sexta-feira, janeiro 11, 2008

Fumadores Activos/Fumadores Passivos


Fumadores Activos/ Fumadores Passivos

Nunca tal se tinha visto. Sai uma lei e no dia seguinte, por causa dela, a vida dos portugueses está de pernas para o ar.

Ainda hoje vi na Televisão, numa vila de pescadores, classe em que o vício do tabaco é quase generalizado, o Café estar às moscas e os clientes na rua, não por estar frio ou calor ou por qualquer razão de natureza sanitária, mas apenas por não poderem fazer aquilo que ao longo de uma vida sempre fizeram: dois dedos de conversa à mesa ou ao balcão acompanhados de um café, bagaço e...o inseparável cigarrito.

Estranho, muito estranho, aqueles homens ali, todos no meio da rua, pareciam estar de castigo, e quando chegar a noite, e quando estiver muito frio e muito vento, para onde é que eles vão se o Café foi sempre o único destino depois do jantar?

Vão passar a noite numa roda-viva de entra e sai, entra e sai para fumar o cigarrinho?

As repetidas e súbitas mudanças de temperatura do interior para o exterior do Café não irão juntar-se, como factor de doença, ao risco que representa o mar na vida de um pescador?

E se estiverem a jogar à sueca interrompem o jogo ao fim de cada “bola”para irem todos lá fora fumar?

E se houver um que, por acaso, não fume, também sairá para fazer companhia aos que fumam ou fica lá dentro a guardar as cartas e a mesa?

O que é que estas pessoas fizeram de mal para serem tão fortemente violentadas nos seus hábitos de uma vida?

O cigarro é um vício individual mas é também um hábito social e se o primeiro se salvou da proibição o segundo caiu nas suas malhas e com ele a convivência que representava o cigarrinho fumado em companhia e que foi relegado para locais esconsos tais como: casas de banho, urinóis, varandas, passeios e esquinas de rua.

Mas o cigarro é também um malefício, não vale a pena negá-lo. Os cigarros aumentam a probabilidade do cancro e de mais não sei quantas doenças mas o que é relativamente novo é a preocupação do Estado com a saúde dos fumadores passivos que está na razão de ser desta legislação porque, quanto aos activos, é lá com eles.

Há 12 anos que passei de fumador activo a passivo. O meu aparelho respiratório não suportava o fumo e parei a agressão que fazia a mim próprio pondo fim a um processo de autentico masoquismo.

Ficou a saudade do prazer que o cigarro me dava, especialmente no fim da refeição com o café, mas ganhei qualidade de vida no dia a dia sem me atafulhar naquela tosse que parece querer levar-nos as entranhas.

No primeiro dia da “lei seca do tabaco” entrei no meu Café para o pequeno-almoço do costume e a surpresa de um ambiente limpo de fumo e de maior disponibilidade de mesas despertou-me para uma nova realidade.

Antes, entrava, encomendava e como não suportava o ambiente de fumo que por vezes era asfixiante voltava a sair, como um proscrito, para ocupar uma mesa na esplanada montada no espaço exterior que, neste caso, até tem algumas condições, mas não deixava de ser, apesar de tudo, nesta época do ano, terra de exílio.

Era o preço que tinha de pagar por não querer ser fumador passivo.

O espaço nobre, esse, era dos fumadores activos aos quais, eu próprio, durante tantos anos, tinha pertencido e depois, fiel ao velho princípio de que quem não está bem muda-se, lá ia eu pacífica e resignadamente, refugiar-me numa mesa da esplanada como um tontinho que não sabe que as esplanadas são o verão e não para o Inverno.

O fumador passivo que já foi fumador activo tem condições para avaliar e sentir de uma forma diferente a situação actual porque, se isto é uma guerra entre activos /passivos, então ele esteve nos dois lados da barricada e daí compreender melhor ambas as partes em contenda.


Mas há também um outro aspecto da questão, de natureza mais pessoal, íntima e sentimental: para mim, o cigarro, foi fonte de inspiração, de estímulo, companhia sempre presente nas horas boas, más e muito más da vida, na paz e na guerra, fonte de prazer que se deixava substituir pelo que ardia a seguir sem protestos nem ciúmes, um amigo que nos queimava as entranhas... mas um amigo.

É certo que um dia desfizemos esta relação, não foi fácil, era uma relação quase de uma vida ao longo da qual estivemos unidos em todos os momentos, fazíamos quase parte um do outro.

Eu teria os meus 12/13 anitos quando depois de os ter descoberto ao canto da boca dos meus heróis, envolto numa espiral de fumo, os fui encontrar no bolso do tabaco do casaco do meu pai.

Uma relação que começou clandestina, pecaminosa, afrontando a moral e disciplina vigentes, que me obrigava a fugir, a esconder, a subir às arvores, a dissimular, a mentir, assim como quem ama a mulher proibida… correndo riscos.

Mas as contradições da vida obrigam-nos, muitas vezes, a abandonar o que nos dá prazer e faz feliz para nos pouparmos do mal que igualmente nos faz.

Prefiro assim, se tinha que acabar que tenha sido por decisão própria e não do governo.

Ficam a contas com a lei os fumadores que se assumem como tal e reivindicam o direito de continuarem a fumar com um mínimo de dignidade como exige o Miguel de Sousa Tavares.

Quem conhece bem os portugueses sabe que eles são exímios em se “ajeitarem” às leis e eu creio, que nesta primeira fase, é exactamente isso que está a acontecer embora me pareça que a margem de manobra não seja muito grande.

Temos, por um lado, a A.S.A.E., preparada e desejosa para, uma vez mais, exercer as suas funções de forma rigorosa e autoritária e por outro, os grandes espaços comerciais que concentram uma grande fatia da população e que aderiram em pleno à proibição.

Os bares e discotecas que, segundo parece, perderam 70% da sua clientela, e que constituem a grande oferta para as noites dos fins-de-semana, especialmente entre a juventude, parece-me o problema de mais difícil resolução e isto porque não creio que com um pouco de imaginação e outro tanto de dinheiro, o Dr. António Costa não arranje uma forma para recolher as beatas dos passeios das ruas de Lisboa que antes ficavam nos cinzeiros dos cafés, restaurantes e locais de trabalho.

Discussões, reivindicações e lamentações à parte o que é uma realidade indiscutível é que a nossa sociedade deu um salto, de um dia para o outro, em termos de Saúde Pública e Civilizacionais e isto é, de tudo, o mais importante.

segunda-feira, janeiro 07, 2008

José Carlos Ary dos Santos




José Carlos Ary dos Santos



Era o dia 18 de Abril de 1951, a manhã estava soalheira e a velhinha camioneta do Colégio de S. João de Brito, à data, o espaço com maior densidade de meninos ricos por metro quadrado da cidade de Lisboa, regressava ao ponto de partida depois de ter recolhido os alunos para mais um dia de aulas, muitas rezas e ponta pés na bola nos intervalos.

Eu era dos primeiros a embarcar juntamente com outro colega, o Jorge Manuel Barahona Vanzeler (há nomes assim, colam-se a nós e por cem anos que vivamos temo-los sempre na ponta da língua), menino de família que era acompanhado até à porta do solar onde vivia por uma criada impecavelmente fardada.

Lembro-me bem dele porque durante a viagem, desde os Caminhos-de-Ferro, a Sta. Apolónia, até ao Colégio, ao fundo da Alameda das Linhas de Torres, tínhamos muito tempo para conversar e contar histórias de livros de aventuras de que eu era grande apaixonado.

A viagem decorria sempre de forma pachorrenta. A nossa camioneta, provavelmente, ainda do tempo da última Grande Guerra, de formas arredondadas e que tratávamos por um nome carinhoso que, na minha memória, não resistiu ao tempo nem aos anos, só tinha que avançar entre a recolha de cada aluno sem o contratempo do trânsito que era então coisa desconhecida na nossa velha Lisboa.

Finalmente, abrandava, virava à direita, parava junto ao portão e motorista tocava o “clacson”, como então se dizia, até que um trabalhador da quinta o vinha abrir.


À nossa frente uma alameda e ao fundo, correndo aos saltos e agitando os braços na direcção da camioneta, um menino de calções, gordo e desajeitado, gritava:

-Morreu o Carmona, Morreu o Carmona, Vamos para Casa!

Era o Ary, inconfundível, exuberante, esfusiante, meio louco, que por morar ali perto chegava primeiro e soube logo da notícia pois as sobrinhas do Presidente tinham ido à capela do Colégio, ainda de madrugada, encomendar a Deus a alma do tio.

O Ary era uma explosão de energia, de irreverência que escandalizava e surpreendia quando saltava para as costas do padre, professor de português, rodeava-lhe o pescoço com os braços e o obrigava a correr imitando um cavaleiro.

O Ary era uma força da natureza e se alguém poderia escrever os versos que se seguem, pela sua genialidade, esse alguém só poderia ser o José Carlos Ary dos Santos que a si próprio se definia:

“Poeta de combate disparate
Palavrão de machão no escaparate
Porém morrendo aos poucos de ternura”



Poeta Castrado Não!


Serei tudo o que disserem
por inveja ou negação:
cabeçudo dromedário
fogueira de exibição
teorema corolário
poema de mão em mão
lãzudo publicitário
malabarista cabrão.
serei tudo o que disserem:
poeta castrado não.

Os que entendem como eu
as linhas com que me escrevo
reconhecem o que é meu
em tudo quanto lhes devo:
ternura como já disse
sempre que faço um poema;
saudade que se partisse
me alagaria de pena;
e também uma alegria
uma coragem serena
em renegar a poesia
quando ela nos envenena

Os que entendem como eu
a força que tem um verso
reconhecem o que é seu
quando lhes mostro o reverso:

Da fome já não se fala
-é tão vulgar que nos cansa-
mas que dizer de uma bala
num esqueleto de criança?

Do frio não reza a história
-a morte é branda e letal-
mas que dizer da memória
de uma bomba de napalm?

E o resto que pode ser
o poema dia a dia?
-Um bisturi a crescer
nas coxas de uma judia;
um filho que vai nascer
parido por asfixia?!
Ah não me venham dizer
que é fonética a poesia!

Serei tudo o que disserem
Por temor ou negação:
Demagogo mau profeta
Falso médico ladrão
Prostituta proxeneta
Espoleta televisão.
Serei tudo o que disserem
Poeta castrado não!


“ Ser poeta é escolher as palavras que o povo merece”

José Carlos Ary dos Santos


:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::


Cavalo á Solta - Fernando Tordo (Ary dos Santos)





Ary dos Santos - 1977 - Muitos Homens na Prisão


Site Meter