sábado, outubro 20, 2012

Começa de mansinho, no Rio de Janeiro e de seguida instrumentos e instrumentistas espalhados pelo Brasil e pelo mundo. Esta música dá - nos fôlego...

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Aviso aos mais incautos...


ZECA AFONSO - A FORMIGA NO CARREIRO



A ZECA AFONSO

Zeca Afonso foi uma personagem ímpar, inigualável no panorama musical e na história deste país.

Não possuo nenhuma preparação musical para falar da voz e da música de Zeca Afonso e nem sequer o meu pobre ouvido me pode ajudar nesse aspecto mas em mim, o impacto das suas canções é tão grande que, fora eu um crítico musical, e a diferença não se faria sentir.

A música e a voz do Zeca Afonso bate-nos em cheio, entra-nos pelos poros, sente-se na alma, comove-nos, sensibiliza-nos.

No tempo, separam-me de Zeca Afonso quase dez anos, ele nasceu em 29 e eu em 39 mas se ele não tivesse desaparecido prematuramente seria hoje, com os seus 83 anos, feitos em Agosto, o mais jovem de todos nós.

Zeca Afonso foi sempre igual a si próprio, os anos não o moldaram, a sua intransigência à volta dos valores era total porque o seu mundo não era deste mundo, o seu mundo era o da Utopia, ele mesmo explica:

Cidade
Sem muros nem ameias
Gente igual por dentro
Gente igual por fora
Onde a folha da palma
Afaga a cantaria
Cidade do Homem
Não do lobo mas irmão
Capital da alegria

Braço que dormes
Nos braços do rio
Toma o fruto da terra
É teu a ti o deves
Lança o teu desafio

Homem que olhas nos olhos
Que não negas
O sorriso a palavra forte e justa
Homem para quem
O nada disto custa
Será que existe
Lá para os lados do oriente
Este rio este rumo esta gaivota
Que outro fumo deverei seguir
Na minha rota?

Por isso, quando começamos a falar do artista inevitavelmente acabamos na pessoa que sobreleva os restantes aspectos. Os dotes de cantor e de músico constituíram uma “prenda” da natureza a uma personalidade rica, pura e de carácter excepcional.

Por sete anos que não nos cruzámos na cidade da Beira, em Moçambique, pois ele saiu em 1967 enquanto que eu cheguei em 1972 mas o contacto aconteceu através dos seus 5 Álbuns editados por essa altura e que eu adquiri na cidade, dos quais me atrevo a destacar as Cantigas de Maio e dentro delas a enorme e deliciosa Grândola Vila Morena que de tão deliciosa que era conseguiu enganar a PIDE que não a proibiu de passar na Rádio ficando disponível para marcar o arranque irreversível da Revolução do 25 de Abril.

Dizia, um amigo meu, há muitos anos atrás, ainda em Moçambique, que sempre que ouvia a Grândola os cabelos dos braços eriçavam-se e ficava com pele de galinha… e era um pacato comerciante mais entendido em bacalhau que em política.

A guerra em Moçambique não era directamente do Zeca Afonso, era da Frelimo e por isso regressou a Portugal deixando lá ficar o exemplo do único professor branco que deu aulas numa associação de negros e, claro…as canções, que foram de tal forma importantes que levaram Samora Machel, anos mais tarde, a recebê-lo com honras de Chefe de Estado.

Considero Zeca Afonso um dos injustiçados deste país: a solidariedade, a justiça social, o respeito pelas pessoas, o amor desinteressado pelos outros que foram suas bandeiras em vida, nunca constituíram verdadeiros desígnios da nossa sociedade e por isso Zeca Afonso não tinha muito espaço nela se é que tinha algum.

O Portugal dos lucros exorbitantes, dos especuladores, dos milionários na hora, dos oportunistas e corruptos, dos políticos que passam a vida a manobrar para ganharem ou manterem-se no poder, constitui uma realidade do pós 25 de Abril que seria sempre um espinho cravado no seu coração de poeta das utopias.

Mas a sua obra é vasta e está longe de ser apenas de temas políticos e sociais: as baladas, o folclore, os fados, as canções de embalar, tudo lá está na melhor voz masculina do nosso panorama musical.

Ouçam e comparem. Dizem entendidos insuspeitos que não tivera ele nascido neste pequeno país e as suas canções já teriam dado várias voltas ao mundo.

De qualquer maneira, elas estão editadas em CD e não há razão nenhuma para não nos deliciarmos em ouvi-las.

O que a atormentará?

GABRIELA
CRAVO
E
CANELA

Episódio Nº 123


Voltou-se para o filho. Diga a tua mulher e a Jerusa para se aprontarem. Vão os três levar a moça. Depressa.

Alfredo abriu a boca, ia falar. Ramiro repetiu:

 - Depressa!

Foi assim que naquela noite ela chegou em casa acompanhada por um deputado, sua esposa e filha. A mulher de Alfredo ia calada, roendo-se por dentro. Mas Jerusa lhe dava o braço, falava de mil coisas. A sorte era a casa de Dª Arminda estar fechada. Dia de sessão, a parteira ainda não chegara. Raros curiosos subiam a rua, a caçada prosseguia.

Nacib veio pouco mais de meia-noite e ainda ficou na janela a ver a passagem dos jagunços de volta do morro. Apenas as subidas ficaram guardadas. Havia quem dissesse o negro ter caído no precipício. Finalmente foram deitar-se.

Há muito tempo não estivera Gabriela tão carinhosa, tão se entregando e tanto dele tomando como naquela noite. Ultimamente até ele já se queixara, ela andava arredia, esquiva, como se estivesse sempre cansada. Nunca se recusava quando ele a queria. Não mais o espicaçava, porém, como antes – a fazer-lhe cócegas, a exigir carinho e posse – quando ele chegava fatigado e se atirava com sono na cama.

Ria somente, deixava-o dormir, a perna de Nacib sobre a sua anca. Quando ele a buscava entregava-se, risonha, chamava-o “moço bonito”, gemia em seus braços: mas onde estava aquela fúria de outrora? Como se agora fosse alegre brinquedo o que antes era uma loucura de amor, um nascer e morrer, um mistério cada noite desvendado e renovado, todas as vezes sendo igual à primeira, num espanto de descoberta, parecendo ser a última num desespero de fim.

Ele até já se queixara a Tonico, seu antigo confidente. O tabelião lhe explicara que assim se passava em todos os casamentos: o amor se acalmava, doce amor de esposa, discreto e espaçado, não mais a violência da amante, exigente e lasciva. Boa explicação, verdadeira talvez, mas não consolava. Andava pensando em falar a Gabriela.

Naquela noite, porém, ela voltara a ser a mesma de outrora. Seu calor o queimava, fogueira ardente, chama impossível de apagar, fogo sem cinza, incêndio de suspiros e ais. A pele de Gabriela queimava sua pele. Aquela sua mulher ele não a tinha apenas na cama. Estava pra sempre cravada em seu peito, cosida em seu corpo, na sola dos pés, no couro da cabeça, na ponta dos dedos.

Pensava que seria doce morrer nos seus braços. Feliz adormeceu, a perna sobre a anca cansada de Gabriela.

Às três horas, Gabriela enxergou, pela frincha entreaberta, Amâncio a fumar junto ao poste, jagunços mais abaixo. Foi buscar Fagundes. Ao passar junto ao quarto de dormir, viu Nacib agitado no sono, sentindo falta da sua anca. Entrou, pôs um travesseiro sob a perna inquieta. Nacib sorria, era um moço tão bom!

 - Deus um dia te paga – Fagundes se despedia.

 - Compra a roça com Clemente.

Amâncio apressava:

 - Vamos. Depressa! – E para Gabriela: - Ainda uma vez, obrigado.

Fagundes voltou-se mais adiante e a viu parada à porta. Não havia no mundo nada igual. Quem podia com ela se comparar? 


ENTREVISTA FICCIONADA
 COM JESUS Nº 81 SOBRE O TEMA:
 “A CÉSAR O QUE É DE CÉSAR”


RAQUEL -  Palestina, há 2000 anos. Um país ocupado. Violência diária: o terror das tropas romanas e a resistência armada da população. Uma situação similar à vivida hoje nos vários pontos do planeta. Connosco, mais uma vez, Jesus Cristo.

JESUS -  Obrigado, Raquel, por me dares a oportunidade de falar, mais uma vez, com tanta gente que eu não vejo, mas que está nos ouvindo.

RAQUEL -  Nos contava que em seu tempo havia guerrilha rural na Galileia e guerrilha urbana em Jerusalém. E que em seu grupo participava mais de um guerrilheiro zelota. É assim?

JESUS -  Sim, mais que um e que dois.

RAQUEL -  Mas o senhor não optou pela luta armada. Por quê?

JESUS -  A primeira coisa era abrir os olhos e os ouvidos do povo. A águia tem duas garras e com as duas ataca. Meu povo era presa das tropas estrangeiras. Mas não eram só os romanos. Os sacerdotes do Templo também faziam das pessoas reféns do medo. Soldados e sacerdotes: as duas garras.

RAQUEL -  Explique-nos melhor.

JESUS -  Os romanos tiravam o nosso sangue com os impostos e nos aterrorizavam com suas armas. E os sacerdotes nos adormeciam com o deus que pregavam. Haviam construído o Reino do Diabo. Nós anunciávamos o Reino de Deus.

RAQUEL -  Os sacerdotes tinham tanto poder?

JESUS -  Tinham o Templo, um grande negócio: a venda de animais para os sacrifícios, o câmbio de moedas, o comércio das coisas de Deus. Tinham a Lei, um jugo pesado: jejum, esmolas, dízimos. E tinham o medo, Raquel: pregavam um deus castigador que deixava de fora os doentes, as mulheres e os pobres.

RAQUEL -  E as pessoas se resignavam?

JESUS -  As pessoas estavam cegas, surdas, paralisadas.

RAQUEL -  O senhor enfrentou esse poder. Foi um revolucionário?

JESUS -  Eu disse: ninguém por cima de ninguém, todos somos irmãos, todas somos irmãs. E Deus, é o único Senhor.

RAQUEL - E por dizer essas coisas o poder religioso o perseguiu. O senhor se considera um dissidente, um herege?

JESUS - Sim. Quiseram-me apedrejar várias vezes por heresia. Expulsaram-me da sinagoga. E fui condenado à morte pelo Sumo Sacerdote por blasfémia.

RAQUEL - Porém, o senhor foi tolerante com o poder político. O senhor esteve de acordo com o pagamento de impostos ao imperador de Roma.

JESUS -  A que te referes?

RAQUEL -  Refiro-me à sua famosa frase que todos os políticos do mundo citam: “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.” Quer dizer, a César, os impostos e a Deus, os louvores.

JESUS -  Não, eu não disse isso, Raquel. Eu disse: não dêem a César o que não é de César. Foi isso que eu disse.

RAQUEL – Ao contrário, então?

JESUS - A direito. Porque esse homem, o César, julgava-se Deus. Arrogante, soberbo. Mandava gravar sua cara nas moedas. Eu disse: Não dêem a ele o que lhes pede. Ponhamo-lo em seu lugar. É apenas um homem. E a Deus, o que é de Deus. Deus por cima de todos.

RAQUEL -  Então, o senhor não aprovava o pagamento de impostos?

JESUS -  Como ia eu aprovar que o povo pagasse impostos a um império estrangeiro? Como entregar tributos a um homem que se acreditava Deus?

RAQUEL -  E por que distorceram tanto as suas palavras nos evangelhos?

JESUS - Não te disse que os romanos nos mantinham aterrorizados? Parece que àqueles que depois escreveram sobre o Reino de Deus ainda lhes tremiam as pernas frente a Roma.

RAQUEL - Naquele mundo violento, tão parecido ao nosso, qual foi o projecto político de Jesus Cristo? Não percam nosso próximo programa. Raquel Pérez. Emissoras Latinas, Jerusalém.


NOTA – Nesta entrevista, como de resto em todas elas, é nítido o que tem sido o papel e a preocupação da igreja de Roma criada pelo imperador Constantino: um instrumento poderosíssimo ao serviço do poder político e dos interesses materiais em vigor ao longo dos tempos das classes sociais mais altas e com as quais se confundiram sempre os interesses de toda a estrutura hierárquica do Vaticano desde o mais simples sacristão até ao Papa.

Para além de vozes isoladas, arriscadas para os seus autores, que denunciaram todo este esquema de autêntica fraude de consciências humanas, apenas o Concílio Vaticano II, em 1961, pareceu ser um despertar oficial para esta situação.

A Igreja de hoje, com os seus apelos à paz mundial e à justiça social tem um discurso, neste aspecto, certo, mas perdeu força, os poderosos que decidem não lhe dão importância, não ligam ao que ela diz e todo o seu passado e muito do seu presente também não a recomendam…


sexta-feira, outubro 19, 2012

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É a chamada crise nos transportes... Por mim, já não viajo mais.


DESABAFOS DE UM PADRE


Eu estava tão nervoso na minha primeira missa, que no sermão não conseguia falar. Por isso, antes da segunda missa, dirigi-me ao Bispo e perguntei como devia fazer para ficar mais relaxado. Ele, por sua vez, recomendou-me o seguinte:

 - Coloque umas gotinhas de Vodka na água e vai ver que da próxima vez estará mais relaxado.

No Domingo seguinte, apliquei a sugestão do meu Bispo e fiquei tão relaxado que podia falar alto até no meio de uma tempestade ,de descontraído que me sentia.

Ao chegar a casa encontrei um bilhete do meu Bispo, que dizia o seguinte.

Padreco:

1º - Da próxima vez coloque umas gotas de vodka na água e não umas gotas de água no vodka;

2º - Não há necessidade de pôr limão e sal na borda do cálice;

3º - O missal não é, nem deve ser usado, como apoio para o corpo;

4º - Aquela casinha ao lado do altar é o confessionário e não WC;

5º - Evite apoiar-se na imagem de nossa Senhora e muito menos abraçá-la e beijá-la;

6º - Os Mandamentos são dez e não doze;

7º - Doze, eram os apóstolos e nenhum deles era anão;

8º - Não nos devemos referir ao nosso Salvador e aos apóstolos como "JC y sus Muchachos";

9º - Não deverá referir-se a Judas como aquele "filho da puta";

10º- Não deverá tratar o Papa como o "Padrinho";

11º - Judas não enforcou Jesus e Bin Laden não tem nada a ver com esta história;

12º - A Água Benta é para benzer e não para refrescar a nuca;

13º - Nunca reze a missa sentado nas escadas do Altar;

14º - Quando se ajoelhar, não utilize a Bíblia como apoio para os joelhos;

15º - Utiliza-se o termo "amén" e não "ó meu";

16º - As hóstias devem ser distribuídas pelos fiéis e não usadas como aperitivo para o vinho;

17º - Procure usar roupas por baixo da batina e evite abanar-se quando estiver com calor;

18º - Os pecadores vão para o inferno e não para a "puta que os pariu";

19º - A iniciativa de chamar os fiéis para dançar foi plausível mas fazer um comboio à volta da Igreja...;

20º - Não deve sugerir que se escreva na porta da Igreja "HÓSTIA BAR";

PS - Aquele que estava sentado no canto do Altar, ao qual se referiu  como "paneleiro travesti de saias"... era EU!...

Espero que estas suas falhas sejam corrigidas no próximo Domingo.

O Bispo





O Alexandre e o Mar

O meu colega e amigo Alexandre, vítima precoce de um cancro feroz, desengalgado, que o tomou de gancho e decidiu perder pouco tempo com ele porque, vá lá saber-se… não simpatizou ou talvez apenas por ter muito que fazer… levou-o dolorosa e rapidamente.

Sem paciência, nem tempo e muito menos disposição porque as dores eram muitas, o Alexandre, nos últimos dias da sua vida, pedia à Bela, sua mulher de sempre, que o metesse no carro e o levasse a ver o mar.

Estendendo a vista pelo horizonte sem fim das esverdeadas águas do Oceano Atlântico, ele encontrava como que a continuação da vida que lhe fugia, a sensação que desejava e as paredes do seu quarto não lhe permitiam.

Agradeço-te, Alexandre, não me teres chamado para o pé de ti, como fazias quando eu te lia, nos bancos do Jardim do Príncipe Real, um livro do Pitigrilli. Então, chorávamos a rir e era muito agradável… Poupaste-me as lágrimas que em nada te teriam ajudado. Ficaram, no entanto, sem eu o saber, para serem derramadas sobre a carta em que a Bela me deu a noticia, tempos depois, do que foram os teus últimos momentos.

Agora, gosto de pensar que ficaste à beira-mar e neste momento, neste preciso momento, continuas lá, sentado em uma qualquer rocha, num local à tua escolha, olhando o horizonte sem que nada se possa intrometer entre a tua vista e o infinito.

Tomei a liberdade de escolher estas águas, de vários tons, entre eles o verde, o nosso verde... com o branco da espuma, como o nosso Sporting.
Repara, que o horizonte está livre, desocupado, nada impede a tua vista de o percorrer sem limites... Vê, como ele está pacífico, submisso, doce, parece convidar-te a ires com ele, a ti, que o procuraste nos últimos dias da tua vida para mitigares o teu sofrimento.



GABRIELA
CRAVO
E
CANELA

Episódio Nº 122



 - É bom que fiquem sabendo… - disse para os filhos, a nora e a neta – Se Dª Gabriela algum dia recorrer a nós, ela não pede, manda, Venha, compadre.

Levantava-se, saía com Amâncio para outra sala. O homem do revólver passava por eles, dava boa noite, ia embora. Gabriela ficou sem saber o que fazer, que dizer, onde botar as mãos. Jerusa então lhe sorriu e falou.

 - Uma vez conversei com a senhora, se lembra? Por causa da festa de aniversário do avô… começou Jerusa, mas logo silenciou, não estaria sendo indelicada ao recordar o tempo quando ela ainda era cozinheira do árabe?

 - Tou lembrada, sim. Cozinhei um horror de doces. Tava bom?

Tonico se animou.

 - Gabriela é nossa velha amiga. Afilhada minha e de Olga. Fomos padrinhos de seu casamento.

A esposa do Dr. Alfredo dignou-se sorrir. Jerusa perguntou:

 - Não quer se servir de um doce? Tomar um licor?

Obrigado, não se incomode.

Aceitou uma xícara de café. A voz de Amâncio veio da sala chamando Dr. Alfredo. O deputado não demorou a voltar, convidava:

 - Quer vir comigo, por favor?

 - Quando Gabriela entrou na outra sala, Ramiro lhe disse:

 - Minha filha, foi um grande favor o que nos fez. Só que ainda lhe queria dever mais, pode ser?

 - Se tiver em minhas mãos…

 - É preciso tirar o negro de sua casa. Sem ninguém saber. E isso só pode ser pela madrugada. Ele precisa ficar lá escondido, ninguém deve saber. Desculpe lhe dizer, nem Nacib pode se inteirar.

Ele vai chegar depois de fechar o bar.

 - Não diga nada a ele. Deixe ele dormir. Lá prás três horas, às três em ponto, se levante, chegue na janela. Repare na rua se tem uns homens. Compadre Amâncio estará com eles. Se estiverem, abra a porta, deixe Fagundes sair a gente cuida dele.

 - Não vão prender ele? Fazer nenhum mal?

 - Pode ficar descansada. Vamos evitar que o matem.

 - Pois não. Agora vou embora, me dê licença. Já é tarde.

 - Não irá sozinha. Vou mandar lhe acompanhar. Alfredo leve Dª Gabriela até em casa.

Gabriela sorriu.

 - Não sei, não senhor… De noite sozinha na rua com Dr. Alfredo… Tenho de passar pela praia pra não ser notada pelo pessoal do bar… Se alguém ver, que é que vai pensar? Pensar e dizer? Amanhã seu Nacib já será sabedor.

 - Tem razão, minha filha. Desculpe, não pensei. 

quinta-feira, outubro 18, 2012

Dedicado a todos os amigos do Memórias Futuras da minha geração que se lembram perfeitamente destas caras... e de como dançavam e se dançavam!

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Fotografia da parte superior da Igreja do Carmo tirada cá de baixo, do Campo das Cebolas.


ANDRÉ RIEU, a sua Orquestra e o seu violino Stradivarius presta tributo, em Nova York, a FranK Sinatra tocando, deliciando e comovendo a assistência (e não só...) My Way.


OS OLHOS


A vida moderna está muito distante da sociedade de pequena escala que em tempos fomos e às vezes torna-se tão hierárquica e competitiva que mais parece um bando de chimpanzés ou uma matilha de lobos.


O que acontece quando atravessamos a divisória da cooperação em sentido contrário? Deixamos de falar e pomo-nos a apontar para mostrar as coisas uns aos outros? Evitamos o contacto visual?

Pergunto-me se os óculos de sol não serão uma maneira moderna de correr as cortinas sobre as janelas da alma, como os olhos opacos dos nossos parentes primatas. Quando não se destinam a proteger do sol, não serão usados sobretudo em ambientes sociais competitivos e hierárquicos?

Cheio de curiosidade a este respeito, David Sloan Wilson, enviou um e-mail a Mike Tomaselo, exactamente o cientista que desenvolveu a teoria "do olho cooperativo" para explicar como os nossos olhos se tornaram tão diferentes dos outros primatas, e recebeu a seguinte resposta:

- "Não conheço dados, mas vi o Campeonato Mundial de Pocker na televisão e todos eles usavam óculos escuros de sol."

Estes comportamentos revelam uma preocupação competitiva prevalecente que é o contrário da que teve por base a evolução dos nossos olhos. Incapazes de os tornar opacos, como os dos chimpazés, tapamo-los com óculos escuros.

A humanidade evoluiu, cresceram os grupos sociais, hierarquizaram-se inevitàvelmente, as "cartas" do evolucionismo estavam lançadas, a humanidade encontrava-se por sua conta..., o igualitarismo das sociedades primitivas dos Bosquímanos do Kalahari ficou desadequado, milhões de anos de evolução tornaram os nossos olhos perigosos aos nossos intentos... a competição veio para ficar, resta saber se para nos destruir.

Certo, é que nos continuamos a extasiar perante uns olhos bonitos, expressão máxima da beleza natural do rosto humano. A evolução fez o seu trabalho, levou-nos, dentro dos nossos pequenos grupos sociais, com o toque de beleza dos nossos olhos, à igualdade, entreajuda e harmonia, e nós, para além de nos continuarmos a apaixonar por eles, vamos continuar a escondê-los para surpreendermos o nosso adversário?


Por favor, olhem-me, olhos nos olhos, frontalmente, olhem para dentro de mim, os olhos são a janela do meu rosto, abertas de par em par aguardam a tua visita, o interesse da tua pessoa por mim, há!,  e se vierem de óculos escuros, daqueles muitos escuros, horríveis e ameaçadores, que se usam agora, tirem-nos para cumprimentarem, como se fazia antigamente quando se andava de boné ou chapéu.
Nunca poderei esquecer a forma como o povo Luena se cumprimentava quando se cruzavam nos caminhos, lá nas terras do “fim-do-mundo”, do Alto-Zambeze, no Leste de Angola.
Parados, em frente um do o outro, os pulsos seguros com firmeza, perguntavam, os olhos nos olhos, brilhando de alegria por se verem:
 - “Gum”… “Gum”… “Gum”? … (estás bom?)
 Jamais aquele “olá”, olhando em frente, sem parar, baixando ligeiramente a cabeça, leve aceno de braço… mais despedimento que cumprimento…

Com  os cabelos espalhados pelo rosto

GABRIELA
CRAVO
E
CANELA

Episódio Nº 121


- Pode chamar o coronel Amâncio. Diga que é Altamiro.

O coronel surgiu na porta apressado:

 - Alguma coisa?

Os soldados estavam chegando na porta da casa. O homem os olhou, ficou calado, um dos soldados perguntou, vendo Amâncio:

 - Alguma novidade, coronel?

 - Nada, obrigado. Vão ficar onde estavam.

Depois que eles andaram, o homem do revólver contou:

 - Essa aí… Quer falar com o senhor. Da parte de Fagundes.

Só então Amâncio reparou em Gabriela. Logo a reconheceu:

 - Não é Gabriela? Quer me falar? Entre, faça o favor.

O homem também entrou. Do corredor Gabriela enxergou a sala de jantar, viu Tonico e Dr. Alfredo, a fumar, havia mais gente. Amâncio esperava, ela apontou o homem:

 - O recado é só para o senhor.

 - Vá lá para dentro, Altamiro. Fale, minha filha – sua voz macia.

 - Fagundes está lá em casa. Mandou lhe prevenir. Quer saber o que deve fazer. E tem de ser logo, daqui a pouco seu Nacib está de volta.

 - Em sua casa? Como foi parar lá?

 - Fugindo do morro. O quintal lá de casa começa no morro.

 - É verdade, nem tinha pensado. E porque você escondeu ele?

 - Conheço Fagundes faz tempo. Do sertão…

Amâncio sorriu. Tonico apareceu no corredor, curioso.

 - Muito obrigado, nunca hei-de esquecer. Entre comigo.

Tonico recuou para a sala. Ela entrou com Amâncio. E viu toda a família reunida: o velho Ramiro, numa cadeira de balanço, pálido como se já houvesse morrido mas de olhos brilhantes, iguais aos de um jovem.

Na mesa ainda havia pratos servidos, xícaras de café e garrafas de cerveja. Nas cadeiras, num canto da sala, Dr. Alfredo, a esposa e Jerusa. Tonico de pé, bestificado, a mirá-la de soslaio. Dr. Demóstenes, Dr. Maurício, uns três coronéis, sentados. A cozinha e o pátio ao fundo, cheios de homens armados. Para mais de quinze jagunços. As empregadas serviam de comer em pratos de flandres. Amâncio disse:

 - Todos conhecem, não é? Ga… D. Gabriela, senhora de Nacib, do bar. Veio aqui nos fazer um favor – E como se fosse o dono da casa, a ela se dirigiu – Sente, por obséquio.

Então todos lhe deram boa-noite. Tonico aproximou uma cadeira. Amâncio dirigia-se para o velho coronel, falava-lhe em voz baixa. O rosto de Ramiro animou-se, sorriu para Gabriela:

 - Bravos, menina. De hoje em diante, sou seu devedor.

Se precisar de mim alguma vez, é só vir aqui. De mim ou dos meus… - apontava a família no canto da sala, três sentados, um de pé; parecia um retrato, só faltavam D. Olga e a neta mais moça.

quarta-feira, outubro 17, 2012

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Estas máquinas "infernais" que me fazem lembrar a minha meninice...



BEM FÁCIL DE ENTENDER, NÃO ACHAM ?!

Sem tirar nem pôr ...


Diálogo entre Colbert e Mazarino durante o reinado de Luís XIV, na peça teatral Le Diable Rouge, de Antoine Rault:

Colbert: - Para arranjar dinheiro, há um momento em que enganar o contribuinte já não é possível. Eu gostaria, Senhor Superintendente, que me explicasse como é possível continuar a gastar quando já se está endividado até o pescoço...

Mazarino: - Um simples mortal, claro, quando está coberto de dívidas, vai parar à prisão. Mas o Estado... é diferente!!! Não se pode mandar o Estado para a prisão. Então, ele continua a endividar-se... Todos os Estados o fazem!

Colbert: - Ah, sim? Mas como faremos isso, se já criámos todos os impostos imagináveis?

Mazarino: - Criando outros.

Colbert: - Mas já não podemos lançar mais impostos sobre os pobres.

Mazarino: - Sim, é impossível.

Colbert: - E sobre os ricos?

Mazarino: - Os ricos também não. Eles parariam de gastar. E um rico que gasta faz viver centenas de pobres.

Colbert: - Então como faremos?

Mazarino: - Colbert! Tu pensas como um queijo, um penico de doente! Há uma quantidade enorme de pessoas entre os ricos e os pobres: as que trabalham sonhando enriquecer, e temendo empobrecer. É sobre essas que devemos lançar mais impostos, cada vez mais, sempre mais! Quanto mais lhes tirarmos, mais elas trabalharão para compensar o que lhes tiramos. Formam um reservatório inesgotável. É a classe média!


O Atestado Médico

(A Mentira)
 José Ricardo Costa:

"Imagine o meu caro que é professor, que é dia de exame do 12º Ano e vai ter que fazer uma vigilância.

Continue a imaginar, o despertador avariou durante a noite, ou fica preso no elevador, ou o seu filho já à porta do infantário, vomitou o quente, fétido, pastoso e húmido pequeno-almoço em cima da sua imaculada camisa.

Teve, portanto, de faltar à vigilância. Tem falta.

Ora esta coisa de um professor ficar com faltas injustificadas é complicado, por isso, convém justificá-la.

A questão agora é: como justificá-la?

Passemos, então à parte divertida. A única justificação para se ficar preso no elevador, do despertador avariar, ou de não poder ir para uma sala de exame com uma camisa suja de vomitado, ababalhada e mal cheirosa, é um atestado médico.

Qualquer pessoa com um pouco de bom senso percebe que aqui quem precisa do atestado será o elevador ou o despertador, mas não, só uma doença poderá justificar a sua ausência da sala de exame.

Vai ao médico, e a partir desse momento a situação deixa de ser divertida para passar a hilariante.

Chega-se ao médico com o ar mais saudável deste mundo, enfim, com o sorriso do Jorge Gabriel misturado com o arrazoado do Gabriel Alves e a felicidade do padre Milícias.

A partir deste momento mágico, gera-se um fenómeno que só pode ser explicado através de noções básicas de psicopatologia da vida quotidiana.

Os mesmos que explicam uma hipnose colectiva em Felgueiras, o holocausto ou o sucesso da TVI.

O professor sabe que não está doente, o médico sabe que ele não está doente, o Presidente do Executivo sabe que ele não está doente, o Director Regional sabe que ele não está doente.

O Ministério sabe que ele não está doente, e o próprio legislador que manda um professor que fica preso num elevador apresentar um atestado médico, também sabe que o professor não está doente.

Ora, num país em que isto acontece, para além do despertador que não toca, do elevador parado e da camisa vomitada, é o próprio país que está doente.

Um país assim, onde a mentira é legislada, só pode mesmo ser um país doente.

Vamos lá ver, a mentira em si não é patológica. Até pode ser útil, racional e eficaz em certas ocasiões, o que já será patológico é o desejo que temos de sermos enganados ou a capacidade para fingirmos que a mentira é verdade.

Lá nesse aspecto somos um bom exemplo do que dizia Goebbels:

- Uma mentira tantas vezes repetida transforma-se numa verdade.

Já Aristóteles percebia uma coisa muito engraçada: quando vamos ao teatro vamos com uma predisposição para sermos enganados, mas isso é normal.

Sabemos bem, depois de termos chorado baba e ranho a ver o ET que este é um boneco e que devemos guardar a baba e o ranho para outras ocasiões.

O problema, é que em Portugal confunde-se a ficção com a realidade, ele próprio, Portugal, é uma produção fictícia talvez desde D. Afonso Henriques, que Deus me perdoe.

A começar pela política. Os nossos políticos são descaradamente mentirosos, só que ninguém leva a mal porque estamos habituados aliás, em Portugal, é-se penalizado por falar verdade, mesmo que seja por boas razões, o que significa que em Portugal não há boas razões para falar verdade.

Se eu, num ambiente formal, disser a uma pessoa que tem uma nódoa na camisa, ela irá levar a mal, fica ofendida mas se eu disser isso é para ajudar, para que possa disfarçar a nódoa e não fazer má figura, mas ela fica zangada só porque eu vi a nódoa e porque assumi, perante ela, que sei que ela tem a nódoa e que sei que ela sabe que eu sei.

Nós, portugueses, adoramos viver enganados, iludidos e achamos normal que assim seja.

Por exemplo, lemos revistas sociais e ficamos derretidos (não falo do cérebro mas no plano emocional) ao vermos casais felicíssimos com vidas de sonho.

Pronto, sabemos que aquilo é tudo mentira, que muitos deles divorciam-se ao fim de três meses e que outros vivem num alcoolismo disfarçado, mas adoramos fingir que aquilo é tudo verdade.

Somos pobres, mas vivemos como os alemães e os franceses, somos ignorantes e culturalmente miseráveis, mas somos doutores e engenheiros, fazemos malabarismos e contorcionismos financeiros, mas vamos passar férias a Fortaleza.

Fazemos estádios caríssimos para dois ou três jogos em 15 dias, temos auto-estradas modernas e europeias para ver passar ao seu lado eucaliptos, mato por limpar, florestas ardidas, barracões com chapas de zinco, casas horríveis, lixo e fábricas desactivadas.

Portugal mente compulsivamente, mente perante si próprio e mente perante o mundo.

Claro que não é um professor que falta a uma vigilância de um exame por ficar preso no elevador que precisa de um atestado médico.

É Portugal que precisa de um atestado médico, antes que vomite sobre si próprio.


 Nota - O autor deste texto é professor de filosofia e o que ele diz, tristemente, em grande parte, é verdade: a mentira é uma constante das nossas vidas, pública e privada, a pública com graves consequências para o país, das outras, salvam-se as piedosas... 

Carnes não abundam mas....talvez seja bailarina.

GABRIELA
CRAVO
E
CANELA

Episódio Nº 120

Entrou em ruas desertas, chegou ao Grupo Escolar, localizou a residência de Amâncio, uma de portão azul como o dono do Bate-Fundo a informara.

Tudo em silêncio, as luzes apagadas. Agora uma lua tardia subia no céu, iluminava a praia larga, os coqueiros no caminho do Malhado. Bateu palmas, sem resultado. Novamente. Cachorros latiram na vizinhança, outros mais longe responderam. Gabriela gritou: «Ó de casa!» Bateu as mãos outra vez com toda a força, chegavam a doer. Finalmente houve movimento nos fundos da casa. Acenderam uma luz, perguntaram:

 - Quem é?

 - É de paz.

Um mulato surgiu, nu da cintura para cima, arma na mão.

 - Seu coronel Amâncio está?

 - Que quer com ele? – Olhava-a desconfiado.

 - É coisa de precisão e de muita pressa.

 - Não tá não.

 - E onde está?

 - Para que quer saber, o que quer com ele?

 - Já disse…

 - Não disse nada. De precisão e de pressa… Só isso?

Que podia fazer? Devia arriscar:

 - Tenho um recado para ele.

 - De quem?

 - De Fagundes…

O homem recuou um passo, adiantou-se depois, fitou-a:

 - Tá falando a verdade?

 - Pura verdade…

 - Olhe bem para mim: se não for verdade…

 - Depressa, faz o favor.

 - Espera aí.

Entrou em casa, demorou uns minutos, voltou, havia vestido uma camisa e apagado a luz.

 - Venha comigo – Enfiou o revólver entre a calça e a barriga, a coronha aparecia.

Voltaram a andar. Este não lhe fez senão uma pergunta:

 - Ele conseguiu escapar?

Respondeu com a cabeça. Entraram na rua do coronel Ramiro. Pararam frente à casa tão conhecida. Na esquina, próximo da Intendência, dois soldados de polícia olharam e deram alguns passos em direcção a eles. O homem do revólver batia na porta. Pelas janelas abertas saía um rumor abafado de vozes. Jerusa apareceu na janela, olhou Gabriela num espanto tão grande que ela sorriu. Tanta gente se espantara ao vê-la naquela noite…

Mais que todos, o negro Fagundes.

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