sábado, setembro 12, 2015

Assim Nasceu Portugal
(Domingos Amaral)

Episódio Nº 57




















Foi a primeira vez que eu e Maria Gomes trocámos olhares, e encantei-me em instantes. A minha Maria tinha um ar plácido, tranquilo, uma doçura serena que me conquistou.

Porém, eu era envergonhado e ela também, e a nossa aproximação foi suave e tímida...

Ouviram-se os sinos a dobrarem, anunciando mais uma morte de Jesus, cumprindo a tradição que durava há mais de mil anos.

Todos os presentes se apressaram numa genuflexão colectiva, liderados por Teotónio, que pousou os joelhos no chão, fechou os olhos e permaneceu assim uns instantes.

Todavia, não resistiu a levantar ligeiramente a cabeça, para verificar se algum recalcitrante se recusava a imitá-lo.

Estavam todos de pescoço vergado: Dona Teresa e os Trava, as filhas dela e as sobrinhas dele, os nobres galegos nas filas de trás e do outro lado, também os Moniz de Ribadouro e seus filhos, bem como o bem aprumado Paio Soares.

O único que se recusara a olhar solenemente para o chão de pedra era Afonso Henriques!

O príncipe, apesar de se ter ajoelhado, observava ainda o banco onde estava Chamoa, como se aquele não fosse um momento de grave contenção.

E tão intenso era o seu olhar que a rapariga galega o deve ter pressentido, pois o prior viu-a devolver um radiante sorriso.

Irritado, Teotónio tossiu, atraindo a atenção de Jesus pregado na cruz, que abriu os olhos e o mirou, pensando talvez que aquele era o sinal de que tinha terminado a sua actuação.

O prior ignorou-o, mas não ignorou o príncipe. Franziu-lhe o sobrolho, repreendendo-o pela sua desatenção. Então, e com o respeito que sempre lhe dedicava, Afonso Henriques inclinou finalmente a cabeça.

Teotónio suspirou fundo, mais sereno, e depois de algum tempo deu o sinal de que o ritual chegara ao fim, o que libertou os presentes daquela obrigação.

Num instante, todos se levantaram e desataram a falar. A azáfama foi grande e o principal prejudicado da barafunda foi Paio Soares.

O antigo alferes tentou aproximar-se de Chamoa, mas esta, decerto, sem ter reparado nele, recuou uns passos, chegando-se para perto do seu primo, Mem Ramires de Tougues.

A deslocação da rapariga obrigou Paio Soares a parar no meio da nave central, sem destino evidente, momento que foi aproveitado por Dona Teresa e por Fernão Peres para se abeirarem dele e o saudarem, com inesperada cortesia.


Eu e o outro
O Outro

















A Europa vai receber centenas de milhar de pessoas oriundas de países do norte de África, nomeadamente da Síria, fugidos, em desespero, de um senhor chamado Al-Baghdadi que é o líder do Estado Islâmico que ultrapassou em maldade, a Al-Kaeda, instalando a tirania e o terror entre as populações apelando aos instintos mais bárbaros, radicais e primários da espécie humana.

Essas pessoas não são iguais a nós e peço desculpa por dizer isto assim, desta maneira, mas, ao contrário do que se possa pensar, ela é um bom ponto de partida para uma boa relação futura.

A cultura, constituída por hábitos alimentares, comportamentos sociais, religiosos, familiares, etc... marca diferenças entre os povos.

E teve que ser assim, não por sermos diferentes na origem, mas porque cada povo teve de se adaptar a condicionalismos diferentes para sobreviver.

A este respeito, lembro-me sempre do exemplo que um professor meu dava aos seus alunos relativamente ao que era raça e cultura.

Na década de vinte, um diplomata importante dos E.U.A., em serviço na China, faleceu com a esposa num desastre de viação deixando órfão um filho ainda jovem que foi adoptado por um casal chinês, íntimo do falecido, que o educou nas melhores normas da cultura chinesa.

Chegado aos vinte anos, o jovem, alto, atlético de olhos azuis e cabelo alourado, foi enviado à América pelos pais adoptivos que entenderam que ele devia conhecer o país dos seus pais e parentes afastados.

Poucas semanas decorridas, ele estava de volta afirmando que se sentia chinês e não se entendia com os americanos e a sua estranha maneira de viver.

Estas diferenças, tanto podem enriquecer a relação como envenená-la senão as respeitarmos como sendo coisas dos outros, do seu património.

- “Como é possível, passe o exagero, eu dar-me com alguém que não gosta de farinheira?...”

Os meus amigos sabem, com certeza, que se não fossem estas diferenças não nos deliciávamos hoje com as belas alheiras de Chaves, da imaginação dos judeus que, não podendo comer carne de porco por motivos religiosos, inventaram as alheiras que não levam a dita carne, obviamente, mas emitam muito bem os chouriços pendurados nos fumeiros das chaminés evitando, assim, ser hostilizados pelos vizinhos.

Então, esta “coisa” das religiões estabelece infelizmente diferenças que são sentidas, profundamente, como barreiras e antagonismo que ao longo dos tempos alimentaram guerras, mortes e violência, numa história triste da qual ninguém sai bem quer sejam seguidores de Cristo ou de Maomé.

Vestir de maneira diferente, comer outras coisas ou repudiar aquelas outras de que nós tanto gostamos, rezar ajoelhado de cabeça no chão e rabo para o ar, virado na direcção de Meca, em vez de mãos postas, de cabeça levantada e olhar posto na imagem de Cristo pregado numa cruz, tantas coisas diferentes que nos parecem quase uma ofensa provocatória a despertar raiva e ódio àqueles que gostam de alimentar a maldade que nos vai nos corações porque, não nos iludamos, ela também lá está.

Nós, portugueses, sempre andámos pelo mundo e recentemente pelas guerras de África que nos ensinaram a desmistificar muitas coisas a começar pelos falsos e ilusórios patriotismos.

Durante séculos, aos portos da costa que hoje é o nosso Portugal, sempre chegaram pessoas, diferentes das que aqui estavam, para comerciar connosco.

Não obstante a globalização, que vai acontecendo, o mundo ainda é grande e variado e os portugueses sabem que há muitos “outros” com os quais se têm cruzado ao longo da sua história e das suas vidas mas, em todos eles, tal como em nós, existe um mesmo coração sedento de amor e de felicidade.

Nisso, somos todos iguais.

sexta-feira, setembro 11, 2015

Imagem

Pedra Verde

Na estrada de Luanda para Quibaxe, por alturas do Úcua, do lado esquerdo, fica este imenso maciço de granito, verde pela cor do musgo que o cobriu. As tropas portugueses, ao logo do ano de 1962, despejaram sobre ele toneladas de bombas mas ele não se mexeu nem alterou. Depois, os "terroristas" foram-se embora e a aviação deixou-o em paz. Quando cheguei "essa guerra" já tinha acabado mas, durante cerca de nove meses, todos os dias, o via da varanda da casa desocupada pelos colonos e que nós utilizamos durante o tempo em que estivemos no Úcua.

Aí a temos para me recordar que não é uma visão inventada pela minha memória já gasta pelos anos.




António Zambujo - "Pica dos 7"



Mixórdia de Temáticas - Telescola para mitras 


Iluminado pelo fogo do inferno
Tocaia Grande
(Jorge Amado)

Episódio Nº 335




















Na solidão da cela, em noites indormidas de prece e cilício, flagelava-se com o azorrague para domar o corpo, livrá-lo das seduções do mundo, da idolatria e da luxúria.

Ornato único na parede nua, a estampa do Coração de Jesus, o sangue escorrendo do sagrado coração devido aos pecados cometidos contra a glória de Deus, ganhava vida, o sangue se espalhava, salpicando coxas e ventre, nádegas e tronco do monge atormentado.

Jesus lhe ordenava partir a combater o pecado a ferro e fogo, até extirpá-lo por completo.

Na opinião de frei Zygmunt não possuía a Santa Madre Igreja santo de maior virtude, mais digno de honraria e devoção do que Torquemada, o inquisidor-mor de Espanha e Portugal: não fora canonizado, injustiça que não o fazia menos venerável.

Capitão das hostes da virtude e da doutrina, do exército de Deus, sob sua bandeira inscreveu-se frei Zygmunt e partiu para a luta sem quartel contra os hereges, os depravados e os anarquistas.

Sustentava-o a fúria dos iluminados. Iluminado pelo fogo do inferno.

Durante a fatigante travessia, de arruado em arruado, os dois padres haviam tomado conhecimento da fama de Tocaia Grande, negra, sinistra.

Sendo o mais próspero lugarejo do vale, nele campeavam a impiedade e a desordem. Ao que se ouvia contar, entre o gentio sem religião e sem lei, sem dogmas e sem códigos -  pagãos, amigados, jagunços, marafonas -, existiam negros macumbeiros e árabes maometanos.

O nome do lugar já dizia tudo. Traduzido em termos bíblicos, Tocaia Grande significava Sodoma e Gomorra reunidas na danação dos sete pecados capitais.

2

Na esteira dos frades, acompanhante e concorrente, palmilhava a lama, em demanda de Tocaia Grande, o popular sanfoneiro e troca-pernas Pedro Cigano.

 Onde se anunciava a presença de monges e padres em santa missão de apostolado: prédica, batismo, casamento, confissão, conjura e expiação, chegava, na mesma batida, parte integrante do grandioso evento e ao mesmo tempo sua negação, a sanfona de Pedro Cigano.

Para abrilhantar a temporada de forrós com que o povo do lugar iria comemorar batizados e casamentos.

De tanto freqüentar santas missões, Pedro Cigano seria capaz de servir de sacristão e ajudar na celebração da missa. Apesar disso, frei Zygmunt, ao avistá-lo atento às palavras candentes do sermão, na primeira fila dos devotos, sentia as tripas se revolverem nas fanáticas entranhas: via a figura de Satanás, em carne e osso, o riso de deboche no rosto alvar.

Muito sofre um missionário em época de desvario e decadência dos costumes, desactivado o Santo Ofício, abolida a santa escravidão.

O debate
O Debate


















Na noite de 4ªFª, no meu país, em horário nobre, os três canais de televisão juntaram-se para entrevistar em conjunto os dois candidatos a liderarem o governo a partir de Outubro: o 1º Ministro Passos Coelho e António Costa, líder do partido Socialista.

Anunciado como uma espécie de combate do século, teve uma presença de quase 3,7 milhões de espectadores, provavelmente, recorde de audições.

Eu não me fiz representar nesses 3,7 milhões tendo preferido ver o Open dos E.U. em Ténis.

Sinceramente, não foi para destoar do conjunto, mas repugna-me ver a política reduzida a um espectáculo que a degrada, transformando os dois políticos mais importantes do país, um deles, inclusive, irá governar-me durante os próximos 4 anos, em contendores, espécie de pugilistas, num recinto de boxe, perante três entrevistadores que acrescentando pouco ou nada à contenda, parece prepararem-se para, no fim, declararem o vencedor.

Não gosto de ver pessoas responsáveis naquela situação, ensaiadas, programadas, aconselhadas, a debitarem respostas que foram previamente pensadas, quase todas já ditas em outras ocasiões e em grande parte conhecidas.

Sabemos que é assim, aqui e em todo o lado, sabemos igualmente que eles não se podem furtar, mas a política, naqueles moldes de confronto desportivo, deprime-me porque o futuro do país, infelizmente, pode vir a depender destes jogos de palavras, poses e gestos.

O esforço feito é de “encantamento” por uma imagem que caia bem, que seduza, que convença, que pareça a melhor, mais credível, mais honesta e, para isso, eles foram assessorados, ensaiados, retocados, por psicólogos, especialistas de marketing, alguns brasileiros, muito em voga nestas coisas e que tão boas provas têm dado no aconselhamento do povo brasileiro na escolha dos seus responsáveis políticos...

Tudo gente especializada nessa arte de ensinar os outros a “encantar”, numa magia de truques, entoações de voz, gestos, palavras, dissimulações, olhares, esgares, expressões, que desafiam o que é exigido num curso de bem representar.

Os eleitores, na grande maioria, já têm a escolha feita, ou balançam entre um e outro sem excluir a abstenção, em muitos casos, o mais provável, mas não desprezemos a importância da retórica e da dialéctica na política.

Lembro o Presidente da 1ª República Portuguesa, António José de Almeida, que visitou o Brasil e discursou de uma forma tão encantatória que um brasileiro levantou-se espontaneamente lá do meio da assistência e gritou excitado: “Este tem o meu voto!”

Aqui, não mais a beleza dos discursos, das figuras de retórica, das metáforas políticas, das grandes tiradas de improviso... ali não há lugar para nada disso. Aquilo é uma luta de "soco e pontapé".

Assisti, há quatro anos atrás, a um debate idêntico entre Passos Coelho e Sócrates. Recordo o à vontade e descontracção de Passos Coelho perante um Sócrates nervoso e comprometido.

Eu estava, então, já saturado do Sócrates, não tinha gostado de muitas das suas medidas, uma delas beneficiou-me directa mas erradamente, de um aumento de 2,9% do meu ordenado, quando era perceptível a intenção de conquistar de votos para as eleições que viria, de resto, a ganhar com maioria relativa.

Mais tarde, também para conquistar votos, a firmeza e convicção das promessas de Passos Coelho, nas vésperas de eleições, de não cortar salários e pensões para, meia dúzia de dias depois, já como 1º Ministro, levar-me o subsídio de Natal.

Faz muito bem António Costa em recordar essas promessas mentirosas, devia mesmo passá-las em filmes da sua campanha eleitoral, porque quem mente uma vez daquela forma flagrante e sem vergonha, com a desculpa esfarrapada, apresentada mais tarde, de que não sabia do estado das finanças públicas, ele, que tinha como conselheiro, Eduardo Catroga, principal negociador do PSD com a troyka e, por tanto, dentro de todas as contas, vai mentir o resto da vida, como tem feito ao longo da governação.

Desta vez, no debate com António Costa, todos dizem que não se saiu tão bem. Parece-lhe ter faltado a juventude, a alegria e o descomprometimento que exibiu com Sócrates, há mais de 4 anos, em Maio de 2011.

Ou talvez seja só o desgaste e o cansaço de 4 anos e meio de uma governação difícil e que ele tornou mais difícil ainda por ter sido frio e distante, a roçar o desprezo, relativamente aos mais pobres, mais velhos, mais jovens e mais frágeis, do país que quis governar.

Se perder as próximas eleições, perde justamente, ou melhor, merecidamente.

Assim Nasceu Portugal
(Domingos Amaral)

Episódio Nº 56




















No terceiro banco, encontrava-se Sancha Henriques, a segunda filha de Dª Teresa, uma problemática criatura. O Braganção, como todos chamavam a Fernão Mendes, senhor de Bragança, apesar de alto espadaúdo e forte, já levara dois gritos há pouco, tendo sido obrigado a afastar-se dela.

Entre esses dois litigantes estava agora sentada Teresa de Celanova, bonita e ainda jovem, talvez com vinte e dois anos, e que necessitava claramente de casar, pela forma como lhe ardiam as faces.

Corria o rumor que Afonso Raimundes se afeiçoara a ela, mas agora que Dona Urraca morrera e o filho se passaria a chamar Afonso VII, deixando cair o Raimundes, havia quem dissesse que às ousadas esperanças da Celanova iria acontecer o mesmo que ao sobrenome do novo monarca.

Do lado esquerdo da nave central, estavam sentados os nobres portucalenses de Entre Douro e Minho, e a separação forçada entre eles e os Trava era tudo menos simbólica.

Há anos que existiam fundas querelas entre eles e a poderosa família galega. Liderados pelo ardiloso Fernão, os Trava haviam primeiro afastado dos cargos públicos do reino os senhores da Maia, de Baião, de Ribadouro.

Depois, numa segunda vaga, haviam secundarizado também as famílias menos distintas, os Silva, os de Lanhoso, os Guedões ou os de Marnel.

A recente morte de Dona Urraca provocara, no entanto, uma alteração política capaz de modificar os equilíbrios anteriores.

Aquele reencontro da Páscoa, que Dona Teresa impusera a todos, trazia água no bico. Os seus planos para casamentos também já eram conhecidos, e uma estranha excitação percorria a Igreja de Viseu.

Paio Soares, o vaidoso, estava fisgado em Chamoa, mas também Afonso Henriques, formoso e altivo nas sua dalmática vermelha, parecia esgazeado com a formosura da bela galega!

Enervado, o prior olhou para o improvisado Cristo, já pregado na cruz e a quem um soldado estendia a tradicional esponja com fel.

Estava hora do “filho do homem” falecer, pois só assim cairia um silêncio sepulcral na igreja.

O prior gesticulou ao centurião, ordenando que se despachassem. O Cristo tinha de olhar para o alto da igreja e dizer, “meu pai porque me abandonaste?” e depois todos ajoelhariam e ficariam algum tempo calados, a olhar para o chão, em silenciosa homenagem *a morte de Jesus, e sobretudo impedidos de trocarem olhares luxuriosos.

Porém, este Cristo não queria morrer depressa e o prior reparou que até Egas Moniz, o viúvo, sentado na primeira fila, do lado esquerdo, junto do seu irmão Ermígio e do príncipe, se deliciava a catrapiscar a bela Teresa de Celanova, enquanto atrás de si outras descobertas amorosas começavam.                                                                                              

quinta-feira, setembro 10, 2015

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Feira da Ladra (em Lisboa)

Quando começou estava longe do local concorrido que ainda é hoje, mesmo em concorrência com os grandes Centros Comerciais. A Feira da Ladra continua, aqui, em Santa Clara, desde 1903, duas vezes por semana, a receber peregrinações de vendedores e compradores de tudo e mais alguma coisa. Todas as terças-feiras e todos os sábados, do nascer ao pôr-do-sol, por tendas, bancas ou mesmo por panos espalhados no chão, a especialidade é a segunda mão: móveis, ferro-velho, livros e revistas, roupa, dos discos de vinil mais antigos aos cds mais recentes, quadros, etc, etc. tudo ali se encontra.




Elvis Presley - My Way

A minha canção favorita pelo meu cantor favorito.


Claque de Seminaristas - Gato Fedorento



De piedade, o do jovem  frei Theun
Tocaia Grande
(Jorge Amado)

Episódio Nº 334



















A CIDADELA DO PECADO, O COUTO DOS BANDIDOS. VISITAÇÃO DO SANTO OFÍCIO A TOCAIA GRANDE COM REQUISITÓRIO, CONDENAÇÃO E FORROBODÓ


1



Transportando em dois baús de flandres os sagrados utensílios, as vestes talares, o incenso, a água benta, o vinho de missa e a palavra de Deus, a Santa Missão chegou a Tocaia Grande quando, pesada e espessa, a morrinha do inverno se impunha: chuva fina e deprimente, a lama dos caminhos, perigosos, a claridade dos dias diminuída, o negrume das noites compridas.

Dois frades mendicantes, na faina da catequese, desciam das cabeceiras do rio das Cobras. Na amplidão do vale, ao ritmo do desenvolvimento das roças de cacau, brotavam arruados, cresciam lugarejos, uns mais, outros menos lazarentos, vivendo todos, sem excepção, na iniquidade e no pecado.

Vinham frei Zygmunt Von Gottershammer e Frei Theun da
Santa Eucaristia de percorrer, em dois meses de apostolado árduo e penível, "a extensa província de paganismo e heresia!” e, ao se aproximarem de Tocaia Grande, montando burros pardos e cautelosos, traziam os corações pejados de piedade e de cólera.

De piedade o do jovem frei Theun, holandês de nascimento, noviço consagrado padre em Roma, destinado pela Ordem a missionário no Brasil.

De cólera, o de frei Zygmunt, magro e seco, o ar ascético, o dedo em riste, exprobatório, a boca de anátema e condenação.
Gotteshammer, ou seja, o Martelo de Deus.

O rosto redondo de frei Theun, sacerdote recente em sua primeira santa missão, acusava o cansaço da interminável travessia das desoladas comarcas carentes de conforto material e desvalidas de assistência espiritual.

Faltava-lhes de um tudo, apesar de serem fartas e ricas produtoras de cacau, mercadoria mais valiosa somente o ouro.

Vinte anos mais velho do que o companheiro de prédica e com mais de dez na irreligiosidade grapiúna, frei Zygmunt, se estava fatigado, não dava a perceber e prosseguia avante na tarefa de desmascarar e derrotar Belzebu.

Nas margens do rio das Cobras a ausência da ordem e o desprezo pela moral eram totais e absolutos. A missão de instaurar ordem e moral, de implantar o temor de Deus, frei Zygmunt não a recebera apenas do Superior da Congregação que o enviara a pregar e converter naqueles confins do mundo.

Recebera-a directa e inapelável de Cristo Nosso Senhor.

Assim Nasceu Portugal
(Domingos Amaral)

Episódio Nº 55



















Era sangue de galinha, untaram-no para parecer Jesus, disse-me depois o prior. Com aquelas barbas tão sujas e tanta lama até estava idêntico a um Cristo, mas na verdade Teotónio sentia-se desiludido com o lavrador, faltava-lhe gravidade para um papel tão importante.

Pegava na cruz como quem leva distraidamente uma saca vazia e estava sempre a olhar para os secundários, vestidos de soldados romanos, esquecendo suas obrigações.

Por uma vez, quando vinha a caminho do altar, o prior até o vira a sorrir ao centurião!

 - Que descarado! O Jesus do ano passado tinha mais jeito! - comentou ele connosco depois da missa.

Já incomodado com aquela fraca prestação, o prior ainda mais se desiludiu quando, ao vê-lo ser pregado na cruz, numa trave improvisada, com falsos pregos pregados por falsos soldados, reparou que Dona Teresa nem sequer olhava para o teatro da paixão, embevecida como estava com o trava.

- Que afronta, passar a Páscoa na minha igreja ao lado do amante! Comentaria ele depois.

Era uma desonra para o Condado ter como condessa uma mulher que se deitava com um homem casado, e ainda por cima galego!

Quando os vira entrar na Igreja sorridentes e de braço dado, Teotónio ainda pensara em correr com eles dali aos gritos, mas o Jesus já entrara pela porta principal e os olhos dos presentes tinham-se virado para lá.

Passara o momento de lhes passar um sermão castigador.

Na missa era tempo de silêncio, mas como a igreja estava cheia ouvia-se o rumor das conversas e das risadas.

Do lado direito da nave central, encontrava-se a família Trava. Na primeira fila, Fernão Peres, ao lado de Dona Teresa, e Bermudo, junto à sua esposa, Urraca Henriques.

Atrás, no segundo banco, sentava-se Elvira de Trava, o seu marido, Gomes Nunes de Pombeiro, e ainda as suas belas filhas de ambos, Maria e Chamoa Gomes.


Os Refugiados
(continuação)













Não foi pensado que pudesse acontecer mas aconteceu e a Europa parece uma mulher surpreendida por uma gravidez indesejável que não sabe agora o que fazer com o bebé nos braços.

O húngaro Orbán, o tal que levanta muros e estende arame farpado para os refugiados não passarem, veio já dizer que eles são um problema da Alemanha que se recusou, à época, pela voz do chanceler Schroeder, alinhar na invasão do Iraque, promovido por Bush e Blair e, mais tarde, absteve-se de votar o ataque ao ditador Líbio, Kadafi, e aqui, foi mesmo a chanceler Merkel que assumiu, como opção da sua política externa, o não envolvimento da Alemanha.

Hoje, no entanto, embora a Alemanha não participe nos ataques aéreos contra o Estado Islâmico, são os alemães que treinam os guerrilheiros curdos do Iraque que se têm mostrado como os mais eficazes a contrariar o avanço jihadista.

É, pois, uma situação que tem três tempos diferentes: o antes, o agora e o depois.

Já nos referimos ao antes, à génese do problema, às causas e todos já percebemos o que contribuiu para a situação a que se chegou e, agora aqui, o que fazer?

A Srª Merkel, ou seja, a Alemanha, a que menos culpas tem no cartório, como acabámos de mostrar, teve a atitude certa, deu o exemplo, afirmou os valores humanistas como o factor mais importante da cultura europeia, e dispôs-se a assumir o papel mais importante no acolhimento dos refugiados fazendo apenas questão, e quanto a mim correctamente, que se faça a distinção entre os que fogem da guerra e da morte às mãos do EI, dos outros que apenas procuram melhores condições económicas para viver.

E aqui temos Merkel, sempre atacada pela sua insensibilidade política, a mostrar nesta crise, aos alemães e aos europeus, que é um baluarte da moral, uma verdadeira líder e a acreditar nos aplausos, rebuçados e bonecos de peluche na estação de Munique a um grupo de refugiados, os alemães, como povo, estão hoje a dar o exemplo e Merkel terá nisto, uma grande parte de responsabilidade.

Mas acolher com humanidade não chega, não sabemos qual a dimensão deste movimento no futuro, nem conhecemos o impacto que virá a ter na sociedade europeia a presença destes grupos populacionais de hábitos, costumes e religião diferentes.

É preciso ir à origem do problema, é necessário uma acção militar eficaz contra o Estado islâmico, e isso passa pela sua destruição, depois de se ter permitido que ele crescesse, ganhasse território, e poder de terror sobre as populações que têm direito, como todas, a viver nos seus territórios de origem.

Até porque, uma coisa é o terrorismo sem base territorial e outra é haver uma construção política que tem por objectivo e princípios aquilo que a humanidade não pode aceitar.

Não vai ser fácil, vai doer, mas a situação exige-o e, para isso, é indispensável que as forças aliadas que se opõem a este movimento se juntem num quadro de forças da Aliança Atlântica, que deve incluir a Rússia, porque a ameaça não deixa ninguém de fora, é para todos e, muito especialmente para os árabes moderados porque eles vão ser as primeiras vítimas do radicalismo islâmico.

Toda aquela região do Norte de África vai ter que ser reconstruida e, para tal, a intervenção internacional é indispensável.

Os refugiados vão servir para criar uma situação complexa que obrigará os países europeus e não só, os Estados Unidos também, por razões morais e humanitárias, a receber essas levas de pessoas, a vencer comodismos em que os europeus tão facilmente caem.

quarta-feira, setembro 09, 2015

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Gostava de passar umas férias neste farol para ser o último a ver o sol a deitar-se...



Mixórdia de Temáticas - Ai, o rosto



Bob Dylon - Like a Rolling Stone (legendado)  


Considerada por muitos a melhor música já feita, do cantor e compositor Bob Dylan, a música é perfeita combinação de diversos elementos musicais. Ele baseou a música em uma história que ele mesmo escreveu sobre uma debutante que tinha tudo e ficou sem nada, mas esse nada, a libertou.
Apesar do nome a música não faz nenhuma referência a banda Rolling Stones,como alguns pensam, esta é apenas uma expressão que diz que "Pedra que rola não cria musgo", depois de pensar muito decidir seguir a tradução "Como uma perdida", "perdida na vida", "sem rumo".
Eu sempre primo pela qualidade das musicas, mas fiquei de mãos atadas com o Bob, pois a gravadora dele é bem rigorosa com suas músicas e bloqueia as musicas de estúdio dele, então tive de usar essa musica ao vivo, por isso o som esta um pouco ruim.

Alguns ficam revoltados com esta tradução, por causa do "Like a Rolling Stone". Talvez por pensarem que a música fazia referência a banda Rolling Estone (rs),mas não faz, ou que talvez devesse ser traduzida ao pé da letra, não seria má ideia, mas essa é uma expressão que de uso comum na época, era usada de maneira negativa para dizer que a pessoa não finca raízes, não cria musgo. Nós também temos expressões para isso que é, e uma delas seria "como uma perdida", que faz a mesma referência. Eu pesquisei muito antes, e me pareceu que esse é o consenso comum para tradução dessa música!


Coronel! Quilariá, Quilariô, o mundo se acabou
TOCAIA GRANDE
(Jorge Amado)



Episódio Nº 333



















E naquela Véspera, quando se extinguisse o canto das pastoras e as lanternas, as armações do Boi e do Temeroso e o estandarte fossem recolhidos, o bombo bem guardado no depósito de cacau, então a harmónica e os cavaquinhos na certa iriam convocar os moradores do arraial e os forasteiros para o fovoco comemorativo da apresentação do reisado que se despedia:

Quilariô, quilariá
Quando eu morrer
O mundo pode se acabar

O reisado dançava no meio do povo, o povo dançava misturado com a figuração e a orquestra. No bombo, fazendo a marcação, Jãozé, de Maroim, nos cavaquinhos três estancianos: Gabriel, Tarcísio e Jardelino.

E a sanfona, quem a dedilhava? É fácil encontrar a chave da adivinha, aqui vai uma pista: tratava-se de alguém jamais ausente das alegrias e das aflições de Tocaia Grande.

Não era outro, e não poderia ser: tocando e dançando ao mesmo tempo, em meio ao rancho de pastoras, feliz da vida, Pedro Cigano, rapaz bonito, entoava o Canto da Despedida:

Quitariô, quilariá
A Estrela-D'Alva
quilareia lá no mar

Afastavam-se as lanternas do reisado, cruzaram com um cavaleiro que irrompia das trevas da noite: montado em pêlo, desatinado, vinha a galope, gritando pelo Capitão.

Ao chegar diante dele, num pulo abandonou a montaria e foi falando. Era o negro Espiridião:

- Natário! O Coronel estuporou! Morreu na minha vista, sem dizer aqui-del-rei. Esbugalhou os olhos, torceu a cara, entortou a boca e caiu de borco no assoalho.

- Falou de um fôlego, talvez querendo livrar-se da visão que trouxera nos olhos e no peito.

O coronel Boaventura Andrade caíra morto na vista de Espiridião que guardava a porta do quarto do patrão e chefe para defendê- lo de qualquer bandido pago por um inimigo para lhe fazer mal.

Espiridião não pudera enfrentar com o clavinote a congestão que estava de tocaia, esperando a hora.

Na distância, o pastoril cantava adeus:

Quilariô, quilariá
Quando eu morrer
O mundo pode se acabar
Quilariô, quilariá

Zilda rompeu-se num soluço. O capitão Natário da Fonseca, o rosto imóvel, carranca de pedra ou de madeira: com sua licença, que desgraça mais grande.

Coronel! Quilariá, quilariô, o mundo se acabou.

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