecimentos.

Notícias de toda a família, detalhadas. Do pai, Zé Esteves, beirando os oitenta mas sempre rijo, e de Tonha, a segunda esposa (mais moça do que Perpétua, da idade de Tieta, mas acabada na pobreza e no desleixo, simples apêndice do Velho). 

Vivia o casal da caridade de filhas e genros, nada possuindo de seu, nem bens nem rendas. Zé Esteves, trapalhão a julgar-se sabido, na ânsia de enganar os outros pusera fora terras, rebanhos de cabras, plantações de mandioca, a casa própria, tudo.

Abençoava a filha e a perdoava, pedia-lhe uma esmola. Dona Carmosina modificou a redacção, a forma e o conteúdo, em lugar de Zé Esteves perdoar, pediu perdão à filha, falou da velhice e da pobreza, insinuando ajuda; um pai pode pedir perdão mas não pode pedir esmola aos filhos.

Trecho tão comovente, na bela letra do Major, ia tocar o coração de Tieta, a própria dona Carmosina ficara com os olhos húmidos. Sempre tivera jeito para escrever, jeito e vontade. Mas, cadê coragem?

Relato do casamento de Perpétua, nome e título do marido, Major Cupertino Batista, oficial reformado da polícia Militar do Estado, seu cunhado às ordens. Deus abençoara o matrimónio, dera-lhe dois filhos, Ricardo, de cinco anos, Cupertino, dito Peto, de dois, e agora novamente fecundara o ventre de Perpétua, grávida daquele que seria o terceiro se houvesse nascido.

O Major, bom de espoleta, não negava fogo, constatara dona Carmosina, mas não tocou nesse trecho, não queria histórias com Perpétua. Encarregou-se, sim, de descrever o casamento de Elisa, a noiva mais linda já vista em Agreste, com Astério Simas, filho e herdeiro de seu Ananias, aquele da loja de fazendas da Rua da Frente, só que a loja nem parecia a mesma.

Na longínqua e decadente cidade de Sant’Ana do Agreste o comércio reduzira-se a metade naqueles quinze anos. Também a população diminuíra, composta por uma maioria de velhos, pois o clima continuava admirável, prolongando a vida dos que ali se deixavam ficar apesar da pobreza, da falta de recursos e de futuro.

O povo só não morria de fome porque o rio e o mangue forneciam com fartura peixes, guaiamus, caranguejos, pitus incomparáveis, e sobravam frutas o ano inteiro: bananas, mangas, jacas, mangabas, pinhas, abacaxis, goiabas e araçás, sapotis e melancias e o coqueiral sem fim e sem dono.


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