quinta-feira, dezembro 20, 2007


Uma História Virtual

Entrei apressado e com muita fome no restaurante. Escolhi uma mesa bem afastada do movimento porque queria aproveitar os poucos minutos que dispunha naquele dia para comer e acertar uns bugs de programação num sistema que estava a desenvolver, além de planear a minha viagem de férias, coisa que há tempos não sei o que são.

Pedi um filete de salmão com alcaparras em manteiga, uma salada e um sumo de laranja, afinal de contas fome é fome mas regime é regime, não é.

Abri o meu portátil e apanhei um susto com aquela voz baixinha atrás de mim:

- Senhor, não tem umas moedinhas

-Não tenho, menino.

-Só uma moedinha para comprar um pão.

-Está bem eu compro um.

Para variar, a minha caixa de correio está cheia de e-mail.

Fico distraído a ver poesia, as formatações lindas, rindo com as piadas malucas.

Há! Essa música leva-me até Londres e às boas lembranças dos tempos áureos.

-Senhor, peça para colocar margarina e queijo.

Percebo, nessa altura, que o menino tinha ficado ali.

-Ok, Vou pedir mas depois deixas-me trabalhar, estou muito ocupado, está bem?

Chega a minha refeição e com ela o meu mau estar. Faço o pedido do menino e o empregado pergunta se quero que mande o menino embora.

O peso na consciência, impedem-me de o dizer.

Digo que está tudo bem. Deixe-o ficar. Que traga o pão e mais uma refeição decente para ele.

Então sentou-se à minha frente e perguntou:

-Senhor, o que está a fazer?

-Estou a ler uns e-mail.

-O que são e-mail?

-São mensagens electrónicas mandadas por pessoas via Internet (sabia que ele não ia entender nada, mas a título de me livrar de questionários desses):

-É como se fosse uma carta, mas via Internet.

-Senhor, você tem Internet?

-Tenho sim, essencial no mundo de hoje.

-O que é Internet?

-É um local no computador, onde podemos ver e ouvir muita coisa, notícias, música, conhecer pessoas, ler escrever, sonhar, aprender. Tem de tudo no mundo virtual.

-E o que é virtual?

Resolvo dar uma explicação simplificada, sabendo com certeza que ele pouco vai entender e deixar-me-ia almoçar, sem culpas.

-Virtual é um local que imaginamos, algo que não podemos tocar, pegar, apanhar…é lá que criamos um monte de coisas que gostaríamos de fazer.

Criamos as nossas fantasias, transformamos o mundo quase como queríamos que ele fosse.

-Que bom isso, gostei!

-Menino, entendeste o significado da palavra virtual?

- Sim, também vivo nesse mundo virtual.

-Tens computador!?- Exclamei eu!!!

-Não, mas o meu mundo também é vivido dessa maneira…virtual. A minha mãe fica todo o dia fora, chega muito tarde, quase não a vejo, enquanto eu fico a cuidar do meu irmão pequeno que vive a chorar de fome e eu dou-lhe água para ele pensar que é sopa, a minha irmã mais velha sai todo o dia também, diz que vai vender o corpo, mas não entendo, porque ela volta sempre com o corpo, o meu pai está na cadeia há muito tempo, mas imagino sempre a nossa família junta em casa, muita comida, muitos brinquedos de natal e eu a estudar para vir a ser médico um dia.

-Isto é virtual, não é senhor???

Fechei o portátil mas não fui a tempo que as lágrimas caíssem sobre o teclado.

Esperei que o menino acabasse literalmente de devorar o prato dele, paguei e dei-lhe o troco, que retribuiu com um dos mais belos e sinceros sorrisos que já recebi na vida e com um “ Brigado senhor, você é muito simpático”.

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Esta é uma história triste e comovente que circula na Net e que não deixará de sensibilizar quem a leia, especialmente nesta época do Natal que apela ao amor, à compaixão e à família.

O Natal tem destas coisas, amolece e adocica as pessoas, desanuvia os rostos e faz florescer os sorrisos que acompanham os inevitáveis votos de Boas Festas e Feliz Natal.

Todos ficamos cativados pelo menino da história e queremos acreditar que ele existe, que é bom, ingénuo, cândido, educado, inteligente, de certa forma, também ele, um menino Jesus.

Mas ele é apenas uma criação do Natal, não existe fora dele, filho de um pai que está na cadeia, de uma mãe ausente e com uma irmã que se prostitui ele, dificilmente, deixará de ser um marginal que mente e rouba para sobreviver.

Mas o Natal faz milagres e nós adoramos os milagres.

Quando batemos no muro, quando perdemos a esperança, quando desacreditamos em nós, quando olhamos à nossa volta e não entendemos o que se passa, quando a vida perde sentido, quando a dor bate no peito e sufoca, quando ficamos de olhar perdido e o fio do pensamento se corta, então… esperamos o milagre.

O milagre que nos traga de novo à vida, que permita que o menino da história não tenha necessidade de mentir, roubar e mendigar, que impeça que vinte mil pessoas por dia morram em consequência da fome e da pobreza extrema.

O milagre que nos retire da incerteza quanto ao nosso futuro, que opere dentro de nós mágicas transformações que continuamente aguardamos em vão, que mate no nosso peito a ambição e o desprezo pelo nosso semelhante.

O milagre que nos faça perceber que o mundo não se constrói sobre desigualdades e injustiças que hoje, tal como ontem, continuam e se agravam.

O menino da história tem todo o direito de transformar o mundo virtual em que vive num mundo real e nele vir a ser médico, engenheiro ou técnico dos computadores mas, acima de tudo, a realizar-se como homem.

E clamamos por milagres porque é mais fácil do que sermos nós a operá-los com a força da nossa energia e a qualidade da nossa inteligência.

Clamamos por milagres, sempre clamámos por milagres, no íntimo das nossas consciências, nas procissões de fé, no recanto e silêncio dos altares, de olhos virados para o céu implorando, de joelhos e cabeça no chão em sinal de humildade…sempre clamamos por milagres sem perceber, ironia das ironias, que eles nunca acontecerão se não formos nós a operá-los.

Boas Festas e Feliz Natal




















segunda-feira, dezembro 17, 2007

O Referendo e o Tratado de Lisboa


O Referendo e o Tratado de Lisboa


Não tenho nenhuma predilecção pelo estatuto do Referendo porque não vejo, no nosso país, nenhuma situação em que o recurso aos órgãos democraticamente eleitos não seja mais vantajosa do que a consulta directa à população.

A democracia parlamentar tem, naturalmente, os seus defeitos e as suas limitações mas no Parlamento estão lá os representantes dos partidos que nós elegemos para executarem uma política que foi apresentada aos cidadãos nos programas eleitorais e que se espera, com base na confiança e crédito que essas pessoas nos merecem, venha a ser executada.

Se uma vez eleitos, cumprem ou não os programas com que se elegeram, se revelam, pela sua acção, serem ou não merecedores do tal crédito e confiança que neles se depositou, já faz parte da avaliação que os eleitores vão fazendo ao longo do mandato e que termina, nas eleições seguintes, com a renovação do voto de confiança ou a sua retirada.

Tão simples como isto sem esquecer que, em última análise, a qualidade da democracia depende da qualidade dos políticos que elegemos ou, mais rigorosamente, da qualidade das pessoas que se disponibilizam para a política.

E este é o problema básico da nossa democracia. Saber até que ponto os cidadãos mais aptos, competentes e honestos da nossa comunidade se apresentam a sufrágio para o exercício das funções da governação.

Parece que a carreira política já não desperta hoje o interesse condizente com o prestígio e a honra inerentes aos cargos públicos da governação sendo que, alguns dos melhores de nós, se estão a “vender” ao sector privado cada vez mais poderoso e com propostas mais aliciantes.

Luís Campos e Cunha, ex-Ministro das Finanças e Catedrático dos mais prestigiados do nosso meio académico, afirmava há dias numa entrevista que “não gostaria que as pessoas fossem para a política pelo salário ser elevado” mas logo adiantava que “há muita gente que não pode aceitar lugares públicos porque, na prática, tem de pagar para lá estar”concluindo que esta situação está a afectar muito a qualidade da nossa democracia.

Sem dúvida, portanto, que há necessidade de tomar medidas para melhorar a qualidade da nossa democracia e já foram feitas sugestões nesse sentido que caíram perfeitamente em saco roto…e é pena porque esta questão é crucial para o futuro do país e nós não nos podemos dar ao luxo de ter maus políticos apenas porque são baratos.

Em contrapartida, não me parece serem os Referendos a forma de melhorar a democracia.

A consulta directa às populações como forma de tomar decisões em sociedades tão complexas como aquelas em que hoje vivemos é demagógica, populista e fica à mercê da capacidade de manipulação dos especialistas na matéria sendo, portanto, potencialente perigosa para os interesses do país.

Ele encontra os seus principais defensores entre os líderes de pequenos partidos de oposição e de grupos contestatários que vêm neles uma excelente oportunidade para atacarem os governos.

Os comentaristas, analistas e todos os “fazedores de opinião” saem a terreno, convidados ou fazendo-se convidar para debates, reuniões, participação em programas de Rádio e Televisão para que não se diga que a informação e o esclarecimento não são produzidos, como compete, numa sociedade democrática.
Como mal menor perde-se tempo e gasta-se dinheiro.

Todos nos lembramos do último Referendo sobre o aborto, do tempo que se gastou, das intermináveis e inconclusivas discussões para decidir sobre uma matéria que tinha a ver com a liberdade e dignidade das mulheres e a defesa da saúde pública.

Dizia-se que estávamos perante um problema de consciência e o governo de Sócrates para não ficar com problemas na dita, em vez de decidir com base na maioria absoluta que o eleitorado lhe atribuiu, envolveu-nos a todos naquela discussão estéril e ultrapassada.

Daquela vez, com a ajuda preciosa do Ricardo Araújo, dos Gatos Fedorentos e do seu skech ao Prof. Marcelo, lá se conseguiu dar às mulheres a liberdade de poderem decidir de acordo com a consciência de cada uma delas e não pela obrigatoriedade de cumprirem uma lei que fazia lembrar os tempos da inquisição.

Estamos, agora, de novo, confrontados com a eventualidade de mergulhar o país em mais um Referendo e em intermináveis e acaloradas discussões.

O Tratado em si, já todos percebemos, é pouco menos que inteligível o que não significa, ou até por causa disso, que não possa e deva ser explicado mas não a propósito de um Referendo.

É que os Referendos devem pressupor alternativas que sejam claras, do género:

- Se optarmos pelo Sim o caminho é este;
- Se optarmos pelo Não o caminho é aquele;

No caso concreto deste Referendo, como sugere o Prof. Luís Campos e Cunha, se votarmos Não ao Tratado vamo-nos transformar numa Suiça ou numa Noruega?

Sem alternativa, digam-me, por favor, para que serve este Referendo?

Se o governo optar pelo Referendo que explique bem aos cidadãos, por uma questão de seriedade, qual é a alternativa.

Caso contrário, ele tornar-se-á um logro e um fiasco pois, caso o Não vença, é o promotor do Referendo que terá que traçar um novo caminho, que é como quem diz, descalçar a bota.

Sócrates, em campanha eleitoral, prometeu referendar Tratado e ninguém pode afirmar que essa promessa não lhe tenha rendido votos mas, porque foi precipitada, populista e demagógica, os votos que eventualmente terá ganho com ela deveria perde-los todos nas próximas eleições.

Quando penso no Tratado de Lisboa, como de resto nos anteriores, num simples exercício de imaginação, vejo-os como os substitutos das guerras que ainda no século passado deflagraram na Europa para dirimirem os conflitos de interesses que lhes deram origem.

Em 14/18, a 1ª G.G. custou a vida a mais de 9.000 portugueses não contando os que regressaram gaseados, para além dos milhões de outros europeus que lá ficaram.

Em 39/45, a 2ª G.G., que começou quando eu nasci, na prática há meia dúzia de dias, dizimou 6 milhões de vidas, cidades destruídas e atrocidades que não pareciam sequer possíveis nos nossos dias, pelo menos nos meus e nos da minha geração.

Os mesmos que nessa altura decidiram fazer as guerras, sentam-se, agora, à volta de mesas e em vez de trocarem entre si balas, bombas e toda a espécie de projécteis, apresentam uns aos outros propostas, contra propostas, fazem exigências e cedências, estabelecem compromissos e discutem entre si, nos bastidores e às mesas das negociações, às vezes horas a fio, pela noite dentro, para tentarem chegar a um documento que seja aceitável por todos.

E está lá toda a gente, os portugueses, os espanhóis, os franceses, alemães, ingleses…só para o Tratado de Lisboa eram 27 a lutar pelos seus interesses no seio desta nova aventura política que se chama Comunidade Europeia.

Não levam espingardas, nem canhões mas levam a importância dos seus países ditada pela dimensão territorial, número de cidadãos que representam, pujança ou fragilidade das suas economias e na correlação de forças que se estabelece cada um faz o que de melhore sabe e pode.

Ao fim de anos, acabado o trabalho, chegados a um consenso final, juntaram-se todos para assinarem o documento que representou o fim “daquela guerra”… sem mortos, sem feridos, sem traumas… até ao próximo Tratado, que é como quem diz, até à “próxima guerra”.

Nada no futuro está garantido mas a paz tem que continuar a ser salvaguardada e a Europa tem que funcionar, com este Tratado, no futuro com outro, mas tem que funcionar para a sua própria sobrevivência e dos valores que representa no mundo no qual não se conhecem outros melhores.

Na linha da minha imaginação, recusar este Tratado, que foi o melhor que se conseguiu, significa chamar à pedra os soldados que lutaram por ele e mandá-los de novo para o campo de batalha para trazerem a vitória impossível.

Faz-me lembrar o Salazar a propósito da Índia…















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