terça-feira, dezembro 04, 2007

A minha última Operação na Guerra Colonial




A Minha Última Operação na Guerra Colonial




Era minha intenção dar este tema como terminado excluindo dele a experiência que foi a minha última operação no Norte de Angola antes de seguir para o Leste passar em paz o resto da minha comissão.

Quando, por exaustão, as tropas eram retiradas da zona de guerra, mais ou menos ao fim de um ano, e transferidas para outras regiões, era comum fazerem uma passagem por Luanda e aí serem aproveitadas pelos Altos Comandos para uma última Operação, espécie de cereja em cima do bolo, integrando, então, o que se chamava, a Tropa de Intervenção.

Era uma oportunidade das Chefias, sedeadas no ar condicionado de Luanda, de fazerem a sua própria guerra, concebendo e realizando Operações que eram desencadeadas em locais escolhidos por serem considerados importantes do ponto de vista estratégico e envolviam grande número de militares.

Nessas Operações, os oficiais superiores, dentro de pequenas avionetas ao lado dos pilotos, sobrevoavam a zona em que as tropas operavam tentando fazer o acompanhamento o que não era fácil porque cá em baixo era um ininterrupto tapete verde.

Para fazerem uma ideia da movimentação dos grupos de combate no terreno e da sua localização davam ordens pela rádio para que fossem lançadas granadas de fumo o que não era muito do agrado das tropas que tinham de interromper a marcha com o risco de darem também sinais aos guerrilheiros.

Percebíamos, no entanto, que esta era a maneira desses Oficiais participarem mais directamente na guerra sem o esforço e riscos inerentes e ao mesmo tempo poderem fiscalizar o cumprimento dos itinerários fixados nas Cartas de Operações, ou pelo menos tentarem.

Era este o contexto em que fiz a minha última Operação na Guerra Colonial e que só por muita sorte não foi, igualmente, a última coisa que fiz na minha vida.

Mas se hoje a posso relatar porque lhe sobrevivi a minha vontade era, no entanto, esquecê-la, ou melhor ainda, que ela nunca tivesse acontecido.

Deixem-me, por isso, fazer previamente uma reflexão:

Afirmei no início do relato destas lembranças que não houve uma guerra mas tantas quantas aqueles que nela participaram.

O cunho e a marca da guerra estão não só naquilo que nos acontece enquanto vivemos essa experiência traumática mas principalmente pela forma como cada um sente e reage a tudo isso.

Todos fomos criados e educados num quadro de valores que respeita a vida humana mas quando nos põem uma arma nas mãos, vestem um camuflado e nos mandam para a guerra, imediatamente interiorizamos que vamos morrer e matar e por isso, quando passadas poucas semanas de termos chegado, um Unimog foi emboscado pelo inimigo e quase todos os seus ocupantes, meus camaradas de Batalhão, foram mortos, incluindo o meu amigo Setúbal, o que eu senti, fundamentalmente, é que a sentença da guerra se estava a cumprir entre aqueles que eram os seus protagonistas.

No fundo, na morte daqueles soldados havia qualquer coisa de terrivelmente óbvio.

Os soldados foram concebidos para morrer, umas vezes uns, outras vezes outros.

Se alguma coisa faz sentido numa guerra é a morte dos soldados que nela participam e por isso a morte de um soldado não envergonha o soldado que o mata, envergonha mais se o não matar.

Assim, o meu ódio, não foi para o soldado nosso inimigo mas para a Guerra, para os seus promotores, para aqueles que nos puseram uma arma na mão, vestiram-nos o camuflado e tiveram a coragem de nos dizer que íamos defender os superiores interesses do solo pátrio sem esclarecerem que neles se camuflavam os interesses dos senhores do café, do algodão, do sisal, dos diamantes, do açúcar, a maior parte residentes em Portugal com breves visitas a África, o tempo necessário para umas bem organizadas caçadas.

Mas regressemos à minha última Operação:

Desenrolou-se tendo como base a fazenda Maria João, no Coração dos Dembos, bem no centro de Angola e nela participaram várias Companhias que saindo em simultâneo do mesmo ponto percorriam itinerários diferentes com objectivos de “limpeza”, perfeitamente delirantes tendo em conta o impenetrável da floresta.

Fomos largados de viaturas naquilo que eles disseram ser uma picada e que há muito já o tinha deixado de ser e deveríamos seguir para Norte até encontrar uma outra picada que, de certeza, estaria nas mesmas condições e onde as viaturas nos reconduziriam de novo à Fazenda Maria João.

Com o meu pelotão ia também um outro que era comandado por um Alferes médico que não tendo ainda feito o estágio cumpria a comissão como oficial de infantaria e pertencia à guarnição militar que estava instalada na própria fazenda.

O seu estado de espírito não podia estar mais deprimido e era completa a saturação e desinteresse por tudo o que o rodeava.

Antes de partirmos acercou-se de mim e disse-me: “não quero saber disto para nada, você comanda e eu vou ser apenas mais um soldado”… não mais voltei a dar pela sua presença.

A operação decorreu num vale de encostas bem acentuadas e que se prolongava na sentido sul/norte.

Até uma certa altura, não muita, a partir da zona mais profunda, a encosta estava desmatada e era evidente que aquele vale, na sua parte mais fértil, estava a ser aproveitado para a agricultura de subsistência pelas populações que se tinham subtraído ao controle das autoridades portugueses e viviam fugidas no mato juntamente com os guerrilheiros.

Começamos a deslocação para norte, pela encosta do lado esquerdo do vale, na orla do terreno que estava mais limpo e encobertos pela vegetação.

Era-nos, assim, relativamente fácil, observar o que se passava à nossa direita, mais abaixo, sem que o contrário fosse igualmente possível.

Caminhávamos uns atrás dos outros numa fila que se prolongava por dezenas de metros e durante algum tempo nada aconteceu.

De repente, ouvi um tiro, vários tiros, um alvoroço, alguns soldados descem a correr a encosta, atravessam o vale e perseguem pessoas que fogem subindo a encosta do outro lado.

Regressam passado pouco tempo os que tinham saído em perseguição, a calma restabelece-se progressivamente, o drama estava consumado.

Uma jovem tinha sido morta com um tiro no coração disparado pelas costas e um outro soldado cortou-lhe um dedo para trazer para casa como troféu de guerra e eu… tive uma enorme vontade de fugir dali, evaporar-me, desaparecer…eu era o comandante (?) daquela tropa e nem sequer podia recriminar o soldado que matou a jovem e que tinha por alcunha “o boi”, porque ele apenas cumprira as instruções do Quartel General de matar tudo o que mexesse, a tal limpeza a que já me referi.

Não conheci bem este soldado no sentido de que não tive com ele convivência, era da minha Companhia mas do Pelotão do Ataíde e por isso desconhecia se havia alguma relação entre a alcunha de “o boi”e o seu aspecto rude, possante, algo primitivo, provavelmente quase analfabeto.

Dizer-lhe que a utilização de uma arma, mesmo numa situação de guerra, é sempre da responsabilidade de quem a utiliza, faria algum sentido para ele?

Manifestar-lhe o meu desagrado não seria estabelecer a confusão na sua cabeça?

Perguntar-lhe se ele gostaria que fossem à sua aldeia e matassem a sua irmã ou a sua namorada quando ela estava a trabalhar no campo, era justo?

Do outro soldado, do que cortou o dedo do cadáver da jovem para recordação, fiz questão de nunca querer saber quem tinha sido…nada conseguiria diminuir a vergonha que senti.


Foram, para mim, momentos de pânico e desorientação, não queria estar ali nem mais um minuto e por isso dei instruções para que continuássemos o nosso trajecto o mais rapidamente possível.

Cansado daquelas marchas, daquele ar saturado de humidade que não nos deixava respirar, do peso da espingarda, cartucheiras, bornal, capa de borracha, cantil, que depressa esvaziava, quando à noite me deixava cair o que me esperava era sempre um sono profundo.

Sempre, não, naquela noite quase não preguei olho, os gritos de dor pela morte da jovem ecoavam por todo aquele vale.

Eram gritos lancinantes, acusatórios e o silêncio à volta deles parecia total, como se todos os bichos da floresta tivessem decidido calar-se nessa noite para que eu melhor os pudesse ouvir.

No outro dia, ainda o sol não tinha nascido e já nos tínhamos posto em marcha que só não eram forçadas porque as condições do terreno e da vegetação não o permitiam.

Era ténue a minha esperança de conseguir escapar à emboscada que de certo me esperaria em qualquer ponto do percurso.

Os guerrilheiros não podiam permitir que a tropa fosse ao seu terreno matar uma jovem do seu povo da mesma forma que se caça uma gazela e saísse do emaranhado de toda aquela vegetação com total impunidade, era para eles uma questão de honra.

Por isso, começamos a andar ainda de noite e continuávamos a apressar o andamento na esperança de que eles, talvez, não tivessem tempo de a montar.

Já era bem de dia quando o vale se bifurcou.

Eu devia continuar em frente, sempre para norte, sempre por aquele vale, o Quartel-General sabia bem que era ao longo dele que se encontravam as populações e por isso o itinerário era aquele e não outro.

Mas chegados àquela bifurcação decidi seguir pelo vale da esquerda, de vegetação mais densa de tal forma que era praticamente impossível montar ali uma emboscada e em distância, parecia-me encurtar caminho.

Disse aos homens para encherem os cantis num fio de água que por ali passava e foi nesse momento, com eles dobrados sobre si próprios, involuntariamente meio escondidos para recolherem a água e eu de pé, a fazer não sei bem o quê, que o tiroteio começou.

Eles pensaram exactamente aquilo que eu iria fazer, aquele era o sítio certo para a emboscada até porque se virasse à esquerda, e eles não tinham a certeza disso, já não haveria condições para que ela pudesse ser feita.

Entretanto, os tiros continuavam e eu continuava de pé como se os desafiasse a acertarem-me.

Finalmente o Maia, escondido atrás de um tronco de uma árvore caída no terreno, gritou-me:

-Saia daí meu Alferes que eles matam-no!

Dirigi-me normalmente para junto dele que me disse:

-Meu Alferes, as balas aos seus pés até levantavam pó!

Entretanto, alguém gritou que eles estavam em cima das árvores a fazerem fogo e logo tudo quanto tinha folhas e ramos foi varrido pelas rajadas das G3.

Nitidamente, o efeito da surpresa tinha passado e o nosso maior poder de fogo estava a impor-se.

Chamei o homem da bazuca e mandei-o disparar duas granadas na esperança de que alguma delas conseguisse passar por entre as árvores e explodisse contra a outra encosta do vale.

A primeira rebentou logo à nossa frente, deu cabo de uma árvore que estava muito próxima de nós.

Disse-lhe, então, que inclinasse o cano da bazuca o mais possível para tentar fazer passar a granada por cima das árvores.

O efeito ultrapassou tudo o que poderia esperar: o estrondo do rebentamento multiplicado pelo eco, possível pelo facto das encostas do vale serem suficientemente íngremes e próximas e funcionarem como paredes em frente uma da outra, parecia coisa do apocalipse.

Quando, finalmente, se deixou de ouvir, aquela guerra tinha acabado e a calma e o silêncio estabeleceram-se como se nada ali tivesse acontecido.

Levantámo-nos lentamente olhando e perguntando uns pelos outros e inacreditavelmente estavam todos bem, apenas um sargento enfermeiro, de mais idade e pesado, tinha desmaiado de comoção mas estava a recobrar.

Tiveram a oportunidade de uma justa vingança e não a aproveitaram, dispararam de surpresa de cima das árvores a distâncias que não eram grandes e poderiam ter-nos causado inúmeras baixas…éramos mais de sessenta alvos.

Em vez disso, não acertaram em ninguém, a jovem não foi vingada mas eles tentaram, cumpriram a sua obrigação, provavelmente com feridos ou mortos pois foram vistos alguns a atirarem-se das árvores, não sabemos se atingidos ou não.

A continuação da marcha foi penosa, momentos houve em que a vegetação de tão densa que se foi tornando aprisionou-nos de pernas e braços obrigando a recuos e avanços que eram uma autêntica luta contra o emaranhado dos ramos.

Finalmente, exaustos de cansaço, fome e sede porque no meio de toda aquela confusão e na pressa de abandonar aquele local nem chegámos a encher os cantis de água, lá chegámos ao destino, já de noite, mas vivos e sem feridos.

Aquilo que nos separou da morte, nesse dia, foi um simples capricho do acaso.

Quarenta e quatro anos depois convenço-me cada vez mais que o acaso comanda a vida, sempre a comandou, todo o processo evolutivo foi determinado pelo acaso e as nossas humildes vidas, claro, também não lhe podiam fugir.

Pensei muitas vezes, ao longo de todos estes anos, naquela jovem com um sentimento de culpa pela sua morte.

Propositadamente, não quis vê-la para não lhe recordar o rosto pela vida fora mas é fácil imaginá-lo e ele tem-me acompanhado, sinal de que a minha consciência não está completamente descansada.

Afinal, eu era o Comandante daquela Operação e antes dela começar deveria ter dado instruções a todos os soldados de que, a menos que fôssemos atacados, ninguém dava tiros sem minha autorização.

Esta ordem ficou por dar e custou a vida àquela rapariga e a minha consciência carregará sempre esse peso.

Para ela… estas flores.





































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