quarta-feira, abril 02, 2008

A Minha Professora, Srª. Dª. Ludovina


A MINHA PROFESSORA, Srª. Dª. LUDOVINA

O último programa dos Prós e Contras sobre o clima que hoje se vive nas escolas trouxe-me á memória a minha Professora de Instrução Primária, a Sr.ª. Dª. Ludovina.

Estávamos em meados da década de 40 quando entrei para a escola e os professores constituíam, nessa época, um dos pilares do Estado Novo para transmitirem às novas gerações os princípios da doutrina social do regime de Salazar.

Com cinco anos de idade eu não entendia nada disso mas o que eu posso dizer é que a minha Prof.ª, Srª. Dª. Ludovina, foi a pessoa de quem eu tive mais medo em toda a minha vida e, por isso, quando ontem assisti a toda aquela polémica sobre autoridade não pude deixar de pensar na minha professora da escola primária que foi, para mim, a personificação da própria autoridade com tudo o que este conceito tem de negativo.

Já em fim de carreira por força da idade, a Srª. Dª. Ludovina parecia, aos meus olhos de criança, ter sido sempre velha, gorda, com os pulsos grossos como os dos homens mas cheios de pulseiras e aquele carrapito pregado na nuca, mais se assemelhava a uma espécie de carrasco de crianças indefesas que nos aparecia nos sonhos maus enquanto dormimos.

Depois, tínhamos os instrumentos de tortura:

- Um ponteiro que ela mantinha ao alto, do seu lado direito, com que vergastava a cabeça dos alunos quando os chamava ao quadro negro ou ao mapa e as coisas não corriam bem;

- Uma régua com cerca de 50cm de comprimento por 1 de espessura e que ela usava de duas maneiras: segurando na mão do aluno com a esquerda e batendo com a direita dobrando-lhe bem os dedos para baixo de forma a expor o mais possível a palma da mão ao impacto com a régua ou, numa versão mais dura, pondo as costas da mão do aluno em cima da secretária numa faixa em que ela não era lisa e batendo-lhe com a régua com toda a sua força puxando o braço bem atrás e acima sendo que o resultado era sempre o mesmo; mãos inchadas, às vezes mesmo muito inchadas.

-O terceiro instrumento de tortura, este de carácter psicológico, consistia numa carapuça de papel com orelhas de burro que era colocada na cabeça do aluno que era exposto à janela com um livro aberto nas mãos para escárnio e troça de toda a rapaziada que passava na rua.

Este foi o cenário com que eu, aos 5 anos, me deparei quando cheguei à escola e por isso, regressado, um dia a casa, disse à minha mãe:

- Mamã, não vou mais à escola porque eu não sei nada!

Tentava eu, considerando-me à partida um caso perdido para o ensino, escapar à tortura que me esperava…mas sem resultado, já se vê.

Não interessa se fiz a 4ª Classe aos 9 anos com distinção porque durante todo o tempo em que andei na escola considerei-me a criança mais infeliz deste mundo e, por arrastamento, odiei o estudo, os livros e o ensino invejando sinceramente os miúdos da rua, de pé descalço, que não andavam na escola e não tinham que ter medo da Srª. D.ª Ludovina mesmo que à noite, como eles, eu só tivesse um bocado de pão para comer.

Confrontando a minha dolorosa experiência enquanto aluno da instrução primária com as cenas do vídeo, mostrado até à exaustão, em que professora e aluna se digladiam na sala de aulas o que, ao que parece, está longe de ser caso único, tenho de concluir que no tempo que levo de vida o mundo já não tem nada a ver com aquele onde nasci e não é por haver hoje coisas que então não existiam é porque as pessoas vivem e relacionam-se de maneira não só diferente como às vezes mesmo oposta.

A minha professora, Srª. Dª. Ludovina, (o respeito, leia-se medo, que desenvolvi por ela fará, mesmo aos 100 anos que eu viva, a tratá-la sempre assim…) provocou estragos em mim que perduraram pela vida fora porque não é impunemente que se é criança… mas ela tinha atrás de si o apoio e o consentimento das famílias, do governo e mais do que isso, de um regime político que pretendia inculcar nos cidadãos, logo a partir de crianças, estados de espírito de medo, obediência cega e disciplina indiscutível.

Nas escolas de Salazar os professores não existiam só para ensinar mas também para amedrontar porque aquilo que se preparava era uma nova sociedade de pessoas, ordeiras, bem comportadas, respeitadoras, tementes a Deus e a toda a espécie de autoridades terrenas que usassem farda ou desempenhassem cargos oficiais.

É evidente que não é a isto que temos de voltar, isto é passado, um passado de triste memória que nos envergonha embora não tanto como as cenas do Carolina Michaelis, mas talvez estas não existissem, pelo menos de uma forma tão generalizada se as escolas de Salazar ao serem desmanteladas não tivessem dado lugar aos exageros dos períodos pós revolucionários.

É certo, que passámos de 300.000 para 1.600.000 alunos e isto ajuda a explicar muita coisa que correu e ainda corre mal no ensino mas foram também postas em prática experiências pedagógicas, de pessoas certamente bem intencionadas que passaram pelo Ministério da Educação, e que só vieram complicar uma situação que, já de si, não é nada fácil.

Como disse no Prós e Contras a professora de Matemática, isto vai levar várias gerações até se chegar a um ensino mais consensual e de qualidade aceitável e isto na expectativa de que a sociedade portuguesa, no seu todo, evolua para padrões de melhor qualidade de vida porque a escola é o reflexo da sociedade, a sua pedra de toque.

A juventude de hoje é muito diferente daquela que entrou comigo para a escola em 1945, têm agora experiências de vida que nós não tínhamos, dispõem de coisas que nós nem em sonhos podíamos admitir que viessem a existir, têm pais que mais parecem irmãos, uma vontade e um querer que podem exercitar sem grandes obstáculos e proibições e eu reconheço neles uma maturidade que nós não tínhamos.

Mas, tudo isto que à partida parecem vantagens, e até o são, pode igualmente, dificultar bastante a vida aos professores e afectar o ambiente nas escolas porque o ensino não é um processo lúdico nem a escola um simples local de convívio agradável entre jovens.

A transmissão de conhecimentos é um processo árduo, difícil, que exige entrega, vontade, sacrifício, concentração, trabalho e, naturalmente, o cenário propício a que tudo isto possa ocorrer não é, com certeza, uma escola onde, ao entrar, como referia a professora de matemática, mais parece um manicómio e como os tempos do ponteiro, da palmatória e das orelhas de burro já lá vão, professores e alunos têm que se entenderem entre si para instalar nas escolas e nas relações entre uns e outros o ambiente necessário a que o processo de ensino seja passível de sucesso.

Parece haver experiências bem sucedidas neste sentido que foram relatadas pelos seus protagonistas no programa para quem as quis ouvir e a mim, parece-me, que aquilo que de bom foi possível fazer numa escola pode, igualmente, ser feito em outras e, como provavelmente, irá ser um trabalho para várias gerações o melhor será começar quanto antes… isto se o Secretário Geral da FENPROF não colocar permanentemente os professores a desfilarem pelas ruas em protesto contra a Ministra da Educação…





PS- Para maior infelicidade minha e do meu irmão, que às mãos da Srª. Profª. era ainda mais vítima do que eu, a Sr.ª D.ª Ludovina era visita lá de casa às 5ª feiras à noite como era hábito nesse tempo como reconhecimento do prestígio dos professores por parte das famílias dos alunos mais ricas.

Claro que, quando ela batia à porta nós já não sabíamos onde nos havíamos de meter e o problema de comer ou não a sopa já não se colocava porque se nos mandasse até seríamos capazes de partir os pratos à dentada quanto mais comer a sopa.

TODO O TEMPO DO MUNDO de Rui Veloso

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