sábado, janeiro 31, 2009

Tom Jones - She Is A Lady



Paul Anka - You Are My Destiny



Dean Martin - My Innamorata



BELLAGIO FOUNTAINS




Braço de Ferro



Parece estarmos a assistir a um braço de ferro:

- De um lado, a comunicação social em peso e em força, o chamado quarto poder, com notícias de 1ª página, alguns jornais em nítido exagero, a TV com aberturas de Telejornal, todos repetindo, insistindo em notícias, que não propriamente em novidades, respeitantes ao caso Freeport, Sócrates e a sua família;

- Do outro, o 1º Ministro, em declarações afirmando a sua inocência e queixando-se de que está a ser vítima de perseguição caluniosa;

- No meio, o país que já não sabe se deve preocupar-se mais com a crise e os despedimentos ou com o desfecho deste braço de ferro.

Os fazedores de opinião, com excepção de alguns jornalistas que em crise de histerismo estão de facas apontadas a José Sócrates para que ele se demita, caso de Mário Crespo, provavelmente com contas antigas por acertar com o PS, embora tivesse ganho em Tribunal o seu litígio com a RTP 1, manifestam-se preocupados porque estamos a assistir a uma degeneração da democracia não só em Portugal mas um pouco por outros países europeus.

A liberdade de expressão é um dos pilares dos estados democráticos mas se ela se abate sobre chefes de governo, numa espécie de exercício de tiro ao boneco das feiras e romarias do antigamente, em que o objectivo não é tanto acertar mas desacreditar para concluírem, vitoriosos, que agora já não têm condições para governar independentemente de inocentes ou culpados, podemos cair, e o nosso país é frágil nesse aspecto, numa situação próxima da ingovernabilidade ou de progressiva descredibilização dos políticos.

Lembremo-nos que a quando da nossa 1ª República, desde 1911 a 1926, tivemos 31 chefes de governo e os jornais espanhóis, divertindo-se com a nossa situação política, escreviam: “Ontem, por ser Domingo, não houve revolução em Portugal”.

Farto, o povo, acabou por receber de braços de braços o ditador Salazar, hipótese agora inviabilizada por integrarmos a União Europeia mas, quando vejo certos sorrisos de alguns políticos, nossos parlamentares, por graça, pergunto a mim próprio: “e se a história se repetisse…?”

Futuramente, um novo chefe de governo, provavelmente escolherá, não as decisões difíceis das reformas que desencadeiam a revolta e manifestações de polícias, magistrados, médicos, enfermeiros, professores, alunos, etc., isto, na hipótese de não o escolherem como alvo de um qualquer exercício de tiro ao boneco, mas optará, talvez, pela gestão corrente dos negócios do estado… e isto enquanto formos tendo estado.

Portugal poderá tornar-se ingovernável e perder condições de nação independente se continuarmos por um caminho em que nem sequer maiorias absolutas garantem estabilidade política.

José Sócrates não será um primeiro ministro perfeito, também ninguém esperaria isso, mas com falhas e tiques de autoritarismo que tanto desagradam à oposição, como se esse fosse o busílis da questão, o que é facto é que tem sido determinado e reformador e se olharmos à volta quem é que se descortina para o seu lugar?

No meio de todos os gravíssimos problemas que atravessamos com que ânimo partiremos nós agora, se vier a ser o caso, para uma nova crise política?

Será que o tal general romano tinha mesmo razão quando falava de um povo que não sabia governar-se nem deixava que o governassem?

Que espécie de maldição recaiu sobre nós?

Sinceramente, começam a ser demasiados pontos de interrogação!


Tieta do Agreste
EPISÓDIO Nº36



CAPÍTULO DOS PRSENTES ONDE SE ABRANDAM CORAÇÕES E TOMBA INESPERADA LÁGRIMA



A cerimónia da entrega dos presentes realiza-se após o jantar, festa de exclamações e risos: recolhidos os pratos pela pequena Aracy, retirada a toalha, Antonieta roga a Ricardo e Astério busquem na alcova a mala azul, a grandona, única ainda fechada. Colocam-na sobre a mesa, Astério encarrega-se de abri-la.

Risinhos nervosos, a família na expectativa, Peto indócil alongando o pescoço para espiar dentro da valise. Também Leonora trouxe do quarto uma bolsa de viagem e, tendo descerrado o ziper, a mantêm no colo, caixa de surpresas.

Cabem a Zé Esteves as regalias de prioritário: num estojo de luxo, relógio e pulseira de ouro – banho de ouro:

- Repare a marca, Pai. Vosmicê sempre desejou um relógio Ómega, me lembro da inveja que tinha do patacão do coronel Artur de Tapitanga. Por falar nele, ainda é vivo?

- Vivo e lúcido. Não tarda a aparecer. Pergunta sempre por você. – Quem informa é dona Carmosina, pimpona ao lado de dona Milú.

- Já não tenho vaidade, minha filha. Nem vaidade nem relógio desde que o meu se quebrou e Roque não deu jeito. Agora vou poder ver as horas de novo. Estou voltando a ser gente, depois que tu chegou.

Leonora mete a mão na bolsa:

- E aqui tem um radinho de pilha, um transístor para o senhor e dona Tonha ouvirem música, seu José.

- Tomando trabalho com a gente, moça! Um rádio? Quem vai ficar contente é Tonha, não é mesmo, mulher? Vive ma azucrinando os ouvidos para comprar um…

Tonha concorda, contente demais, tanto desejara! Certa vez, realmente, atrevera-se a insinuar a compra de um dos mais baratos, insinuação primeira e única, levara esporro medonho: tu quer que eu esperdice dinheiro que minha filha me manda? E se a gente adoecer? E quando a gente esticar a canela? Tu pensa que alguém vai pagar médico e receita, padre e cemitério? Não me peça para botar dinheiro fora. Ficou maluca?

A própria Nora coloca pilhas no pequeno aparelho, irrompe o som de um samba, prefixo de estação de Feira de Santana.

- Maior do que o nosso… - sussurra Elisa a Astério. Quem sabe o pai aceita trocar, ficar com o deles, recebendo volta em dinheiro. Tieta pagou a quota das despesas e, separando o de Osnar, a sobra a gente pode…

Não será necessário trocar pois Antonieta tira da mala imponente aparelho, sofisticado, quantidade de botões, várias faixas de ondas, antena embutida, entrega à irmã: para você e Astério, é japonês, não há melhor.

- Valha-me minha Nossa Senhora! Tieta, você é demais! – Elisa em nova chuva de beijos, agradecendo o rádio e o perdão: dona Carmosina lhe confirmou já ter esclarecido o assunto da morte de Toninho, não se preocupe onde e quando, não pense mais nisso. – Veio com pilhas? Quero ouvir o som agora mesmo.

- Devem estar colocadas. Funciona também na electricidade. Essa carteira, Astério, é para você guardar o dinheiro dos ganhos do bilhar. E aqui tem mais umas bobagens para você, Elisa.

Sortimento completo de cosméticos. Cremes e pinturas, todos os produtos para maquiagem, quanta coisa, meu Deus, vou desmaiar! Ruge mais diferente, desse nunca vi. Experimente o baton cintilante, recomenda Leonora. No aparelho de rádio sucedem-se as estações da Baía, do Rio, de Recife falando para o mundo, de São Paulo e, trocando de onda, veja! Ao seu alcance os cinco continentes – que língua mais arrenegada é essa? Parece russo, mas é a Rádio de Belgrado, Belgrado é a capital de que país? Da Iuguslávia, leciona dona Carmosina.

Foi assim, de música risos e beijos, foi de festa aquele começo de noite. Como ela pôde adivinhar o gosto, o desejo de cada um? Como sabe das façanhas de Astério no bilhar? Dos sonhos de Cardo com a vara de pesca, o molinete, o fio de nylon, as iscas artificiais? Como adivinhou? Sorri dona Carmosina, ao ouvir a pergunta repetida sem resposta: inspiração divina. Para Peto traga qualquer coisa desde que não sejam livros de estudo, ele quer somente vadiar, nadar e mergulhar no rio, bater bola na rua com os moleques, assistir às partidas de bilhar; vai completar treze anos e cursa ainda o Grupo Escolar. Peto ganhou um equipamento de mergulhador: máscara, arpão, pés de pato. Aos dois jovens, Leonora ofereceu chaveiros com a efígie do Rei Pele.

Astério, uma gravata. Mantilha cor de chumbo, de Nora para Perpétua. Para Elisa um anelão moderno, de fibra de vidro, a pedra enorme, cor de âmbar, a sensação da noite. O último lançamento da rua Augusta na capital paulista. Antonieta e Leonora têm iguais, só diferem na cor. Nora vai buscá-los.

sexta-feira, janeiro 30, 2009

Giani Morandi - In Ginocchio Da Te



Percy Slege - When A Man Loves A Woman




Sudirman - Banana Boat Song



Bob Dylan - Yesterday



Frank Sinatra - In The Whee Small Hours



Andrea Bocelli e Sara Brightman - Con Te Partiró





As Dificuldades de Governar Portugal


Não, as dificuldades a que me refiro não têm nada a ver com esta crise, essas são comuns a todos os países da Europa e do mundo, são dificuldades gerais, globais, da responsabilidade dos especuladores financeiros, das economias de casino, virtuais.

Refiro-me a dificuldades próprias, do nosso país, específicas, estruturais, que são históricas, de natureza cultural e já foram referidas por um general romano quando, em missiva para o Imperador, se queixava que aqui, no extremo da Europa, havia um povo corajoso, guerreiro, mas que não sabia nem se deixava governar.

O que se tem passado ao longo do governo de Sócrates constitui, na nossa experiência democrática pós 25 de Abril, o maior testemunho de que assim é na realidade.

As dificuldades experimentadas pelo actual 1º Ministro explicam perfeitamente a razão pela qual, pessoas determinadas e reformistas na condução do país, dificilmente são aceites por todos quantos de há muitos anos se instalaram em situações de poder ou privilégio, de acordo com um princípio egoísta segundo o qual, “o que for bom para mim, para a minha família e meus pares, será bom para o país” e quem vier estragar este “arranjinho” terá de se haver com os “lesados” até ao limite das suas forças, sem olhar a meios e a processos.

Sócrates, reestruturou na totalidade ou em grande parte, a Administração Pública, encerrando e fundindo muitos Institutos Públicos, economizando em Conselhos de Administração, racionalizando e rentabilizando Serviços.

Ao longo do país encerrou dezenas e dezenas de escolas que tinham meia dúzia de alunos, porque a realidade do país hoje é outra e aponta no sentido de concentrar recursos humanos e materiais tirando partido, igualmente, dos grandes investimentos já efectuados em estradas e auto-estradas o que constituiu um factor de aproximação das pessoas.

O mesmo aconteceu no sector da saúde contrariando uma enorme pulverização de serviços que com poucos ou nenhuns meios prestavam um apoio que era mais psicológico do que real.

Concentraram-se meios técnicos e recursos humanos de acordo com um plano que foi pensado e estudado mas as manifestações a favor do “statuo quo” foram tão persistentes que o ministro Correia de Campos, pessoa das mais aptas e competentes para o desempenho das funções, para não fragilizar o governo, retirou-se de cena.

Finalmente, temos tido esta luta, triste, com os professores que se tem sobreposto àquela outra luta que deveria ser travada por uma melhor educação, mas a confusão instalada acerca da avaliação dos professores tem servido de pano para encobrir outros objectivos mais prosaicos como a ascensão na carreira para todos até ao topo ou seja, com dinheiro, mesmo quando a classe dos professores é das mais bem pagas da função pública, e quanto a mim justamente.

Em termos comparativos com os restantes países da Europa ela é, também, das melhores remuneradas.

Mas o que importa salientar, é que nenhum outro 1ºMinisro conseguiu ir tão longe em termos de reformas estruturais quanto José Sócrates e esta é uma questão factual que não tem nada a ver com simpatias, antipatias, goste-se do estilo ou não se goste.

Inevitável, por isso, os ataques pessoais, Já aconteceram no passado por mais que uma vez e voltam agora a acontecer.

Claro que, a todos os cidadãos interessa saber, independentemente do benefício da dúvida que a todas as pessoas deve ser concedido, se o chefe do governo do seu país, no meio de todo este falatório, é uma pessoa honesta ou corrupta e essa informação deve ser procurada junto de quem de direito ou de grande credibilidade e o que me dizem essas pessoas?

- Cândida de Almeida, Procuradora que investiga o caso, no jornal de hoje, dia 30 afirma: “não há elementos para constituir arguidos qualquer pessoa” e noutro passo, “se fosse hoje não teria utilizado na carta rogatória, e referente a José Sócrates, a expressão suspeito de ter recebido, facilitado ou solicitado pagamentos”.

- O Procurador da República volta a firmar que “não há indícios juridicamente relevantes”.

- O Prof. Freitas do Amaral, que tive o prazer de ouvir há dois dias numa entrevista da SIC, pronunciou-se da forma mais clara e explícita a favor de José Sócrates.

Para mim, por ora, chega. Ao contrário do Sr. Màrio Crespo, na política, como na vida, há valores e princípios que se sobrepôem a tudo o resto.
O país está na situação que está, com os problemas que eram esperados, e o que fazem as forças da reacção enquanto a oposição, cúmplice, silencia?

- Atacam pessoalmente o 1º ministro com o objectivo de o fragilizarem em ano de eleições e, como crítica suprema, acusam-no de não ter sido e continuar a não ser pessimista e derrotista.

- No concreto, acusam-no de apresentar um Orçamento de Estado que o ministro das Finanças afirma ser Suplementar e que a oposição diz que é Rectificativo.

Mas então, na actual conjuntura, não era inevitável um orçamento Rectificativo, Suplementar ou lá como lhe quiserem chamar?

Mas voltemos à pessoa de José Sócrates:

- Corria a campanha para as legislativas de 2005 quando surgiram boatos sobre a sua orientação sexual;

- Mais tarde, Abílio Curto e depois o Público, acusaram-no de ter assinado projectos dos quais não era o autor;

- Sobre a licenciatura em Engenharia Civil na extinta Universidade Independente durou meses a polémica sobre a forma como ele a obteve;

- Finalmente, agora, de maneira gratuita, acusam-no de corrupto e quando ele vem a público queixar-se de uma cabala e de campanha negra, aqui Del’Rei que se está a vitimar!

Então, depois de tantas acusações infundadas não é legítimo e compreensível que ele se queixe?

- Não é?

Concedi o meu voto a José Sócrates pela razão óbvia, idêntica à da maioria dos portugueses:

- Estabilidade política indispensável à tomada de decisões que todos percebíamos que eram difíceis mas indispensáveis.

Hoje, continuo a vê-lo, não obstante a insistência dos ataques pessoais, a estimular e a querer puxar pelos portugueses, dizendo que é preciso pensar no futuro e por isso, investir.

Depende de todos nós viabilizar este país, o mais velho da Europa com as actuais fronteiras, mas para isso não transformemos o nosso presente num enredo de telenovela de duvidosa qualidade porque essa será a forma de comprometer o nosso futuro.


Tieta do Agreste
EPISÓDIO Nº 35


Moreno, alto e forte, a suar saúde e inocência na batina. Se fosse em São Paulo usaria cabelo nos ombros, não tomaria banho, puxaria fumo, perdido maconheiro como os filhos de tantos amigos seus: Antonieta está cansada de ouvir histórias tristes. Sorri para o sobrinho.

- Se o bicho papão quiser me pegar, grito por você. – Está tocada pelas atenções e gentilezas: - Tomaram tanto incómodo por nossa causa.

- Demais. – A voz musical de Leonora, em tom menor, não se eleva nunca: - A gente pode ficar as duas no mesmo quarto.

- Agora já está tudo determinado, é tarde – diz Tieta, por que diz?

A sombra de Lucas, na alcova.

Astério, Ricardo e Peto sem sapatos, conduzem malas e pacotes.
- Cuidado com essa caixa, Peto. É frágil. Aliás o melhor é eu entregar logo.

Antonieta toma o embrulho majestoso, coloca-o sobre a mesa da sala de jantar, em torno à ansiosa curiosidade dos parentes:

- Uma lembrança para tua casa, Perpétua.

Experiente, Astério desfaz os nós do cordão, enrola-o, dobra o papel grosso, ótimos, mesmo sujos serão úteis na loja. Cresce a ansiedade ante o vistoso papel para presente, fita cor-de-rosa, larga, o laço formando uma flor.

- A fita você desata, Perpétua – Astério cede-lhe o lugar.

Contendo o alvoroço, Perpétua toma da ponta da fita, lê a etiqueta: LOJA DO SENHOR JESUS – Objectos Religiosos à vista e a prazo. Pague a sua devoção em doze meses. Será, por acaso, aquilo com que há tanto tempo sonha, acalentado projecto de compra, encomenda a ser feita na Baía? Teria havido inspiração divina a comandar a escolha, iluminando o pensamento de Tieta? Deus, por vezes, usa empedernidos pecadores como instrumento para compensar os justos.

Puxa a fita, surge a caixa branca. Retira a tampa, entrega-a a Astério – de que matéria é feita assim tão leve? Isopor, explica Antonieta ao cunhado. Uma exclamação geral de admiração e aplauso. Do peito em chamas de Perpétua escapa um oh! de gozo profundo ao enxergar, na caixa de isopor, o objecto de seus sonhos, apenas bem maior em tamanho e em boniteza, em virtude certamente. Quanto maior, mais bonita e cara a imagem, mais santa e milagrosa. Deus inspirara Antonieta: na caixa, alto-relevo em gesso, o Sagrado Coração de Jesus. Nos cabelos, na face, nas mãos, nas vestes, no manto, todas as cores do arco-íris. Exposto ao rubro, amantíssimo coração, a chaga aberta. A gota de sangue vermelha, descomunal rubi. Peça digna do altar-mor da Matriz de Aracajú. Ajudada por Astério e Ricardo, com extremo cuidado, Perpétua retira a pesada efígie – nem quadro nem escultura, tendo algo dos dois e sendo coisa nova, jamais vista em Alegre, alto-relevo para ser pendurado em parede.

Nas costas, forte armação de arame; à parte, uma espécie de base de madeira onde pousá-la. Até os pregos vieram, grandes, especiais, de aço cromado, coisa de ver-se. Tieta respira:

- Felizmente chegou inteiro. Para você botar em sala de visitas, Perpétua.

- Ai, que coisa mais divina! Até tenho palpitações. Não sei como agradecer, mana!

Perpétua beija a irmã na face, de leve e de longe. Assim beija os filhos e a mão de Dom José, a do padre Mariano. Ao Major como teria beijado? Se lhe fosse perguntado, Perpétua responderia que os casais unidos em santo matrimónio, abençoados por Deus, têm direito ao convívio carnal. Direito e obrigação. Mas certamente não diria que da lembrança daqueles beijos ela vive.

Peto alisa o isopor:

- Dá a caixa para mim, mãe?

- Está maluco? Largue essa caixa aí. Deixe também o papel e o cordão, Astério. Posso precisar.

- Vou buscar o martelo, mãe? – Ricardo se oferece, segurando a peanha.

Não tem nenhum que se compare nem aqui, nem em Esplanada. O de dona Aida e de seu Modesto, ao lado deste desaparece – vangloria-se Perpétua.

- Irmã como essa é que não há igual no mundo. – Mesmo ao adular Zé Esteves é bravio e virulento.

Para Perpétua não é hora de discutir qualidades e defeitos de Tieta, nem sequer a maneira imprópria como conduz a viuvez. O ouro paulista, a comenda papalina, a imagem do Coração de Jesus fazem-na perfeita.

- Tem razão, Pai. Irmã generosa como Tieta não há.

Custa-lhe pronunciar as palavras mas o futuro dos filhos exige sacrifícios, o Major os deixou aos seus cuidados.

Ao voltar, Ricardo não encontra a tia; preparam-se, ela e a moça, para o banho. Os demais encontram-se na sala de visitas. Astério segura a peanha, Perpétua já escolheu o lugar para a divina imagem: entre os retratos coloridos, ela de noiva, o Major de farda – trabalho – trabalho de uma firma do Paraná, encomenda logo feita após o casamento. Ricardo encosta a escada na parede, empunha o martelo. Não chegou ainda a uma conclusão sobre a santa com a qual a tia se parece. Antes de vê-la, ele a imaginara Senhora Sant’Ana, a padroeira, a avó. Da Senhora Sant’Ana não tem nada. Talvez Santa Rosa de Lima, Santa Rita de Cássia? Elisa estende os pregos ao sobrinho. Aqui, Mãe, está bom?

De cima da escada Ricardo, enxerga a tia saindo da alcova, levando a toalha e a saboneteira, o banheiro fica no quintal. Morena, onde a longa cabeleira loura do desembarque? Cabelos negros, crespos anéis como os dos anjos na igreja do seminário. Pele trigueira, perna e coxa aparecendo sob o negliché agitado pela brisa, Ricardo desvia os olhos. Perpétua fita a parede, talvez um pouco acima, aí está bem. Não vê a irmã aproximando-se, a la vontê no robe rendado sobre os seios, vaporoso, preso apenas por um cinto, esvoaçando na brisa da tarde a morrer nas barrancas do rio. Não vê ou não quer ver? Tieta olha e aprova, vai ficar bacana. Elisa, babada com o santo e com o penhoar.

- Que amor esse robe!

Perpétua prefere não reparar:

- Vou falar com padre Mariano para vir entronizar no domingo, depois da missa.

Nem Santa Rita de Cássio, nem Santa Rosa de Lima, com que outra então no flos-santório? A caminho do banho, as ancas balouçando, que santa será ela, a tia de São Paulo?

quinta-feira, janeiro 29, 2009

Andy Williams - Can't Take My Eyes Off You




Perry Como - Catch A Falling Star



Nina Simone - If You Knew



Ray Charles - You Win Again



Salvatore Adamo - La Nuit




Tieta do Agreste
EPISÓDIO Nº 34


DE PORTAS E JANELAS E DO CORAÇÃO DE JESUS NA SALA DE VISITAS OU OS PRIMEIROS MOMENTOS NO SEIO DA FAMÍLIA


Na esquina da praça com o Beco da Três-Marias, a comitiva se detém.

- Chegámos – anuncia Perpétua – Vamos entrar.

- Tua casa? Esta? A que era do doutor e de dona Eufrosina? – Surpreende-se Antonieta. Nas cartas, Perpétua referia-se à nossa casinha adquirida pelo Major antes do casamento, na praça Desembargador Oliva – mas aqui é a Praça da Matriz.

- O nome correcto é Praça Desembargador Oliva – esclarece dona Carmosina.

A casa do Doutor, a casa de Lucas. Antonieta veio preparada para enfrentar as recordações mas os equívocos começaram logo ao desembarque, ao perceber o Velho empunhando o bastão.

Nunca imaginara hospedar-se ali, na casa onde Lucas permanecera após a morte do Doutor, estudando as possibilidades de clínica. Valeria a pena estabelecer-se?

Perpétua atribui a surpresa exclusivamente à dimensão da casa, sentimentos opostos a possuem. Satisfação a deleitá-la, não é uma morte de fome, miserável mendiga. Medo da reacção de Tieta que pode considerar abuso a ajuda mensal para a criação dos filhos. Impõe-se uma explicação:

- Foi uma dádiva de Deus caída do céu. O Major pagou uma bagatela pela casa e por tudo o que tinha dentro.

Os amigos se despedem com promessa de visita próxima:

- Vamos aparecer uma dessas noites – avisa o Comandante.

- Venham hoje de noite para conversar.

- Hoje, não, é dia da família.

- Dia de matar saudades… - acrescenta dona Laura, sorridente.

- Amanhã, então.

- Amanhã, sem falta.

Pelo gosto de Ascânio, voltaria nessa mesma noite, não basta à família o resto da tarde? Além do mais Leonora é parente afim, encontra-se em Agreste pela primeira vez, não tem saudades a matar, vai ficar à margem da conversa familiar.

Pena ele não ter a cara dura de dona Carmosina:

- Pois eu venho é hoje mesmo, com Mãe. Quando saí ela me disse: Hoje de noite vou a casa de Perpétua, visitar Tieta.

- Trouxe uma lembrancinha para ela, uma tolice. Por que não vêm jantar com a gente? Posso convidar, Perpétua?

- A casa é sua. Graças a Deus, tem comida com fartura.

- Antes mesmo de tomar banho – preciso de um banho imediatamente, tenho poeira até na alma, aliás precisamos as duas – Antonieta esclarece:

- Enquanto estivermos aqui, a despesa da casa corre por minha conta.

Perpétua esboça um gesto de protesto, não chega a completá-lo, a ricaça corta qualquer tentativa de discussão:

- Se não for assim pegamos nas malas e vamos para a pensão de Amorzinho.

- Nesse caso não discuto… - apressa-se Perpétua, liberta do peso maior. Resta o menor: as despesas feitas para acolhê-las convenientemente, divididas entre ela, Astério e o Velho.

Nem esse prejuízo terão, Antonieta completa:

- Começando pelo que gastaram para nos esperar.

- Ah! Essa não! – intromete-se Elisa: - Uma besteira, coisa à-toa. Fizemos uma vaquinha, coube um pouco a cada um.

- Tu fala como se fosse rica – Perpétua desmascara a irmã, não há coisa pior que pobre metida a besta: - Se esquece que Astério teve de tomar dinheiro emprestado para completar parte de vocês?

- Cala a boca mulher! – Elisa empalidece. Perpétua a humilha de propósito em frente à irmã e à forasteira. Por que expor diante da enteada a pobreza do casal?

- Perpétua tem razão, Elisa, minha filha. Se eu não pudesse está certo. Mas por que hão-de fazer sacrifícios sem necessidade? Mais tarde Perpétua ou Astério me diz quanto gastaram e pronto.

Enquanto fala, Antonieta aproxima-se, abraça Elisa, beija-a afectuosamente – há entre elas, um ar de família, uma parecença no rosto e no jeito, só que a mais moça não herdou a obstinação, a teimosia do velho Zé Esteves a marcar Perpétua e Antonieta, aquela dureza de pedra, a audácia das cabras. Mas não herdou tão pouco a resignação da mãe.

- Não tenha vergonha da pobreza, minha filha. Hoje possuo alguma coisa mas enquanto fui pobre – eu comi o pão que o diabo amassou – nunca me fiz de rica. Se fizesse quem ia me ajudar?

Nem bem conheci Filipe fui logo pedindo dinheiro emprestado a ele.

Acarinhada, tratada de filha, Elisa recupera as cores e o prejuízo:

- Pediu emprestado dinheiro ao noivo?

- Que noivo nem meio noivo, só depois é que veio o noivado. Quando fui apresentada a ele, estava tesa. Um dia, com mais tempo, eu conto. Agora quero é tomar banho. Queremos, não é Nora.

- Nora?

- É o apelido dela. Essa, eu criei. Veio para minha companhia menininha, o que sabe, eu ensinei. Onde fica nosso quarto?

- O seu aqui, Tieta, é a alcova. O de Leonora ali, aquele – aponta Perpétua – Cardo, Peto, levem as malas. Ajude também Astério.

Por que Tieta não protestou, não pediu para ficar junto com a filha de criação, como ensinam as boas maneiras? A janela da alcova abre sobre o Beco das Três-marias, a porta, face a face com a do gabinete.

- Dorme alguém no gabinete?

- Ricardo.

- Eu, tia. Qualquer coisa que quiser de noite é só chamar.

quarta-feira, janeiro 28, 2009

Condor Pasa - Espíritu Andino



Paul Simon And Art Garfunkel - The Sounds Of Silence



The Mamas and The Papas - Califórnia Dreamin



The Moody Blues - Nigts In White Satin (1967)




Tieta do Agreste
EPISÓDIO Nª 33


MINUCIOSA DESCRIÇÃO DO CONFUSO DESEMBARQUE DE TIETA, A FILHA PRÓDIGA, OU ANTONIETA ESTEVES CANTARELLI, A VIÚVA ALEGRE



Na primeira fila, a família, tristeza expressa nos olhares, nas lágrimas, nos trajes. Um passo à frente dos demais, o velho Zé Esteves, mascando fumo. Em seguida aos enlutados parentes, o reverendo, os meninos do catecismo, as pessoas gradas, dona Carmosina, buquê em punho, o colorido alegre das flores destoando do crepe e do choro – essa criatura para aparecer passa por cima dos sentimentos mais sagrados, indigna-se Perpétua, por baixo do véu preso ao coque, a lhe cobrir o rosto. Depois as beatas e o resto da população.

A marinete se aproxima, Jairo ao volante, poucos passageiros. Para Jairo dia magro, para Agreste dia gordo, dia de matar o carneiro pascoal, de foguetório e festa em honra da filha pródiga, não fosse ela viúva em nojo e dor. Cabem somente luto e lágrimas, cantoria de igreja.

As conversas cessam, Peto se alteia na ponta dos pés, assim a tia desembarque ele cairá fora, arrancará os sapatos. A marinete estanca num rumor cansado de juntas e molas. Peto conta os passageiros que descem: seu Cunha, um, o casal de roceiros, dois, três, dona Carmelita, quatro, a criada cinco, esse eu nunca vi, seis, nem esse sete, seu Agostinho da padaria, oito, a mulher dele, nove, a filha, dez, a tia Antonieta e a moça vão ser os últimos. Mesmo Jairo salta antes, carregado de maletas e de bolsas das esperadas viajantes. Com Jairo fazem onze, agora doze, é ela, por fim.

Será ela? Peto fica em dúvida. Não pode ser, a tia deve estar de luto, véu fúnebre tapando o rosto, igual à mãe, não pode ser de maneira alguma essa artista de cinema, Gina Lollobrigida. Na porta, sobre o degrau, majestosa, Antonieta Esteves – Antonieta Esteves Cantarelli, faça o favor, exige Perpétua. Deslumbrante. Alta, fornida de carnes, a longa cabeleira loura sobrando do turbante vermelho. Vermelho, sim, vermelho igual à blusa esporte, de malha, simples e elegante, marcando a firmeza dos seios volumosos dos quais se vê apreciável amostra através da gola de botões abertos. A calça Lee azul colada às coxas e à bunda, valorizando volumes e reentrâncias, que volumes! que reentrâncias! Os pés calçados com finos mocassins havana. O único detalhe escuro em todo o traje da viúva são os óculos esfumaçados, lentes e armação quadradas, o poder do chique, assinados por Christian Dior.

O espanto dura uma fracção mínima de tempo, um tempo imenso, uma eternidade.

Peto, vitorioso exclama:

- A tia não está de luto, Mãe. Posso tirar os sapatos e a gravata?

Antonieta, paralisada sobre o degrau, na porta do ônibus: diante dela a família de luto pela morte de Filipe, o inolvidável esposo, e ela em tecnicolor, em azul e vermelho, blusa aberta, esportivas calças Lee, ai, meu Deus, como não pensara em luto? Estudara cada pormenor e os discutira com Leonora, meticulosamente. Esquecera o mais importante. Mas já Zé Esteves cospe o pedaço de fumo e estende os braços para a filha pródiga:

- Minha filha! Pensei não ia mais te ver mas Deus quis me dar essa consolação antes da morte.

De cima do degrau da marinete, Antonieta reconhece o pai. O pai e o bordão. É o mesmo, o mesmíssimo cajado que cantou em suas costas naquela noite de fim do mundo. Um frouxo de riso sobe dentro dela, não consegue contê-lo, estremece, incontornável som a romper-lhe a boca, apenas tem tempo de encobrir o rosto com as mãos, antes de saltar. Acorrem todos a consolar a viúva em pranto, filha pródiga afogando os soluços nos braços do pai, comovente instante. Nem Perpétua se deu conta. Elisa chora e ri, de repente desafogada, a irmã sendo como a imaginara, sem tirar nem pôr. Única a estranhar o curioso som inicial, dona Carmosina aproxima-se com as flores tão de acordo com o traje de viagem de Tieta.

Enquanto Tieta vai de abraço em abraço, disputada pelas irmãs, pelo cunhado, pelos sobrinhos - tire os sapatos meu lindo, fique à vontade – presa aos beijos sem conta, às lágrimas de Elisa, na porta da marinete de Jairo aparece a mais formosa, a mais doce e sedutora donzela, esbelta juventude, uma sílfide como logo reconheceu e proclamou o vate De matos Barbosa.

Parada, a contemplar a emocionante cena, emocionada ela também. Encantadora no slaque delavê, boné da mesma fazenda rodeada de cabelos louros, acinzentados pela poeira, Peto reconhece a própria mocinha dos filmes de cauboi.

Um murmúrio de admiração percorre a rua, Tieta, desprendendo-se dos beijos de Elisa, apresenta:

- Leonora Cantarelli, minha enteada, minha filha, não tem diferença.

Dona Carmosina volta-se para Ascânio Trindade e o surpreende embevecido. E agora, amigo? Leonora amplia o meigo sorriso, abarcando a todos, detendo-se em Ascânio a fixá-la, atoleimado.

- Feche a boca, Ascânio, e vá ajudar a moça a descer – ordena dona Carmosina.

Adianta-se Ascânio, oferece a mão à paulista: seja bem vinda às terras de Agreste, pobres, sadias e belas, perdoe o atraso e desconforto. Ricardo põe o joelho em terra para pedir a bênção à tia mas ela o ergue e o toma nos braços, beija-lhe as faces: meu padreco mais garboso!

Após compreensível indecisão, o padre Mariano resolve, não vai perder, por uma questão de protocolo, o difícil trabalho de adaptação da letra de uma ladainha e de quinze dias de ensaio.

Faz um sinal, os meninos do catecismo cantam:

Vestida de negro
Ela apareceu
Trazendo nos olhos
As cores de luto
Ave! Ave!
Ave Antonieta!

A mão ainda na mão de Ascânio, encantada, Leonora deixa escapar o riso cristalino, muito mais cristalino, oh! muito mais do que a da finada Astrud. Finada e sepultada, ali, naquela hora, em frente ao cinema, sob os pneus carecas da marinete de Jairo.

Antonieta, de braço em braço:

- Carmô, meu anjo, que alegria! Coma vai dona Milú? Foi ela quem colheu as flores? Carina… Veja, virei italiana em São Paulo, vou dizer querida e digo Carina… - a Tieta de sempre, jovial, marota, não mudou, mesmo dizendo Carina para dizer querida.

Barbozinha! É você? Quase não lhe reconheço!

- As agruras da vida, Tieta, o sofrimento…

- Sempre escrevendo versos? Lembra dos que fez para mim? Lindos.

- Somente e sempre para você. Está mais moça e ainda mais bonita.

- E você continua mentiroso, Barbozinha. Adulador.

Ei-la em Santana do Agreste, em meio à família em luto, a ouvir os meninos do catecismo: obrigado, padre, de todo o coração. Do mar, chega a brisa da tarde, vem saudá-la. Com a ajuda de Sabino, Jairo desembarca as malas, a bagagem viaja no teto da marinete, coberta com lona grossa como se alguma cobertura adiantasse contra a poeira do caminho.

- Vamos, minha filha – convida Zé Esteves oferendo o braço, apoiando-se no bastão.

- Para minha casa – tenta comandar Perpétua em meio aos destroços da violada compunção.

Cabe-lhe a culpa, a mais ninguém. Com pudera imaginar Tieta vestindo luto por marido? Fizera da irmã sua igual, como se dinheiro, alta sociedade, casamento com paulista rico e comendador do Papa pudessem consertar quem nasceu torta, rebelde a códigos, leis e respeito humano, sem régua nem compasso.

Antonieta Esteves Cantarelli toma o braço do pai, circula o olhar, sorri para as beatas, para o árabe Chalita, para o comandante e dona Laura, para Jairo, para o moleque sabino, para Bafo de Bode a fitá-la da calçada, a medir, a conferir. De tão mísero e podre, cabe-lhe o direito à insolência. A voz molhada de cachaça vibra na rua, em aprovação entusiástica:

- Viva o belo pé de buceteiro!

- Viva! Viva! Vivôo – apoiam os meninos do catecismo.

terça-feira, janeiro 27, 2009

The Archies - Sugar Sugar




Sylvie Vartan - Si Je Chante (1964)



The Beatles - A Tase Of Honey



Jo Dee Messina - Stand Beside Me




A ARTE E O SEU CONTEXTO




Quando o luxo vem sem etiqueta…

O tipo desce na estação do Metro vestindo jeanes, t-shirt e boné, encosta-se próximo à entrada, tira o violino da caixa e começa a tocar com entusiasmo para a multidão que passa por ali.

Durante os 45 minutos que tocou foi praticamente ignorado pelos transeuntes, ninguém sabia, mas o músico era Joshua Bell, um dos maiores violinistas do mundo, executando peças musicais consagradas num instrumento raríssimo, um Stradivarius de 1713, avaliado em cerca de 3 milhões de dólares.

Alguns dias antes, Bell tinha tocado em Simphony Hall The Bóston, onde os melhores lugares custam a bagatela de 1.000 dólares.

A experiência gravada em vídeo, mostra homens e mulheres de andar rápido, copo de café na mão, telemóvel no ouvido, crachá balançando no pescoço, indiferentes ao som do violino.

A iniciativa, realizada pelo jornal Washington Post, era a de lançar um debate sobre valor, contexto e arte.

Conclusão:

- Estamos habituados a dar valor às coisas quando estão num contexto.

Bell, era uma obra de arte sem moldura. Um artefacto de luxo sem etiqueta de glamour.

Apenas uma mulher reconheceu a música…

Eis o vídeo da apresentação no Metro:

Ouça A Música



JOSHUA BELL - AVÉ MARIA




Tieta do Agreste
EPISÓDIO Nº32


Cheia, a Agência dos Correios e Telégrafos: o comandante Dário e dona Laura, Barbosinha de barba feita, homenagem à antiga namorada, Ascânio Trindade, – representando a Prefeitura – doutor Mauritônio cada vez pior, vendo mulheres nuas – e Elisa num negro, vaporoso e esvoaçante vestido de gaze, dos enviados por Antonieta nos pacotes de roupa usada. Exibira antes audacioso decote: agora composto, fechado no pescoço, exigência de Perpétua, fiscal de trajes e modos para o desembarque.

- Pelo menos tape os peitos. Isso é vestido mais para baile do que para luto, mas sendo o único preto que você tem, vá lá, desde que o arrume. Ela vai chegar de luto fechado, a gente tem de estar de acordo. Imagine que o velho queria que se fizesse uma festa, convidasse meio mundo. Ela chega chorando a morte do marido e em vez de luto encontra festa, já pensou?

Para que as flores não murchem, dona Carmosina colocou o buquê dentro de um copo de água. Sob a influência da dialética de Perpétua, discutira com a mãe, talvez flores não caíssem bem por ocasião da chegada da viúva aflita, em nojo recente. Dona Milú não quis conversa: entregue as flores a ela e diga que fui eu quem mandou. Se a gente manda flores até para defunto, por que viúva não há-de ter direito? Ora essa…

- Meu Deus, não chega nunca! – Elisa, por mais que se esforce para manter-se compungida, não consegue conter a agitação, misto de alegria e medo.

Alegria sem medida de conhecer a irmã, a fada, a rica, a elegante, a grã-fina, a paulista, a protetora. Receio por causa da louca mentira, da omissão da morte de Toninho com o fim de embolsar a ajuda mensal. Dona Carmosina fizera o possível para acalmá-la.

- Quando ela perguntar por Toninho, o que é que eu vou dizer?

- Diga a verdade. Diga que eu lhe aconselhei a não contar e deixe o resto por minha conta.

- Será que ela me perdoa?

- Conheço Tieta, não vai fazer caso. Pode deixar comigo.

Persiste outra nuvem a turvar a sua alegria; a vinda da enteada, quase filha, dona de um lugar no coração de Tieta que Elisa deseja todo para si.

Na entrada do cinema, o árabe Chalita palita os dentes, perdido em recordações: Tieta era ainda mais bonita que a irmã, a mulher de Astério. Bonita e atirada, um fogo a lhe comer as carnes. Na porta lateral, a sorveteria: um pequeno balcão, uma pequena gaveta e a catimplora que o moleque Sabino maneja, enchendo-a diariamente de sorvete de fruta para ganhar uns níqueis, pagos pelo árabe. Também Sabino se botou de calça e camisa limpas, sapatos e meias. Por seu gosto teria posto fumo no braço, considerava-se da família; pau mandado de Astério, caixeiro, moço de recados, tirador de cocos. Só não usou braçadeira negra com medo de dona Perpétua, uma peste. Sentado no passeio Bafo de Bode curte a cachaça em silêncio. Curioso de ver a estampa dessa falada filha de Zé Esteves, que ele não conhece; quando chegou a Agreste, havia vinte e cinco anos, à procura de remédio e de aguardente, ela já partira, coube-lhe recolher esmaecidos ecos da surra nos últimos comentários gastos e vaqueiros.

No ponto exacto onde a marinete pára, junto ao poste diante ao cinema na calçada, Zé Esteves e a esposa Tonha. Para o casamento de Elisa o Velho mandou tingir de preto, em Esplanada, antigo e desbotado traje azul. Não o veste desde então. O paletó parece um saco, as calças frouxas. Zé Esteves já não é o gigante de outrora, um pé de jacarandá, uma fortaleza, mas ainda se mantém firme, ali, de pé, há quase duas horas, mascando fumo, apoiado no bastão. Tonha, se pudesse, pediria uma cadeira ao árabe; onde a coragem de expor ao Velho o seu cansaço? Usa luto aliviado, apenas saia preta e faixa de crepe na blusa branca. Também remoto é o parentesco, como fez notar Perpétua, marcando diferenças e distâncias.

Com duas horas e dez minutos de atraso, soa na curva a buzina da marinete de Jairo, correria geral. Perpétua e padre Mariano ordenam as tropas. A marinete desponta no começo da rua. Ouve-se um primeiro soluço antes da hora.

segunda-feira, janeiro 26, 2009

SCOTT MACKENZIE - SÃO FRANCISCO



SANTA BÁRBARA - CHARLY



CHICO BUARQUE - APESAR DE VOÇÊ




Tieta do Agreste
EPIDÓDIO Nº31


DA VOLTA DA FILHA PRÓDIGA A AGRESTE, ONDE, NO PONTO DA MARINETA, A FAMÍLIA EM LUTO PELA MORTE DO COMENDADOR, OS MENINOS DO CATECISMO, PADRE MARIANO, TASCÂNIO DE ANDRADE, COMANDANTE DÁRIO, PETA DE MATOS BARBOSA, O ÁRABE CHALITA, DIVERSAS OUTRAS FIGURAS GRADAS, SEM ESQUECER A MALTA DO BILHAR, MUITO MENOS DONA CARMOSINA, NA MÃO UM BUQUÊ DE FLORES COLHIDAS NO JARDIM DE CASA POR DONA MILÚ, O CLERO, A BURGUESIA E O POVO, ESTE REPRESENTADO PELO MOLEQUE SABINO E POR BAFO DE BODE


Agrupados em quatro ou cinco locais, nas vizinhanças do cinema, ponto de paragem de marinete de Jairo, esperam ouvir a buzina rouquenha na curva da entrada da cidade. Na Igreja, sob a batuta do padre Mariano, os meninos do catecismo, nas roupas domingueiras, além de perpétua e do filho seminarista, de batina e livro de missa, risonho mocetão em férias. No adro, movimentam-se as beatas, bando de urubus a grasnar; prontas para o magno acontecimento, o desembarque da viúva rica; querem vê-la em luto e em pranto nos braços da família, e de quebra, a enteada, a forasteira. Dia gordo.

No Bar dos Açores, à excepção do proprietário em mangas de camisa, todos engravatados: Osnar, Seixas, Fidélio, Aminthas, guarda de honra do cunhado Astério, sufocado no terno negro, empréstimo de Seixas, magricela. Perpétua concordara com que, durante a semana, reduzisse o nojo à braçadeira preta, ao fumo no chapéu e na lapela. Mas, para a cerimónia das boas vindas, exige luto fechado, traje, gravata e compunção.

- Faz questão porque não tem de comprar, vive de luto. Mas onde vou buscar dinheiro para fazer terno?

- Tive de comprar para Peto.

- Um par de calças curtas, ora.

- Por que não toma emprestado? Seixas aliviou o luto.

Boa lembrança, não fosse a diferença de peso entre os dois. A duras penas, com o auxílio de Elisa, conseguiu enfiar as calças. O paletó não abotoa e abriu sob os dois sovacos mas o descosido só aparece quando Astério levanta os braços.

Peto foge da Igreja e da mãe, vem para o bar. Cara lavada, cabelos penteados, coisas raras; camisa branca de mangas compridas, gravata borboleta, antiguidade do falecido Major.

O pior são os sapatos. Os pés, livres nas ribanceiras e na correnteza do rio, não se adaptam. Osnar goza a figura e as caretas do menino:

- Sargento Peto, você está uma tetéia. Se eu fosse chegado a comer menino, hoje era seu dia. Sua sorte é que não sou apreciador.

- Não chateie.

Apesar dos sapatos, Peto não esconde a satisfação: durante a permanência da tia dormirá em casa de Astério, no quartinho dos fundos, longe das vistas e dos horários estritos da mãe, poderá acompanhar Osnar e Aminthas, Seixas e Fidélio pelas ruas à noite, nas escusas caçadas a provocar comentários e risos:

- Passa fora, moleque, isto é conversa de homem…

Só Osnar abre-lhe perspectivas!

- Um dia desses, sargento, eu lhe levo pra caça. Tá chegando a idade. Vá preparando a espoleta.

Perpétua decidira que no quarto de Peto ficará a enteada de Antonieta. Como o resto da casa, foi lavado com creolina, esfregado, varrido até à última partícula de pó, folhas de pitanga no chão, para perfumar. Há uma semana, a pequena Aracy, emprestada por Elisa pelo tempo que durar a estadia das paulistas, se entrega a uma faxina em regra.

Residência confortável, na esquina da Praça da Matriz com o Beco das Três Marias, Peto não necessitaria mudar-se, caso Perpétua tivesse aceite a opinião de Astério; as duas hóspedes no quarto de Ricardo, os dois meninos no de Peto. Mas Perpétua num desparrame de cortesia – fora atacada de mania de grandeza ou tinha algum plano armado na cabeça? Dona Carmosina ainda não chegara a uma conclusão – decidira colocar Antonieta na alcova fresca e ampla, deixando-lhe, por mais inacreditável que possa parecer o uso da cama de casal com colchão de lã de barriguda, onde rebolara com o Major durante o tempo feliz e curto do matrimónio. Contado não se acreditaria: o quarto dela e do Major? Impossível! Como as coisas mudam, Deus do Céu! Dona Carmosina arregala ao máximo os olhos miúdos num espanto.

Cama de casal, colchão de barriguda, penteadeira, armário enorme, móveis pesados de jacarandá. O Major comprara a casa mobilada nas vésperas do casamento, uma pechincha. O único herdeiro de dona Eufrosina, falecida aos noventa e quatros Janeiros, um sobrinho, vivia em Porto Alegre, nunca pusera os pés em Agreste, mandou vender a casa e móveis por qualquer oferta, desde que à vista. Tão pouco havia outro candidato, à vista ou a prazo.

Na sala de visitas, enorme, oito janelas dando para a rua, sai o corredor até à sala de jantar. De cada lado dois quartos, um dos quais, em frente à alcova, desde priscas era transformado em gabinete de leitura pelo finado doutor Fulgêncio Neto, esposo de dona Eufrosina, médico de fama nos idos do progresso.

A secretária, com dezoito gavetas, sendo uma delas cofre com segredo; a estante com livros de medicina e obras de Alexandre Dumas e Victor Hugo. O Major não buliu no gabinete, gostava de nele permanecer após o almoço, sentado em frente da escrivaninha, lendo jornais da Baía; atrasados de uma semana, ou tirando uma pestana na rede. Ali, Ricardo faz banca mesmo em férias, uma hora por dia. A seguir, face a face, os quartos de Ricardo e Peto, ambos requisitados por Perpétua. No de Ricardo, onde fica o oratório, dormirá ela própria; no de Peto, a tal Leonora. Ricardo ocupará o gabinete onde já estão os seus livros de estudo. Acomoda a moleca Araci no depósito de frutas, no quintal, no quintal, sobre a improvisada enxerga. Perpétua comandou a arrumação e a limpeza da casa. Comandou tudo quanto se referiu à chegada e estadia de Tieta.

domingo, janeiro 25, 2009

Bryan Hyyland - Sealed With A Kiss



Tony Orlando - Knock Three Times



Rui Veloso - Não Há Estrelas no Céu



Twilling Dance Art



Hyunday - Pilobolus Life Shapes




Tieta do Agreste
EPISÓDIO Nº 30


DE ASCÂNIO TRINDADE, INTEMERATO PATRIOTA E LUTADOR, COM AS DURAS PENAS QUE EM SINA LHE COUBERAM


Só Ascânio Trindade não perde o fôlego de lutador, nem a esperança de um milagre a salvar Agreste – ama a terra onde nasceu e à qual a doença do pai o fizera regressar abandonado o curso de Direito. Já não tem obrigação a cumprir em Agreste, pois seu Leovigildo finalmente morrera após infindáveis cinco anos, preso à cama sem movimentos, apenas um olho aberto a fitar o vazio.

Ascânio fora enfermeiro, ama-seca. Pai e mãe, dando banho naquele corpo inerte, limpando-o, pondo-lhe o comer na boca, duras tarefas. Rafa, a escura mãe de leite, mal podia ajudar, por mais que quisesse, velha e reumática, sem forças. Ascânio tomava nos braços o corpo do pai, levando-o para deitá-lo ao sol sob a goiabeira, no quintal, fazendo-lhe muda companhia horas e horas. Sempre tranquilo, sem uma queixa, nem dos estudos interrompidos, nem da longa provação. O olhar do pai, um único olho, a acompanhá-lo agradecido, basta ao filho. Esse já ganhou o reino dos céus, diziam as beatas.

Após o enterro de seu Leovigildo, havia dois anos, Ascânio, se quisesse, poderia ter-se demitido do cargo de Secretário da Prefeitura onde o pusera o padrinho, coronel Artur de Tapitanga, quando viu sozinho com o pai paralítico e sem tostão. Demitir-se para quê? Para voltar à cidade da Baía, recomeçar a faculdade? Maior do que a falta de recursos, era a falta de vontade. Na capital, Astrud, casada, ria a inesquecível, cristalina gargalhada – aqui, em meu desterro, carregando a cruz do meu calvário, ouço teu riso de cristal e reencontro forças; nos dias mais penosos a recordação dos teus olhos verdes me sustenta o ânimo. Dona Carmosina derrama lágrimas lendo as violadas cartas, quanto amor!

Noutra coisa não pensou Ascânio no primeiro ano senão no dia do retorno. Mas quando, abrupta, Astrud lhe comunicou o próximo casamento, sem sequer ter desfeito o noivado, ele jurou não pôr mais os pés na cidade onde habitava a traição. Sobretudo depois que Máximo Lima, seu colega de faculdade, advogado, a prosperar na Justiça do Trabalho, lhe informara haver a inocente, a imaculada Astrud, casado de bucho inchado, não fosse solto o vestido de noiva e se enxergaria o volume da barriga de quase quatro meses. Já de menino e escrevendo cartas de amor para Ascânio, prosseguindo no casto idílio, cândida menina, puta sem rival! Isso lhe doía mais que tudo; acreditara na pureza, no firme sentimento, deixara-se iludir como uma criança tola, ingénuo paspalhão.

Ademais, habituara-se à vida de Agreste, no que ela tinha de melhor, o ar, a água, a paisagem, a convivência dos amigos. Só não aceitara a passividade do atraso, da pobreza, o marasmo. A cabeça repleta de planos, não se deixa abater.

Terra tão mísera e largada, Agreste não interessa nem mesmo aos políticos, raça aliás em extinção. Entregue a Prefeitura ao doutor Mauritônio Dantas, cirurgião-dentista de forças reduzidas pelos desgostos e pela esclerose, trancado em casa a bem da moralidade pública, quem realmente manda e desmanda é Ascânio. Há um consenso geral: quando o doutor bater as botas, colocarão Ascânio no cargo vago, se possível, Prefeito para a vida inteira.

A verdade é que, praticamente sem receita alem da quota federal do imposto de renda, da escassa ajuda estadual, Ascânio mantém a cidade limpa, calçou com pedras do rio, ruas e becos, inaugurou duas escolas municipais, uma na Rocinha, outra em Coqueiro, e busca obter, à custa de ofícios, petições às autoridades, cartas aos jornais e estações de rádio, que se estendam a Agreste os fios da Hidroeléctrica. Ascânio não desanima, porém. Prossegue em sua luta. Acredita que um dia, fatalmente, a fama do clima, a qualidade da água, a beleza da paisagem trarão às artérias e praias de Agreste turistas ávidos de paz e natureza.

Ao ouvi-lo falar há quem sorria do ardente entusiasmo, Agreste não tem jeito; mas há quem se empolgue e por um momento sonhe com ele, veja realidade nessa fantasia; como sempre, as opiniões se dividem. Somam-se unânimes, sem divergência ao julgar o próprio Ascânio. Não há, em todo o município, cidadão mais estimado, mais bem visto. As moças casadoiras não tiram os olhos dele. Ascânio completou vinte e oito anos, o que espera para escolher noiva? Quando Prefeito não poderá continuar freguês da casa de Zuleika.

Por mais de uma vez, dona Carmosina lhe colocou o problema na Agência dos Correios. Tanta moça bonita e prendada em Agreste e todas desejosas. Ele sorri apenas, sorriso triste. Dona Carmosina não insiste: leu a correspondência toda, linha por linha, repete de memória trechos da derradeira missiva, resposta à comunicação do próximo casamento – quem te escreve, Dalila, é um morto, frígido coração que, da sepultura onde o enterraste, apunhalado, vem te desejar felicidade; que o remorso não turve tua vida e que Deus me conceda a graça de esquecer-te, arrancar do peito tua imagem… Um poeta, Ascânio Trindade, se escrevesse versos, nada ficaria a dever a Barbosinha. Pelo visto, não esqueceu, não pensa em noiva.

Sorri apenas um sorriso triste. Outra? Jamais. Nem que um dia desembarque da marinete de Jairo a mais formosa das donzelas, a mais pura e sedutora. Coração morto para o amor, minha querida dona Carmosina.

Raymond Crowe On Spicks & Specks - Wahat A Wonderful World



Salvatore Adamo - La Noche



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