sábado, dezembro 26, 2015

IMAGEM

Um Natal com neve...



Gato Fedorento - O discurso das vacas...



Estas são as vozes que provocam arrepios... estas sim!




Tieta, no regresso a Agreste
TIETA DO AGRESTE
(Jorge Amado)



EPISÓDIO Nº40















De shorte, à mostra as longas pernas, as modeladas coxas, a blusa amarrada sob os seios, o umbigo de fora (ai, esses costumes de S. Paulo, os meninos vão perder a virgindade dos olhos! Perpétua toca com os dedos as contas do terço no bolso da saia), Leonora sorri, acalma Tieta:

- Vamos à praia noutro dia, Mãezinha. Dona Perpétua tem razão, a missa é mais importante. – sorri para Perpétua – Mãezinha veio falando em Mangue Seco a viagem toda. Mas a missa é sagrada.

Muito bem, assim fala uma boa filha, mesmo sendo paulista, pouco atenta ao rigor do luto, aos prolongados ritos da morte, obrigatórios e rígidos em Agreste.

Se Leonora se vestisse com decência, Perpétua só encontraria elogios a lhe fazer. Que necessidade tem de exibir o umbigo, que beleza existe num umbigo, pelo amor de Deus? Quem sabe, Peto poderia responder pois o olho apreciador vai e volta, das coxas para o umbigo, para a barriga de bilha, torneada.

- Tem razão, Nora. Continuo cabeçuda como uma cabra velha. Quando quero uma coisa não vejo nada à minha frente.
Iremos a Mangue Seco no outro fim-de-semana.

Conduzidas por Ricardo – vista a batina, acompanhe sua tia – foram à tarde conhecer a casa de Elisa. Barraco de pobre, mana, caro só o aluguel. Caro? Se fosse em São Paulo… Lá, para começar, só os multimilionários moram em casas, os demais vivem atulhados em apartamentos ou apodrecem em cortiços, sardinhas em lata.

Em compensação, cada apartamento mais maravilhoso, não é? O de vocês, conte… Fica para depois, com tempo, agora precisamos ir. Não antes de comer uma fruta, um doce, tomar um cálice de licor senão me ofendo.

Doce de araçá, raramente se faz, delicioso! Licor de jenipapo. O que eu vou engordar, meu Deus! Gulosa, de volta aos sabores da infância, Tieta repete a dose.

Na rua, encontram Ascânio Trindade. Por acaso ou de propósito, deixou ele a Prefeitura às moscas? Querem ir aonde? Tem um passeio bonito: ali adiante o rio se alarga e forma pequena bacia, reduto das lavadeiras, lugar lindo, chama-se Bacia de Catarina, nome certamente posto, por um literato, antepassado de Barbozinha.

Ou por ele mesmo noutra encarnação. Hoje não, tem de visitar dona a Agência dos Correios, prometeram a Carmosina. Vão ao Aerópago? Ao quê? Aerópago, é o apelido de Giovani Guimarães, um jornalista da capital, botou na Agência dos Correios quando esteve em Agreste: ali se reúnem os sábios. Gozado! Leonora aberta em riso, cristal a romper-se nas ruas de Agreste.

Breve parada na porta do cinema para dizer boa tarde ao árabe Chalita – ainda se lembra de mim? Quem pode te esquecer, Tieta? Sorvete de Mangaba, Leonora não conhece, vai ver o que é bom.

Hoje é de graça: o árabe se cobra lavando a vista em Tieta e na moça. Regala-se com a visão de mil e uma noites, sob o transparente tecido dos modelos, iluminados por um raio de sol.

Combinação anágua? Isso não se usa mais, peças de museu. Sutiã? Para quê, se os seios são firmes, não precisam de armação de entretela a sustentá-los? Calçola? Minúsculo tapa sexo e basta. Viva a civilização e voltem sempre, suplica o árabe progressista.

Nas janelas, solteironas e mocinhas debruçam-se para enxergar melhor, observando cada passo, cada gesto, comentando os trajes.

Você tinha coragem de usar? Eu? Acho que não. Pois eu teria se mamãe deixasse. Tieta trouxe para Elisa uma mini-saia mas ela ainda não se atreveu a estrear.

Alvoroço na bar, a matilha nas portas, brechando. Até seu Manuel larga o balcão, também é filho de Deus. Leonora acha graça em tudo, soltos, o riso e os cabelos; Ascânio recolhe pela rua pedaços de cristal, recorda um verso ouvido não sabe: loira como um trigal maduro. Fica sabendo do adiamento da visita a Mangue Seco e é convidado para a missa pela alma do Comendador. Tieta deixa-o à vontade:

- Se não quiser, não vá. Essa história de missa de finado, só por obrigação. Aliás, Filipe tinha horror a tudo o que cheirasse a morte, defunto, cemitério, missa do sétimo dia. Pelo meu gosto ia a Mangue Seco. Mas Perpétua faz questão, paciência.

Ascânio não aprova nem desaprova, nessas divergências de opiniões entre as irmãs não dá palpite, mas quanto a ir à missa, isso com certeza:

- No próximo sábado? Comparecerei, sem falta. Já estarei de volta.

- Vai viajar? – surpreende-se Leonora.

- Para onde? – interessa-se Tieta.

- Vou a Paulo Afonso tratar do problema da luz. Estão colocando luz da Hidrelétrica nos municípios de toda essa zona do Estado, só deixaram de fora três cidades, uma delas é Agreste, uma discriminação sem justificativa, no meu entender.

Estou vendo se consigo que voltem atrás e nosso município entre na relação dos beneficiados. Mandei ofícios para meio mundo, sem resultado. Alguns nem tiveram resposta. Decidi falar pessoalmente com o director da usina. Numa conversa cara a cara, quem sabe eu o convenço e deito abaixo essa injustiça.

- Vai demorar? – a pergunta de Leonora é um pedido: não demore, volte logo estou à espera. Assim dizem os olhos.

- Não, só dois dias. Pego a marinete amanhã, amanhã mesmo me toco de Esplanada para Paulo Afonso. Fico lá o dia de depois de amanhã, quinta-feira estou de volta. Talvez com uma boa notícia para Agreste.

Gosto de gente decidida como você – apoia Tieta: - Vá, brigue e convença o homem, traga essa luz que Agreste bem precisa.

- Vai conseguir! – exalta-se Leonora: - Vou ficar torcendo.

- Se eu já estava disposto a brigar, agora nem se fala.

Sente-se Ascânio armado cavaleiro andante, partindo para o campo de luta sob a inspiração da sua Dulcineia.

Ao voltar vitorioso, tendo convencido os frios e distantes directores e técnicos da importância histórica e das possibilidades turísticas de Agreste, difícil tarefa, árdua batalha, colocará aos pés de Leonora o troféu conquistado: a refulgente luz da Hidroelétrica em substituição da bruxuleante iluminação actual devido ao motor instalado por seu avô Francisco Trindade, quando intendente, no tempo do onça.

Leonço, ex-soldado da Polícia Militar, ex-jagunço, actualmente paisano e capenga – um tiro casual na zona, há vários anos – funcionário municipal, pau para toda a obra, de faxineiro a moço de recados, de guardião a jardineiro, surge na esquina, arrastando a perna: reclamam a presença de Ascânio na Prefeitura.

- Me desculpem, preciso de ir, sei de que se trata. Até logo.

- Até quinta, não é? Fico esperando – diz Leonora, os doces olhos.

- Quinta, sim. Mas, se me permitem, passo hoje à noite por casa de dona Perpétua para me despedir.

- Não precisa de pedir licença, venha sempre que quiser – convida Tieta.

- Venha mesmo. Sem falta – reforça a moça.

Na esquina da Praça, Ascânio volta-se, Leonora levanta a mão, acena, ele responde. Tieta se diverte:

- Já conquistou a Prefeitura, hei, cabrita? Rapaz simpático.

- Um amor… - resume Nora, a voz de enleio.

Todo à vontade...












Estava um fulano no cinema, na maior: as pernas na poltrona da frente, os cotovelos nos bancos dos lados, todo à vontade. Então, o gerente chega e diz-lhe: 

— Então, que é isso? Não quer uns amendoinzinhos ou um uisquezinho?

— Não! Quero uma ambulância. Eu caí lá de cima... 

Assim Nasceu Portugal
(Domingos Amaral)

Episódio Nº 141





















Ricobayo, Pentecostes, Junho de 1126



À medida que a tarde caía, o ambiente ia ficando mais pesado na enorme tenda que Afonso VII mandara erguer à entrada da povoação de Ricobayo.

Desde as primeiras horas da manhã que o novo rei recebia nobres galegos, leoneses e castelhanos. Os Trava, com o pai, Pedro Froilaz à cabeça, haviam-lhe já beijado a mão, mas o encontro com Dona Teresa fora adiado devido às ausências relevantes de Afonso Henriques e dos senhores de Toronho e Celanova.

Foi já ao final da tarde que o monarca coroado há poucas semanas mandou finalmente entrar a comitiva portucalense, onde marcava presença o novo Mordono-Mor, Paio Soares e à qual se haviam juntado Fernão Peres de Trava e seu irmão Bermudo.

Nervosa e pálida, Dona Teresa beijou o sobrinho na mão e depois foi sentar-se num banco, enquanto o Mordomo e os Trava se mantinham de pé, à frente do rei de Leão, Castela e Galiza.

Aos vinte e um anos, Afonso VII, parecia banhado em autoridade natural e carisma. Sagaz, falador mas decidido, era também um homem vaidoso e apresentava uma riquíssima dalmática roxa, que o cobria dos ombros aos pés, transportando na cabeça a magnífica coroa do seu avô Afonso VI, incrustada de safiras, rubis e pérolas.

Da última vez que Dona Teresa o vira, o sobrinho não usava barba, mas agora deixara-a crescer, influenciado pelas novas modas, importadas de Bizâncio. Ouvi-o dizer:

- Segundo sei, tendes pretensões a apresentar.

A custo, dominada por um estranho mal estar, Dona Teresa amparou-se a Fernão Peres. Relembrou as antigas decisões de seu pai, Afonso VI, e lá acabou por afirmar, de forma não muito convicta, que se julgava no direito de ser rainha da Galiza, pois tinha sido prejudicada em Toledo, e considerava ser aquele o momento da recompensa.

Durante anos governara com mestria o Condado de Portucalense, rechaçara dois ataques do califa Ali Yusuf  a Coimbra e provera a união entre as famílias do Norte e do Sul da velha Galécia, como os Romanos lhe chamavam, consolidando a sua ligação à mais importante casa da região, com o matrimónio entre a sua filha mais velha, Urraca Henriques e Bermudo de Trava.

Ao ouvi-la falar nesse casamento o rei não evitou um sorriso jocoso mas nada disse. Dona Teresa prosseguiu aludindo reconhecer a autoridade régia de Afonso VII, bem como a sua vontade de, tal como o avô, ser coroado imperador de Hispânia.

Porém, ao fazê-lo, devia permitir que ela ascendesse a rainha da Galiza.

No final deste longo monólogo, o novo rei perguntou-lhe:

 - Quantas horas terei de esperar por meu primo Afonso Henriques?

Dona Teresa empalideceu um pouco mais. E Gomes Nunes também se recusou a vir? E o pai da minha amiga Teresa Celanova, sabeis dele? – questionou o rei.

Paio Soares deu um audaz passo em frente e atreveu-se a dizer:

- Meu rei, sou Mordomo-Mor de Dona Teresa e casei-me com Chamoa Gomes, filha de Gomes Nunes. A minha esposa já está grávida e sua irmã Maria Gomes também vai casar-se também vai casar-se em breve.

Com tantos afazeres gomes Nunes viu-se obrigado a permanecer em Tui, enviando-me como seu representante, pois sou seu genro.

O rei mirou-o demoradamente e depois abanou a cabeça.

É ele que me tem de prestar vassalagem, não vós. Pelo menos enquanto for vivo.

Paio Soares engoliu em seco, perante a ameaça velada de Afonso VII, e nesse momento Dona Teresa sacudiu-se com um súbito e inesperado voto, levando a mão à boca.

Fernão Peres olhou-a, alarmado, mas o rei com um vislumbre de malícia na voz, perguntou:


- Estais de esperanças, minha tia? Na vossa idade é uma ousadia!

sexta-feira, dezembro 25, 2015






Hoje é o Dia da Festa da Família

Desfrutem






quinta-feira, dezembro 24, 2015

A Cólera 

e a Esperança















Se eu fosse remetido para a condição de “sem abrigo” não morreria de fome ou de frio. Morreria de desgosto por não ter uma casa, um espaço meu, pequeno ou grande, simples ou luxuoso, mas um espaço meu em que me sentisse rei.

Em 1977, eu não era um “sem abrigo”, tinha regressado ao meu trabalho de funcionário do Estado e reposto a minha dignidade nesse aspecto que, bem vistas as coisas, é de todos o mais importante, depois da segurança pessoal das nossas vidas contra a possibilidade de comportamentos arbitrários das autoridades que senti antes de regressar ao meu país, como refugiado das colónias.

Vivia, então, numa situação de favor em casa de uns parentes, em quarto interior que, de tão pequeno, o aparelho de TV, ao tempo a preto e branco, tinha de ficar ao fundo, aos pés da cama.

Não tinha recursos financeiros e o meu ordenado dava apenas para uma pequena renda de uma casa que, na altura, não existiam.

A revolução dos Cravos do 25 de Abril, pouco depois seguida da avalanche de vagas de retornados, foram uma surpresa, o país não estava à espera nem preparado, exaurido por uma guerra que não tinha fim.

Não havia casas. Simplesmente, não havia casas para abrigar centenas de milhar de famílias chegadas em cima umas das outras.

Eu, finalmente, por intermédio de um conhecido, arranjei uma que me foi disponibilizada por ele, que entretanto, ia para Lisboa.

O preço estava nos limites do meu ordenado, ainda me lembro, cinco mil escudos mensais.

Desculpem maçar-vos com estas recordações mas foi neste ponto que surgiu a raiva, num dia do ano de 1977, quando me disseram que a casa só me seria entregue se eu passasse cinquenta mil escudos, por baixo da mesa, a não sei quem, provavelmente, o dono da própria casa.

Nessa noite, eu não dormi por causa da raiva que sentia e a minha cabeça não parava a tentar forjar uma solução e a minha imaginação, cavalgando o sentimento da raiva, dispersava-se por todo lado até que parou nas Cooperativas de Habitação Económica de que tinha ouvido falar mas das quais não sabia muito.

- E se eu, em vez de uma casa arranjasse dezenas, centenas delas, quem sabe?...

Os governos de então faziam o que podiam para ajudar as pessoas, trabalhava na área social e sabia disso.

As Cooperativas de Habitação Económica, isso sabia eu, podiam obter ajudas financeiras para a construção de casas, num processo em estreita colaboração com as Câmaras Municipais e a dinâmica de grupos de pessoas num processo que era moroso e complexo mas... possível.

Tanto bastou para que, no outro dia, impulsionado pela raiva, saísse de manhã, direito à Câmara Municipal de Santarém, pedir uma audiência ao Presidente.

A partir daqui, a raiva, que nunca me abandonou deu um espaço à esperança e à determinação: nada ficaria por fazer, prometi a mim próprio, levaria tudo à frente... era uma espécie de esperança raivosa, uma vingança contra o egoísmo dos outros, que me fez ranger os dentes e pôr em cada gesto e palavras minhas, toda a convicção, toda a minha força interior para que ninguém tivesse dúvidas do objectivo que queria alcançar.

A história do percurso da minha Cooperativa de Habitação Económica “Lar Sacalabitano, levou vários anos e prestou-se a um folhetim que terminou bem no dia em que eu próprio entreguei 96 chaves de outras tantas casas a outras tantas famílias, que não a mim, porque ao fim desses anos já tinha arrendado uma casa para mim.

Foram as dezenas... as centenas viriam em anos seguintes, numa 2ª e 3ª fases, chegando às centenas, mais de 400 apartamentos, numa zona nobre da cidade de Santarém, Av. Bernardo Santareno, do lado direito, de quem desce, antes de chegar ao edifício do novo Hospital.

Foi o maior programa de Habitação Social do Distrito de Santarém e talvez de todas as cidades do interior do país e que teve contra si, primeiro o cepticismo, depois, a inveja, a intriga, as armadilhas, um pouquinho de tudo mas que começou e acabou sem interrupções, sem escândalos, nem falências, porque, como terá dito um técnico do Fundo de Fomento de Habitação que acompanhou todo o processo, teve à sua frente o Dr. Paula de Matos.

Reconheço o meu orgulho e a minha vaidade quando passo de carro na rua, ao longo daquele bairro, espaçoso, com zonas para as crianças e espaço para lojas que lhes dão vida.

O que esse técnico e todos os técnicos nunca souberam, é que foi tudo fruto de uma noite de raiva...

Gato Fedorento


Celebremos, então, a Noite da Família, com uma voz que mergulha na infância dos mais velhos: Bing Crosby.


Tieta tem que papar missas....
TIETA DO AGRESTE
(Jorge Amado)

EPISÓDIO Nº 39



















ONDE PERPÈTUA, CUNHADA ATENTA, CUIDA DA ALMA DO COMENDADOR ENQUANTO TIETA E LEONORA, EM ELEGANTES MODELOS TRANSPARENTES, EMPOLGAM O BURGO E ASCÂNIO TRINDADE EXPLICA O PROBLEMA DA LUZ ELÉTRICA


Pela manhã, durante o café gordo – inhame, aipim, fruta-pão, banana cozida, cuscuz de puba mandado por dona Milú; como manter a linha e não engordar? 

- Perpétua comunica os horários da missa pela alma do Comendador e da entronização, a missa no sábado às oito horas, a entronização no Domingo, às onze.

Antonieta se alarma; se não contiver a irmã mais velha passará a temporada de férias na igreja, adeus projectos de praias, de passeios.


- Missa? Já mandamos rezar em São Paulo, na igreja da Sé. Do Sétimo Dia, do  Mês. Várias.

- Isso não tem importância, quanto mais melhor para a alma dele. Como é que a gente ia ficar se não mandasse celebrar nem uma missa? Eu, Elisa, o Velho? O que o povo havia de dizer? Um comendador do Papa, um nobre da igreja, ainda hoje padre Mariano repetiu: temos de cuidar da alma dele. 

Fez uma carrada de elogios a você. Por causa do hostiário.

- Você já esteve com o padre, hoje? A que horas?

- Não perco a missa das seis. Nem eu nem Ricardo, quando está aqui. É ele quem ajuda.

Ricardo aproveita e pergunta se pode tirar a batina, botar o calção, ir ao rio, experimentar o molinete. Antonieta adianta-se:

- Pode, sim, meu filho. Vá brincar. E só volte na hora do almoço.

- Obrigado, tia – Sai rápido antes que a mãe proteste.

- Uma graça, esse teu filho estudante de padre, ainda não me acostumei. De dia de batina, de noite de camisolão. Tamanho homem, Perpétua! Vou comprar um par de pijamas para ele.

Vai começar a usar quando for para o seminário. Fiz uma promessa à Senhora de Sant’Ana: se, um dia, Deus me desse um filho, ele seria padre, Ricardo foi o primeiro, pusemos o nome do avô, do pai do Major. Gosta de estudar, tem temor a Deus, estou contente com ele.

Tieta volta ao assunto da missa:

- Que droga, eu tinha pensado passar o fim-de-semana em Mangue Seco, mostrar a praia a Leonora, ver se escolho um terreno para comprar. Ia combinar hoje com o Comandante, ele nos convidou quando chegámos.

Eu também vou tia. – De calção, segurando os pés de pato e a máscara de mergulhador, Peto espera o irmão.

Este sábado não vai dar jeito. Você não pode faltar na missa. Nem na entronização, foi você quem me deu o Sagrado Coração. Já pensou? São coisas santas mais importantes do que praia e banho de mar – força Perpétua.

Antonieta controla-se, engole o mau humor. Também que ideia a sua, vir carregada de troféus religiosos, ela que nunca fora de missa e sacristia!

Culpa de Carmosina: Perpétua tem uma Santa Ceia na sala de jantar, se você trouxer um Coração de Jesus para a sala de visitas, a beata vai ficar maluca de contente.

Não esqueça uma lembrança para a Matriz, padre Mariano só faltou lhe canonizar no sermão em que fez o seu epitáfio. Foi atrás dos conselhos de Carmô, o resultado é esse: um porre de igreja. Chegou sonhando com a praia de Mangue Seco, merda! Engole também o palavrão.

Humor Angolano
















Um ladrão desavergonhado foi roubar um cabrito às 4 H da madrugada. 

Voltou para casa, deixou o cabrito amarrado no quintal e foi dormir. 

Os donos, quando se aperceberam do roubo, seguiram as pegadas do ladrão até ao local e bateram à porta: "Truz, truz. Dá licença?"?


O ladrão responde: - Quem é?... mas então, quem vem incomodar a esta hora?


- Viemos buscar os nosso cabrito...


- Os cabrito não está aí fora??


- Está.


- Então leva só. Está me incomodar porquê??.... !!!!!!


Quando fui roubar os cabrito no vossa casa, eu te acordei ?!!!!!.............







  

Assim Nasceu Portugal
(Domingos Amaral)

Episódio Nº 140





















Naquele instante, Afonso Henriques pareceu-me um gigante, um ser do outro mundo, um rei das ancestrais histórias da cavalaria visigótica, um herói magnífico bafejado pela sorte de Deus.

Em silêncio, com o coração emocionado, escutei a sua voz e ela era forte, profunda e serena.

Em nome de Deus e do apóstolo Santiago, eu, Afonso Henriques, filho do conde Henrique e da condessa Dona Teresa e neto de D. Afonso, imperador da Hispânia, armo-me cavaleiro pela graça de Jesus Cristo e de Nossa Senhora, neste santo dia de Pentecostes.

O príncipe mantivera a espada ao alto, em frente da sua cara, e depois tocou no seu ombro esquerdo e no direito. De seguida ajoelhou em frente à imagem de Jesus Cristo e rezou de novo, sempre com a espada levantada.

Quando terminou, colocou-a na bainha, levantou-se e virou-se para trás.

O primeiro a aproximar-se dele foi Paio Mendes, arcebispo de Braga que o abraçou fortemente, os olhos a brilharem de crença no futuro.

Depois, meu tio Ermígio Moniz, calmo e silencioso, abraçou também o meu melhor amigo que lhe agradeceu o quanto aprendera com ele.

Seguiu-se meu pai, comovido, que ao envolvê-lo murmurou:

 - Que honra, meu filho.

Meu pai tinha os olhos marejados de lágrimas e a sua voz tremia ligeiramente quando acrescentou:

- Dórdia gostaria muito de vos ver neste dia.

Na cara do meu amigo príncipe nasceu um sorriso infantil e surpreendido, também ele sentindo saudades daquela mulher que todos nós sempre amáramos.

Nesse momento ajoelhei à frente dele, mas Afonso Henriques deu-me a mão e obrigou-me a levantar.

- Nenhum amigo se ajoelha à minha frente, Lourenço Viegas.

Lembro-me de lhe ter dito:

 - Obrigado meu príncipe.

Ele corrigiu-me de imediato:

 - Afonso Henriques é o meu nome, e para os meus irmãos sê-lo-à sempre!

Embora soubesse que tudo tinha mudado nas nossas vidas concordei com um sorriso e depois dei um passo atrás.

Então Gonçalo ficou frente ao príncipe. Atrapalhado, perguntou:

- E eu tenho de ajoelhar?

Nós rimo-nos e Afonso Henriques abriu-lhe os braços.

Sois como meu irmão.

Gonçalo abraçou-o, mas continuava envergonhado, via-se que não estava à vontade com estas manifestações, por isso deu dois passos para trás, olhou para mim e perguntou:

- E agora, vamos jantar?

A sorrir começamos a dirigir à saída, mas antes o príncipe entregou a meu pai a espada do conde Henrique e disse-lhe:

 - Um dia podereis devolver-ma.

Saímos da catedral e juntámo-nos à pequena comitiva que tinha vindo connosco. Vários cavaleiros-vilões olharam para Afonso Henriques, intrigados por o verem de armadura, e aos poucos a notícia foi correndo e todos o vieram saudar.

Depois para evitarmos cruzarmo-nos com Afonso VII ou com Dona Teresa partimos pela estrada de Salamanca. Quando Zamora ficara já para trás, Afonso Henriques acercou-se de mim e de Gonçalo. Sem o capacete, a armadura e o escudo parecia o nosso amigo de sempre

Decidi viver em Guimarães – informou.

Olhou para Gonçalo e perguntou:

- Podeis mudar-vos para lá?

 - Claro, desde que possa levar umas soldadeiras...

Depois, olhou para mim.

- A Maria quer viver em Lamego ou em Tui?

Suspirei e sugeri:

 - Iremos para Guimarães. Ela quer que eu fique junto de vós.

O príncipe aprovou e acrescentou:

 - Assim vou sabendo novidades de Chamoa.

Ao ouvi-lo, Gonçalo resmungou:

- Essa também, tanta coisa... e casou sem pestanejar!

Cinco semanas depois da Páscoa, Paio Soares e Chamoa Gomes tinham casado na Maia, na presença de Dona Teresa, mas não do príncipe, que regressara a Guimarães depois da frustrada a tentativa para raptar a sua amada.

Ligeiramente irritado com o comentário crítico do amigo, Afonso Henriques declarou:

 - Não digas mal dela à minha frente.

Permanecia enamorado e disse-nos:

 - Gostava tanto que ela me tivesse visto hoje.


quarta-feira, dezembro 23, 2015

A Caixa de Pandora
A Esperança

e a Raiva






















Se a esperança for o motor de arranque de um carro a gasóleo, hoje em dia muito idênticos aos de gasolina, a raiva funciona como um propulsor de um carro de corrida... saem disparados.

Qual de vós não se sentiu já impulsionado por cada um destes dois motores de arranque?

Vivemos com esperança, ela faz-nos acreditar, motiva-nos para o dia de amanhã, leva-nos a pensar que tu vai correr bem... “pelo menos tenho essa esperança”... dizem umas pessoas, enquanto que outras, ao contrário, desabafam: ... já não acredito, perdi toda a esperança...”

Mas não se perde, porque o sol nasce todos os dias, a vida renasce e renova-se com ele e a esperança, a pouco e pouco, regressa.

Assim, a esperança acompanha-nos por toda a vida, quase que diria que faz parte dela mas a raiva, não.

Em um dia da minha vida, estávamos em 1977, passei da esperança à raiva e nessa noite, ela, a raiva, não me deixou dormir.

De manhã saltei da cama como que impulsionado por uma mola porque a raiva é assim, uma explosão de energia, quer acção, não aceita a expectativa, não nos deixa ficar na estação à espera da camioneta, metemo-nos a caminho se houver caminho a percorrer.

Em 1977, mais de meio milhão de portugueses tinham regressado de Angola e Moçambique, a maior parte sem nada ou quase nada como eu, por exemplo, meti-me no avião com a roupa que tinha no corpo e deixei para trás a minha casa, com a mesa do pequeno almoço ainda posta, o meu local de trabalho e o automóvel que entreguei a um amigo no estacionamento do aeroporto.

Não, isto não tem nada a ver com a minha raiva, apenas com o contexto: em determinados momentos da vida, certas pessoas, não devem estar em certos locais, e foi isso que aconteceu com os portugueses em Angola, Moçambique e comigo.

As independências foram um desses momentos. Caixas de Pandora que se abriram e libertaram, em primeiro lugar, as coisas boas, os festejos, os abraços, a esperança...

Mas a Caixa oferecida a Pandora pelos deuses, tinha segundas intenções ou não viesse ela dos deuses, e guardou para o fim, o que tinha reservado lá no fundo para libertar: as coisas más, como as guerras, a morte, a destruição, a dor.

Os portugueses foram apanhados neste turbilhão porque estavam lá. Foi injusto, mas é assim: são as vicissitudes da história dos povos.

Não apela à raiva e os que cederam a ela arrependeram-se, mas antes à compreensão do homem e dos seus impulsos como grupos humanos, neste caso, impedidos de trilhar o seu próprio caminho durante muitos anos.

As forças que então se libertaram são difíceis de controlar e aqueles momentos, para angolanos e moçambicanos, foram sentidos como de oportunidades, que o eram, de facto, mas que dificilmente, seriam aproveitados da forma certa.

O meu momento de raiva havia de chegar posteriormente, nas terras do meu país, na cidade conquistada por Afonso Henriques, Santarém, também ela lotada de retornados vivendo, acumulados, em casa de familiares em situações de grande tensão, porque, naturalmente, não havia habitações que chegassem para tantas famílias desembarcadas assim de rompante.

Mas amanhã, falo-vos do meu momento de raiva...

Elvis Pesley - My Way

Não, uma voz destas, não merecia este caminho...


Gato Fedorento - Este Jesus Cristo



Sua benção, minha tia...
Tieta do Agreste
(Jorge Amado)

EPISÓDIO Nº38



















DO CAMISOLÃO, DA CAMISOLINHA, DO JARRO COM ÁGUA E DA ORAÇÃO


Pagara a promessa ainda no seminário, na semana dos exames, após receber carta de Perpétua com as novidades: a tia gozando saúde e os projectos de viagem. Morte houvera mas do Comendador, antes assim. Durante sete noites, Ricardo macerara os joelhos sobre grãos de milho, obtidos na despensa, e adquirira o hábito de rezar uma salve-rainha pela saúde da tia anciã, de tão velhinha avó.


A vida é um alforge de surpresas, afirma Dom José nos sermões dominicais, sobra-lhe razão. Ricardo ficou abobado quando viu tia Antonieta na porta da marinete, de anciã e avó não tinha nada. Nem parecia viúva, não pusera luto. 

Cabeleira loura, saindo do turbante, rolando nos ombros, o corpo apertado na blusa vermelha, na calça jean, a despertar exclamações. Não apenas o brado, o viva de Bafo de Bode, indecência! Ricardo ouvira igualmente o comentário de Osnar, em voz baixa, destinado a Aminthas:

- Que pedaço de mulher ela virou! Que ubre! Cabrona! – 

Elevava a voz:

- Uma fruta madura, Capitão Astério, parabéns pela cunhada. 

- Osnar distribuía patentes militares pelos amigos. Seu Manuel era Almirante. Dona Carmosina, Coronela da Artilharia Pesada.

Engraçado: não ficara nem desiludido nem frustrado com a brusca mudança da imagem concebida - surpreende-se Ricardo a pensar enquanto retira a batina, veste o camisolão, ajoelha-se para recitar as orações e bendizer o Senhor que fizera a tia adivinhar o presente desejado.

Escondera a vara de pesca para impedir que fosse Peto o primeiro a usá-la, o irmão não tem o menor respeito pela propriedade alheia, um anarquista. Reza a Salve-Rainha pela saúde da tia, merecedora.

Estende-se na rede. Da alcova, a luz acesa ilumina o corredor em frente ao gabinete, a tia Antonieta fora ao banheiro. Em lugar de uma velhinha, de uma avó, uma verdadeira tia, alegre, flamante – e ele a imaginara mais idosa do que a mãe. 

Um absurdo. Ricardo a ouvira dizer a idade a Barbozinha: quarenta e quatro, meu poeta. Aqui não posso esconder, todos sabem. Fazem vinte e seis anos que fui embora, acabara de completar dezoito anos. Em São Paulo confesso trinta e cinco, pareço mais?

A mãe, ele sabe, diminui a idade. Devota e exigente, não admite mentiras e, no entanto, na hora de revelar a idade… A verdadeira está na certidão de casamento, trancada ali na escrivaninha junto com as escrituras das casas, a patente do pai, a caderneta militar, os louvores nas ordens de serviço.

 A tia não precisa de negar porque é bonita. Bonita não é bem o termo, Ricardo procura a palavra certa: bonitona. Nela tudo é grande e vistoso. Com que santa se parece? Com nenhuma das conhecidas, nem Santa Rita de Cássia, nem Santa Rosa de Lima. Tia Elisa quando melancólica, recorda Santa Maria Madalena. A mãe sempre de luto é Santa Helena com traje negro de viúva e véu de cinzas.

Mas a força a desprender-se da tia, qual delas a possui? 

Apenas chegou e imediatamente passou a comandar. Por ser rica e generosa, sim, certamente mas não só por isso. Há algo mais, indefinível, a impressionar Ricardo, a impor-se, não sabe explicar o que seja. Ele a enxerga cercada por um raio luminoso, como certos santos. Santa? Pela bondade, pela grandeza de alma, mas ela exibe outros atributos, carnais.

Humanos, não carnais, palavra maldita, os pecados carnais, pagos com as chamas do inferno durante a eternidade.

Passos no corredor, é a tia de volta do banheiro. A precedê-la chega o perfume, o mesmo dos envelopes, desprendendo-se a cada passo, anunciando-lhe a presença próxima. Ainda bem que o padre confessor lhe disse não haver pecado em perfume de velha tia. Velha? Madura.

Fruta madura fora a expressão usada por Osnar para classificá-la. Na hora confusa do desembarque, Cardo achara todo o palavreado de boas-vindas uma falta de respeito.

Mas agora, ao ouvir os passos da tia, ao sentir-lhe o perfume, a comparação com uma fruta madura, rica de sumo, na plenitude da força, parece-lhe correcta, não vê desrespeito, despropósito, pecado. Desrespeito compará-la com as cabras, isso sim. Osnar não tem salvação.

Antonieta conduz o jarro esmaltado cheio de água. Nas sombras do corredor pisa a ponta do robe longo, tropeça, vacila, vai cair. Ricardo corre a tempo de sustê-la e tomar do jarro, levando-o para a alcova.

- Obrigado meu bem. – Com um sorriso gaiato, mede o sobrinho, enorme no camisolão de dormir: - Você ainda dorme de camisolão?

- No começo do ano, vou passar para a divisão dos maiores e dormir de pijama… - explica orgulhoso. – Mas mãe só vai comprar quando eu for para o seminário.

Por baixo do penhoar semi – aberto, a curta camisola cor-de-rosa mais revela do que esconde as graças da tia, Ricardo desvia os olhos, pousa o jarro na argola do lavatório.

Traga o lavatório para aqui e bote um pouco de água na bacia – pede Antonieta, sentada ante o espelho da penteadeira, cremes diversos em sua frente, vidros com líquidos coloridos, algodão, um exagero de frascos e potes.

Tia Elisa não tem nem a metade, a mãe não se pinta desde a morte do pai.

Derrama a água, toma o rumo da porta. A tia observa-lhe os movimentos:

_ Vai embora sem me pedir a bênção?

- A bênção, tia. Deus lhe dê boa noite. – Dobra o joelho: - Obrigado pela vara de pesca.

- Assim. Não. Aqui perto e com um beijo.

Cardo beija-lhe a mão, ela toma-lhe o rosto e o beija em cada face. O perfume sobe dos seios. Mesmo sem querer, Ricardo os vislumbra, ou os adivinha, sobrando da camisola. Ubre, dissera Osnar.

Deita-se na rede, a luz permanece acesa no quarto da tia a desfazer a maquiagem, entra uma fresta da porta. Ricardo, de sono fácil – apenas cai na cama e os olhos se fecham – hoje, não consegue adormecer.

Estranha a rede, quem sabe? Confusão igual à do desembarque quando viu a tia na porta da marinete, o oposto da imagem concebida na hora do anúncio da morte. O melhor é rezar. Desce da rede, ajoelha-se, cruza as mãos, Padre Nosso que estais no céu. O pensamento em Deus, louvado seja.


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