sábado, maio 17, 2008

A Tabacaria de Fernando Pessoa


A Tabacaria
(Fernando Pessoa)



Não sou nada
Nunca serei nada
Não posso querer ser nada
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.


Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,


Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.


Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não podem haver tantos!

Génio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu,
E a história não marcará, quem sabe? Nem um,


O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão o fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.


Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que não inveje só por não ser eu.


Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara estava pegada à cara.


(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
talvez fosse feliz.)

Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah! Conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves! E o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.


Álvaro de Campos, 15/1/1928

sexta-feira, maio 16, 2008


HÁ VIDA DEPOIS DA MORTE?
( Richard Dawkins)



Mark Twain, considerado por William Faulkner, o primeiro escritor verdadeiramente americano, dizia:

«Não tenho medo da morte. Estive morto durante milhões e milhões de anos antes de nascer e não senti o mais pequeno incómodo por isso».

Richard Dawkins disse precisamente o mesmo mas de uma forma mais elaborada que aqui reproduzi no meu texto de 1de Maio sob o título “Falando sobre Religiões”, mas que vale a pena reescrevê-lo em parte novamente:

«A vida é uma extraordinária oportunidade e eu que vou morrer considero-me bafejado pela sorte porque a maior parte das pessoas nunca vai morrer porque nunca vai chegar a nascer.
…Como poderemos nós, então, os poucos privilegiados, que contra todas as probabilidades, ganhamos a lotaria do nascimento, atrever-mos a queixar-nos do nosso inevitável regresso a esse estado anterior do qual a vasta maioria nunca despertou?».

Há poucas semanas, para me poupar a um desagradável exame, submeti-me a uma anestesia geral e quando, deitado na marquesa, aguardava a injecção da anestesia, pensei que me ia sujeitar a uma simulação da morte.

Quando, pouco tempo depois acordei, fiquei a pensar que ter estado desligado da vida pouco mais de uma hora ou o resto da eternidade, teria sido precisamente o mesmo: o vazio total e, afinal, sem ter custado nada…

Contudo, as sondagens vão no sentido de que aproximadamente 95% das pessoas acreditam que vão sobreviver à própria morte.

Quase tenho vontade de dizer, por brincadeira, que os homens vivem durante tantos anos que se habituam a estar vivos e depois… não querem morrer.

Claro que a natureza dotou os animais e, naturalmente, o homem também, do instinto da sobrevivência, mas para quê estar vivo durante tantos anos?

O arquitecto Niemeyer vai fazer 100 anos e está ainda a trabalhar e o mesmo acontece com o nosso Manuel de Oliveira.

São exemplos relativamente aos quais me apetece dizer que deviam ficar cá para sempre mas a maioria esmagadora dos nossos velhos limitam-se a aguardar a morte sentados, por aí, nos bancos dos jardins, tristes, inúteis, abandonados como se não tivessem préstimo algum.

O meu vizinho do 5º esq. que lá vai suportando os seus noventa anos com a ajuda da bengala e tendo por companhia a solidão, as dores e os desgostos da vida desabafou comigo aqui há tempos:

«No dia em que morrer vai ser o mais feliz da minha vida…»

Mas a natureza sabe o que faz e não é por acaso que após a idade da procriação continuamos a poder viver o dobro dos anos. É que as nossas crianças não só precisam dos pais como, igualmente, precisam dos avós, mais disponíveis para os proteger e ensinar assegurando-lhes uma oportunidade para chegarem a adultos que, sem eles, provavelmente não teriam.

Mas querer estar vivo é uma coisa, continuar a viver depois de morrer é outra…

Bertrand Russel, no seu ensaio de 1925 «What I Believe» escrevia:

«Acredito que quando morrer vou apodrecer e nada do meu ego irá sobreviver. Não sou jovem e amo a vida mas desdenharia tremer de medo ante a perspectiva da aniquilação.
Apesar de tudo, a felicidade só é verdadeiramente felicidade porque tem que ter um fim do mesmo modo que o pensamento ou o amor não valem menos por não serem eternos.
Muitos foram aqueles que pisaram o cadafalso com orgulho; esse mesmo orgulho deveria, por certo, ensinar-nos a pensar, verdadeiramente, o lugar que o homem ocupa no mundo»

Para quem teme a morte, acreditar que tem uma alma imortal pode ser consolador – a menos, evidentemente, que esteja convencido que vai para o inferno ou para o purgatório.

As falsas crenças podem ser tão consoladoras como as verdadeiras, até ao momento do desengano. Se um médico mente ao doente dizendo-lhe que ele está curado o consolo é idêntico ao de outro homem a quem seja dito, com verdade, que ele está curado.

A mentira do médico só é eficaz até os sintomas se tornarem inequívocos mas um crente na vida depois da morte nunca poderá, em última análise, ser desenganado.

As pessoas religiosas que dizem acreditar na vida depois da morte se fossem realmente sinceras deveriam reagir como o abade Ampleforth quando o cardeal Basil Hume lhe disse que estava a morrer:

«Parabéns! Que bela notícia. Quem me dera ir com Vossa Eminência».

Este abade era um verdadeiro crente mas é exactamente porque esta história é tão rara e inesperada que prende a atenção e quase diverte.

Por que razão todos os cristãos e muçulmanos não dizem a mesma coisa ou algo parecido?

Quando um médico diz a uma mulher devota que não lhe restam senão alguns meses de vida por que razão não sorri ela, emocionada, como se tivesse ganho umas férias nas Seychelles?

Por que razão é que os amigos e familiares, crentes como ela, não a sobrecarregam de mensagens para os que já partiram?

«Dá saudades ao tio Alberto quando o vires…».

Por que não falam assim as pessoas religiosas na presença dos que estão à beira da morte?

Será que não acreditam em todas as coisas em que era presumível acreditarem?

Ou talvez acreditem mas têm medo do “processo” de morrer que pode ser doloroso e desagradável com a agravante de que, ao contrário de todos os outros animais, não podem ir ao veterinário pedir uma morte indolor.

E, neste caso, por que são as pessoas religiosas as mais ferozes opositores à eutanásia e ao suicídio medicamente assistido?

Não seria de esperar que as pessoas mais religiosas fossem menos inclinadas a agarrarem-se despudoradamente à vida seguindo o exemplo do abade Ampleforth?

A razão oficial é de que provocar a morte é sempre pecado mas por quê considerar isso pecado se se acredita sinceramente que, desse modo, está a acelerar uma ida para o céu?

Para quem acredita numa vida depois da morte morrer é apenas a transição de uma vida para outra vida e, sendo assim, se ela for dolorosa porquê prescindir da anestesia quando não se prescinde dela para tirar o apêndice?

Daqueles que vêm na morte não uma transição mas sim o fim é que se poderia, francamente, esperar resistência à eutanásia e ao suicídio medicamente assistido, no entanto, são esses que são a favor.

Uma enfermeira com longos anos de trabalho à frente de um lar de idosos pôde verificar que as pessoas religiosas eram as que mais medo tinham da morte.

Se este comportamento for comprovado estatisticamente poder-se-á perguntar, afinal, qual o poder da religião como reconforto na hora da morte?

No caso dos católicos será o medo do purgatório, uma espécie de Ellis Island (um dos principais pontos de entrada dos emigrante para os EUA) divino, uma antecâmara para onde vão as almas se os seus pecados não são suficientemente graves para as lançarem logo no inferno mas, por outro lado, precisam ainda de alguma reciclagem antes de poderem ser admitidas no céu.

Na Idade Média a Igreja dava indulgências a troco de dinheiro o que, na prática, significava menos dias de purgatório antes de entrar no céu.

A Igreja Católica desenvolveu muitos esquemas para arranjar dinheiro mas a venda das indulgências deverá figurar, seguramente, entre os maiores contos-do-vigário de toda a História.

Em 1903 o Papa Pio X ainda tinha uma tabela para calcular o número de dias de remissão do purgatório que cada membro da hierarquia tinha direito a conceder:

- 200 dias os cardeais;
- 100 “ “ arcebispos;
- 50 “ “ bispos;

E, desta maneira, controlando as auto-estradas de acesso a Deus, um Bispo na Idade Média poderia ficar milionário como aconteceu com o de Winchester que fundou em 1379 o New College.

Quem fosse muito rico garantia para sempre o futuro da sua alma até porque o pagamento poderia ser também em orações que podiam ser rezadas por terceiras pessoas a favor das almas dos ricos que, naturalmente, lhes pagavam para isso.

Mas o que é curioso e constitui a chave de todo este negócio é, realmente, o «purgatório» que, no caso de não existir e as almas irem todas directamente para o céu ou para o inferno, já não se justificavam as rezas porque, ou eram desnecessárias, na eventualidade das almas terem ido para o céu, ou as almas tinham ido para o inferno e já não tinham salvação dispensando as rezas por idêntica razão.

No mínimo, engenhoso…mas a vida, a nossa vida, é tão significativa, tão plena e maravilhosa que se basta a si própria e dispensa bem todas estas manigâncias.

quinta-feira, maio 15, 2008


Eu a Religião e Richard Dawkins

Durante alguns dias transcrevi aqui, no meu blog, passagens do livro A Desilusão de Deus de Richard Dawkins acompanhadas de links retirados do You Tube com intervenções do próprio autor sobre o tema da religião.

Transcrevi, e tenciono continuar a transcrever porque este tema não pode nem deve ser tabu e Richard Dawkins, que eu já conhecia de um outro seu livro, O Gene Egoísta, é o intelectual que faz a abordagem a este tema com maior brilhantismo de espírito, a mais alta formação científica e, já agora, da forma mais explícita e objectiva.

Eu sei que há uma atitude reverencial a tudo o que à religião diz respeito e, naturalmente, muito mais quando se põe em causa a própria religião.

Olhando de fora para o “edifício” da Igreja o que começa logo a impressionar e até mesmo a amedrontar é a magnificência dos edifícios de culto, imponentes, belos, ricos de obras de arte e de ouro.

Logo a seguir, as vestes espampanantes dos seus mais altos dignitários que não podiam chamar mais a atenção nos seus brancos imaculados com faixas de cor apelativa e chapéus altos e pontiagudos a conferirem ar de majestade.

E, finalmente, o ar convencido de disfarçada autoridade com que nos presenteiam com as suas verdades inquestionáveis enquanto outros, de turbante, com os olhos cheios de ódio, as gritam às multidões em delírio.

Mas não é só uma atitude reverencial, é medo, não tenhamos vergonha de o dizer, medo dos outros, dos que nos estão próximos, da sociedade e de nós próprios, dos “diabinhos” que, éramos nós crianças, nos inculcaram.

Dawkins afirma que todos nascemos religiosos mas alguns, mais tarde, tomam a decisão consciente de deixar de o ser mas esses, acrescento eu, são apenas uma pequena parte porque a maioria limita-se a “deixar cair” dentro de si a religião que um dia lá meteram e envergonhadamente, silenciam e disfarçam limitando-se a dizerem: não vou à igreja… menos frequentemente afirmam que não são crentes… e raramente se apresentam como ateus.

O mundo ocidental vive hoje ameaçado e amedrontado por religiosos fanáticos que odeiam todo o semelhante que não pertença ao seu clube de exterminadores.

Noutros tempos, os nossos avós fizeram parecido combatendo e matando outras pessoas porque, também elas, não partilhavam do nosso culto e eu pergunto, de certo ingenuamente, porque não confrontar directamente as religiões e defender um tipo de vida da qual elas não façam parte?

Pessoalmente, estou grato a Richard Dawkins e ao seu livro A Desilusão de Deus porque me deu uma solução convincente para uma pergunta que bailava sem resposta no meu espírito desde que tomei conhecimento da Teoria da Evolução de Charles Darwin e a aceitei como boa para explicar, em termos racionais, o aparecimento e o desenvolvimento dos seres vivos ao cimo da terra.

- Como “encaixar” a religião na Teoria da Evolução?

Sendo a religião um fenómeno comum, embora com as mais variadas diferenças, a todas as culturas e tendo sido, essa mesma religião, a fonte de tantas mortes e sofrimento ao longo de toda a história da humanidade, como teria servido ela os interesses da nossa espécie?

Não é verdade que à luz da Teoria da Evolução os comportamentos desfavoráveis aos interesses de uma espécie acabavam por ser eliminados através de uma selecção que, mais cedo ou mais tarde, não perdoava erros ou desvios contrários à sua sobrevivência?

Neste aspecto, as religiões funcionavam como vírus que provocavam o confronto violento e letal das comunidades entre si e, no entanto, o nosso cérebro evoluiu para albergar, em um qualquer ponto da sua incrível estrutura, o que parecia ser “um centro de religiosidade”.

A explicação aí está servida por Richard Dawkins e partilhada por muitos outros cientistas:

- A religião era, afinal, «um subproduto» de «qualquer outra coisa» que a natureza efectivamente quis mas que a partir de certo momento fugiu do seu controle.

E o «produto» era a necessidade que as crianças, filhas dos mais nossos antepassados remotos, tinham de acreditar nos conselhos dos pais, dos avós e dos chefes, ditos e repetidos com palavras solenes e quem sabe, de dedo em riste.

Essa necessidade de acreditar de que não deviam aproximar-se demasiado dos penhascos, afastar-se do grupo, banharem-se no rio infestado de crocodilos, etc., fez desenvolver no nosso cérebro um “centro de crença”, não para ser colocado ao serviço de religiões mas para permitir maiores probabilidades de sobrevivência às novas gerações de forma a que a nossa espécie tivesse mais hipóteses de sucesso.

Mas, quem tem que acreditar forçosamente nos bons conselhos como se pode furtar a acreditar nos maus?

Se ele tem que acreditar que não pode tomar banho no rio por causa dos crocodilos, naturalmente vai também acreditar que tem que matar um cabra para que as chuvas caiam… e daqui para a frente o homem tomava o futuro nas suas próprias mãos.

O resto… teve também a ver com um espírito que interrogava e um conhecimento científico que não existindo deixava todas as perguntas sem resposta à mercê da imaginação que gere as crenças.

A minha experiência de vida ajudou-me a compreender melhor esta necessidade de acreditar quando recordo os meus 11, 12 anos como aluno de um colégio de Jesuítas em Lisboa, em regime de semi-internato.

No princípio dos anos 50 vivia-se um enorme clima de respeito e autoridade que recaía especialmente sobre as crianças e os jovens que viviam em círculos muito fechados que pouco mais iam para alem da família com as constantes reprimendas e os permanentes apelos à obediência.

Não me lembro de ter sido alvo, durante esses dois anos, de qualquer atitude ou comportamento violento ou desrespeitoso por parte de qualquer padre ou “irmão”da Companhia de Jesus com quem convivi nesse colégio mas, é bom dizer, que se tratava de um Colégio para filhos de papás ricos, alguns muito ricos mesmo, e este facto poderia ter alterado para melhor muita coisa…

Mas não me esqueço das confissões que aos 11 e 12 anos tive de fazer aos ouvidos daqueles padres de batina preta da cabeça aos pés e de quem se não tinha medo tinha, pelo menos, muito respeito e vergonha.

Mas que raio de pecados tinha eu para confessar naquela idade quando quase tudo aquilo que fazia era, aos meus olhos, pecado?

Era precisamente aqui que residia a violência…tudo era pecado…tudo era culpa…tudo eram remorsos…penitencias e medo…muito medo do inferno…porque o céu, esse, estava longe, não era para nós…era para os santos, anjos e arcanjos.

Uma educação religiosa não precisa de ser má basta ser religiosa e se há outra coisa que eu recordo era a “necessidade que eu sentia de acreditar” e debatia-me interiormente porque tinha dificuldade em consegui-lo.

Hoje, ao ler a Desilusão de Deus do Richard Dawkins, fiquei a saber que estava a lutar contra uma “partezinha” do meu cérebro que me obrigava a acreditar, não naquilo que os padres me diziam, mas isso eu não sabia nem tinha possibilidades de saber.

O meu cérebro apenas estava programado para acreditar, não para fazer a distinção entre aquilo que era conversa de padres e qualquer outra mensagem que, essa sim, pudesse ser útil para a minha vida.

quarta-feira, maio 14, 2008

terça-feira, maio 13, 2008


O NOVO TESTAMENTO


Como disse Steven Weinberg, físico norte-americano galardoado com o prémio Nobel:

“A religião é um insulto à dignidade humana. Com ou sem ela, haveria sempre gente boa a fazer o bem e gente má a fazer o mal”.

Blaise Pascal, francês, filósofo, físico e matemático nascido em 1623 afirmou algo de parecido:

“Os homens nunca fazem o mal tão completa e alegremente como quando o fazem por convicção religiosa”.

O que nos ficou no pensamento a partir da leitura de certas passagens significativas do Antigo Testamento foi:

- Um Deus que há 3.500 anos, no seio do povo judaico, se lhes impôs como seu único Deus, lutando com todos os restantes deuses seus rivais de forma feroz e cruel;

- Que os dois seus principais discípulos na terra, Abraão e Moisés, foram homens que à luz da moral dos dias de hoje tiveram comportamentos altamente reprováveis:

- Abraão, como um vulgar proxeneta, viveu à custa da sua linda mulher, Sara, cedendo-a, primeiro, ao Faraó do Egipto convencendo-o que ela era sua irmã e tirando largamente proveito material dessa situação e quando, uma vez descoberto, foi expulso voltou a fazer precisamente o mesmo com Amibalec, rei de Guerar e tudo isto com a cobertura e conivência do seu Deus;

- Moisés, o homem das Tábuas, que como um vulgar “homem forte” de um qualquer tirano executou implacavelmente todas as ordens do patrão, seu Deus, por mais cruéis que elas fossem para, dessa maneira, obter a obediência do povo de Israel;

-E, finalmente, uma sociedade profundamente religiosa, sedenta de um culto, machista e também ela cruel à imagem do seu Deus, com estranhos hábitos sexuais que preferia “conhecer” os homens às mulheres.


Em resumo, a moral que ressalta das Escrituras do Antigo Testamento não serve para nós nem para a maioria das pessoas religiosas porque, se assim fosse:

- Guardaríamos religiosamente o Sábado ou o Domingo, no caso dos católicos, e acharíamos justo e adequado executar quem quer que optasse por não o fazer;

- Apedrejaríamos até à morte toda a noiva que não conseguisse provar a sua virgindade se o marido se afirmasse insatisfeito com ela.

- Executaríamos as crianças desobedientes e…por aí fora.



Será também assim com o Novo Testamento?

Qual a opinião de Richard Dawkins?

Do ponto de vista moral, Jesus representa uma enorme melhoria relativamente ao ogre cruel do Antigo Testamento.

De facto, a ter existido, Jesus (ou quem quer que lhe tenha escrito o Gião, caso não tenha sido ele) foi certamente um dos maiores inovadores da ética que a história conheceu.

O Sermão da Montanha é muito avançado para o seu tempo.

O seu «dar a outra face» adiantou-se a Gandhi e a Martin Luter King em 2.000 anos mas a superioridade moral de Jesus confirma precisamente que a ética das Escrituras com que fora educado não o satisfazia.

Afastou-se explicitamente delas, por exemplo, quando desvalorizou os avisos severos quanto a desrespeitar o sabat.

«O sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado» é uma sábia generalização e comprova a tese de que não devemos retirar a nossa moral das Escrituras.

Mas no que diz respeito aos valores da família já não tinha muito que o recomendasse. Tinha com a mãe modos ríspidos a roçar a brusquidão e incentivou os discípulos a abandonarem as suas famílias para o seguirem.

«Se alguém vem ter comigo e não aborrece o seu pai, mãe, esposa, filhos, irmãos, irmãs e até a própria vida, não pode ser meu discípulo».

A este propósito a comediante norte-americana Júlia Sweeney exprimiu assim o seu espanto no espectáculo Letting Go of God:

«Não é isso que se fazem os cultos? Obrigam-nos a rejeitar a família para serem eles a inculcarem-nos o que querem»

Há por vezes a ideia de que o Cristianismo é uma religião mais simpática do que o Islamismo, e o Budismo é, frequentemente, considerado a mais simpática de todas, no entanto, a doutrina da despromoção na escada da reencarnação por causa dos pecados cometidos numa vida anterior, é bastante injusto e condenável.

Diz Júlia Sweeney: «Fui à Tailândia e aconteceu que visitei uma mulher que tomava conta de um rapaz horrivelmente deformado. Disse à mulher: “É tão bom da sua parte cuidar desse pobre rapaz” ao que ela respondeu: “ Não diga «pobre rapaz» que ele deve ter feito qualquer coisa de muito terrível numa vida passada para ter nascido assim…”

Mas, regressando ao Cristianismo e salvaguardando que os seus ensinamentos éticos eram, quando comparados com essa calamidade ética que é o Antigo Testamento, admiráveis, outros existem que nenhuma pessoa de boa fé pode defender.

Referimo-nos à doutrina central do Cristianismo que é a da «expiação» pelo «pecado original».

Este ensinamento que está no cerne de toda a teologia do Novo Testamento é tão estranho e esquisito como a história de Abraão a preparar-se para transformar Isaac em churrasco.

De resto o próprio «pecado original» provem directamente do Antigo Testamento, do mito de Adão e Eva.

O pecado destes – comer o fruto de uma árvore proibida – parece pouco para sequer merecer uma reprimenda, no entanto, a natureza simbólica do fruto (o conhecimento do Bem e do Mal que na prática, seria afinal, o conhecimento de que estavam nus) foi suficiente para transformar a sua aventura na mãe e no pai de todos os pecados.

Eles e todos os seus descendentes foram expulsos para sempre do Jardim do Paraíso, privados do dom da vida eterna e condenados a gerações de trabalho árduo, respectivamente no campo e no parto.

Até aqui, só vinganças mas, tratando-se do Antigo Testamento, não há que estranhar… contudo, a Teologia do Novo Testamento acrescenta-lhe uma nova injustiça rematada por um elemento sadomasoquista que ultrapassa o do Antigo Testamento.

É espantoso que uma religião adopte um instrumento de tortura e de execução como o seu símbolo sagrado.

O Comediante e Pensador norte americano Lenny Bruce observou sarcástica mas correctamente que «se Jesus tivesse sido morto há 20 anos, as crianças das escolas católicas talvez usassem, em vez de cruzes, cadeirinhas eléctricas ao pescoço».

Mas a Teologia e a teoria do castigo subjacentes são ainda piores:

- Diz-se, então, que o pecado de Adão e Eva terá passado através da descendência masculina – transmitida pelo sémen, segundo Santo Agostinho.

Mas que espécie de filosofia ética é esta que condena todas as crianças, mesmo antes de nascerem, a herdar um pecado de um seu antepassado remoto?

O pecado é uma obsessão permanente e doentia dos primeiros teólogos, o pecado que era «ancestral» e que Santo Agostinho transformou em «original», mas sempre o pecado, o pecado, o pecado…

Mas que sarna de preocupação que acaba por dominar completamente as nossas vidas!

Na sua Letter to a Christian Nation, Sam Harris é de uma mordacidade magnífica quando diz:

«A vossa principal preocupação parece ser que o Criador do universo se ofenda com alguma coisa que as pessoas façam quando estão nuas. Esse vosso puritanismo contribui diariamente para o aumento da miséria humana.»

Deus encarnou num homem, Jesus, para que ele fosse torturado e executado para expiação do pecado hereditário de Adão e desde que São Paulo expôs esta repugnante doutrina, Jesus tem sido adorado como redentor de todos os nossos pecados.

A expiação, como doutrina central do Cristianismo, é cruel, sadomasoquista e repugnante.

Se Deus queria perdoar os nossos pecados, porque não perdoá-los simplesmente, sem se dar a torturar e a executar como moeda de troca?

O estudioso judeu Geza Vermes explica que São Paulo estava imbuído do velho princípio teológico segundo o qual sem sangue não há expiação.

Richard Dawkins chama a atenção para um aspecto importante e particularmente inaceitável:

- A consideração moral devida aos outros e promovida tanto pelo Antigo como pelo Novo Testamento visava, originariamente, uma comunidade muito restrita, a comunidade judaica e quando se dizia «amar o próximo» significava apenas «amar outro judeu».

Isto teve terríveis implicações porque «amar outro judeu» implicava o reverso da medalha ou seja, «a hostilidade para com aqueles que não pertencem ao grupo, que o mesmo é dizer a todos os que não são judeus».

Este aspecto está claramente demonstrado pelo norte-americano John Hartung, médico e antropólogo num ensaio notável sobre a evolução e a história bíblica da moralidade intra grupo.

Nesse ensaio, Hartung, demonstra claramente que a frase «Não matarás» nunca pretendeu dizer aquilo que hoje pensamos mas, tão-somente, «não matarás outros judeus».

Moisés Maiomónides, respeitadíssimo rabino médico do séc. XII, explica na seguinte fórmula o significado da frase «não matarás»:

“Se alguém mata um israelita que seja, infringe um mandamento negativo, porque as escrituras dizem «não matarás».

Aquele que matar premeditadamente na presença de testemunhas, há-de morrer pela espada. Escusado será dizer que não se é condenado à morte por matar um pagão.”

Dawkins teve o cuidado de reconhecer que o pensamento de hoje das pessoas religiosas já não é este o que demonstra que a nossa moral, quer sejamos religiosos ou não, tem outra origem, e essa outra origem, qualquer que ela seja, está disponível para todos nós, independentemente da religião ou da sua ausência.

domingo, maio 11, 2008


MOISÉS
(Richard Dawkins)


Falar do antigo Testamento sem uma palavra para Moisés não faria sentido e Richard Dawkins atribui-lhe a importância que ele realmente tem considerando-o um modelo com mais probabilidades do que Abraão para atrair seguidores entre as três religiões monoteístas.

Abraão pode até ser considerado o Patriarca primacial, mas, se alguém merece a designação de fundador doutrinal do Judaísmo e das religiões dele derivadas, esse alguém é Moisés.

O Deus de Abraão e de Moisés era terrivelmente ciumento relativamente a outros deuses e isso é recorrente ao longo de todo o Antigo Testamento e quando o seu povo se desviava do seu culto a vingança era sempre terrível.

O episódio do bezerro de ouro e Baal, o deus seu eterno rival, sedutor dos adoradores volúveis, são reveladores desse ciúme que teria estado, de resto, na origem do 1ºe dos 3 seguintes dos 10 Mandamentos:

1º-Eu sou o Senhor teu Deus, não terás outros deuses além de Mim;

2º- Não farás para ti esculturas nem figura alguma do que está em cima nos céus, ou em baixo sobre a terra, ou nas águas debaixo da terra: não te prostrarás diante delas e não lhes prestarás cultos.

3º- Não pronunciarás em vão o nome do Senhor teu Deus.

4º- Lembra-te de santificar o dia de descanso; trabalharás durante 6 dias e farás toda a tua obra. Mas no 7º dia – Que é um repouso em honra do Senhor teu Deus, não farás trabalho algum.

Parece, realmente, que Deus só estava verdadeiramente preocupado consigo, com o seu poder único e indiscutível, muito mais importante do que qualquer outra coisa que aos homens dissesse respeito…

No episódio do bezerro de ouro…Moisés estava longe, em segurança, no monte Sinai conversando com Deus e recebendo dele as Tábuas de pedra gravadas mas o povo, lá em baixo, vendo que Moisés demorava a descer o monte não perdeu tempo, reuniu-se à volta de Aarão e disse-lhe:

“ Vamos! Façamos para nós um deus que caminhe à nossa frente pois a Moisés, esse homem que nos persuadiu a sair do Egipto, não sabemos o que lhe terá acontecido” (Êxodo 32:1)

Então, Aarão, pôs toda a gente a reunir o ouro que tinham e fundindo-o fez um bezerro de ouro e para esta nova divindade construiu um altar para que todos pudessem começar a oferecer sacrifícios.

A verdade é que deviam ter pensado duas vezes antes de se porem com folestrias nas costas de Deus pois, mesmo estando no cimo da montanha apercebeu-se de tudo, não esqueçamos que ele era omnisciente, e despachou Moisés monte abaixo, à pressa, transportando as Tábuas de pedra em que gravara os 10 Mandamentos.

Quando chegou e viu o bezerro de ouro ficou tão furibundo que deixou cair as Tábuas que se partiram tendo Deus substituindo-as por outras.

Moisés agarrou no bezerro de ouro, queimou-o, reduziu-o a pó, misturou-o com água e obrigou o povo a engoli-lo.

Depois mandou a tribo sacerdotal passar a fio de espada tantos quantos pudessem e isso resultou em 3000 mortos que se julgaria suficiente para acalmar os ciúmes de Deus. Mas não, Deus ainda não estava satisfeito.

No último versículo deste terrível capítulo, o seu gesto de despedida foi lançar uma praga sobre o que restava do povo “por ter instigado Aarão a fazer o bezerro”.

No capítulo 25 do Livro de Números muitos judeus foram seduzidos pelas mulheres moabitas a oferecerem sacrifícios ao deus Baal.

Mais uma vez Deus reagiu com a fúria característica, ordenando a Moisés:

“Reúne todos os chefes do povo e manda-os enforcar diante do Senhor, em pleno dia; depois a ira do Senhor se afastará de Israel”.

Tendo prometido expulsar das suas terras os infelizes dos Amorreus, Cananeus, Heteus, Ferezeus, Heveus e Jebuseus, Deus passa, por fim, ao que realmente lhe interessa: a rivalidade com deuses!

“…derrubareis os seus altares, quebrareis os seus monumentos e cortareis as suas árvores sagradas. Não adorareis nenhum outro deus, pois o Senhor chama-se zeloso;
é um Deus Zeloso. Não façais aliança alguma com os habitantes desta terra porque, quando se prostituem aos seus deuses e lhes oferecem sacrifícios, poderiam aliciar-te e comerias as vítimas dos seus sacrifícios; poderias também escolher, entre as suas filhas, mulheres para os teus filhos e essas mulheres, prostituindo-se aos seus deuses, arrastariam os teus filhos que também se prostituiriam a esses deuses. Não farás para ti deuses de metal fundido”. (Êxodo 34: 13-17).

A limpeza étnica iniciada nos tempos de Moisés é levada a um extremo sanguinolento no Livro de Josué, um texto marcante pelos massacres sanguinários que relata e pelo prazer xenófobo com que o faz. Como reza o velho e encantador cântico, «Josué lutou na batalha de Jericó e as muralhas desabaram…Não há ninguém como o bom velho Josué – é da batalha de Jericó».

O bom velho Josué não descansou enquanto não «passaram ao fio da espada quando nela encontraram, homens, mulheres, crianças, velhos e os bois, as ovelhas e os jumentos» (Josué 6:21).

E não se pense, já agora, que a personagem de Deus, presente em toda esta história alberga quaisquer dúvidas ou escrúpulos acerca dos massacres e genocídios de que a ocupação da Terra Prometida se fez acompanhar.

Pelo contrário, as suas ordens, por exemplo, em Deuterenómio 20, são implacavelmente explícitas relativamente aquelas tribos que tinham o infeliz azar de já habitarem o «lebensraum», uma espécie de espaço vital da terra prometida: «quanto às cidades daqueles povos que o Senhor, teu Deus, te há-de dar por herança, não deixarás subsistir nelas nem uma só alma. Votarás à destruição, o heteu, o amorreu, o cananeu, o farezeu, o heveu e o jebuseu como te ordenou o Senhor, teu Deus.»

Será que as pessoas que apontam a Bíblia como inspiração para a rectidão moral têm a mais pequena noção no que, na realidade lá está escrito?

Exemplo:

No Livro de Números 15, os filhos de Israel encontram um homem no deserto a apanhar lenha num sábado, dia proibido.

Levam-no e perguntam a Deus o que fazer com ele.
Acontece que nesse dia Deus não está para meias medidas.

“Então o Senhor disse a Moisés: “Esse homem será morto, toda a assembleia o apedrejará, fora do acampamento”. De facto, toda a assembleia o fez sair do acampamento, apedrejando-o e foi morto”.

Teria este inofensivo homem que apanhava lenha, uma mulher e filhos para lhe chorarem a morte? Teria gritado de dor enquanto a fuzilaria lhe esmagava a cabeça?

O que choca nesta história não é o facto de ter acontecido, até porque, provavelmente, não aconteceu.

O que surpreende é as pessoas hoje basearem as suas vidas num modelo de comportamento medonho como é o de Jeová e, pior ainda, que tentem mandar em nós impingindo-nos o mesmo monstro maligno.

Claro que os tempos mudaram e nenhum líder religioso da actualidade (tirando os talibãs ou os seus equivalentes entre os cristãos norte americanos) pensa como Moisés mas um Bispo da actualidade sobre os 10 Mandamentos do Antigo Testamento diz «que eles contêm a maior base da moralidade, retêm princípios fundamentais sem os quais seria impossível a existência de qualquer sociedade humana, sendo uma espécie de Carta Magna da humanidade».

Já agora, para que não fiquem incompletos os 10 Mandamentos das tábuas que Deus deu a Moisés, para além dos 4 primeiros já transcritos e que apenas se preocupam com a blindagem total do seu próprio poder, eles completam-se com:

5º - Honra o teu pai e a tua mãe para que os teus dias se prolonguem sobre a terra;

6º - Não matarás;

7º - Não cometerás adultério;

8º- Não furtarás;

9º- Não levantarás falsos testemunhos contra o teu próximo;

10º - Não cobiçarás a mulher do teu próximo e não cobiçarás a casa do teu próximo, nem o seu escravo, nem a sua escrava, nem o seu boi, nem nada que lhe pertença.

Não sei se há 3.500 anos este conjunto de regras representavam algum avanço em termos de justiça social ou se já nesse tempo eram uma “espécie de chover no molhado”.

Serem consideradas, hoje, a Magna Carta da humanidade diz muito sobre a actualidade do pensamento de alguns Bispos da Igreja.

Mais, se levássemos a sério os 10 Mandamentos, classificaríamos a adoração de falsos deuses e a construção de ídolos em primeiro e segundo lugares na lista de pecados.

Em vez de condenarmos o inqualificável vandalismo dos talibãs, que fizeram explodir os Budas de Bamyan, estátuas de 45 metros de altura localizadas nas montanhas do Afeganistão, louvá-los-íamos pela sua justa devoção porque aquilo que tomamos por vandalismo seria, sem dúvida, motivado por sincero zelo religioso.

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