sábado, fevereiro 21, 2009


Eugénio de Andrade

SEM TI

E de súbito desaba o silêncio
É um silêncio sem ti,
Sem álamos,
Sem luas.


Só nas minhas mãos
Ouço da música das tuas…




QUE MÚSICA ESCUTAS TÃO ATENTAMENTE


Que música escutas tão atentamente
Que não dás por mim?
Que bosque, ou rio, ou mar?
Ou é dentro de ti
Que tudo canta ainda?


Queria falar contigo,
Dizer-te apenas que estou aqui,
Mas tenho medo,
Medo que toda a música cesse
E tu não possas mais olhar as rosas.


Deixa-te estar assim,
Ó cheia de doçura,
Sentada, olhando as rosas,
E tão alheia
Que nem dás por mim…


Medo de quebrar o fio
Com que teces os dias sem memória.
Com que palavras, beijos
Ou lágrimas
Se acordam os mortos sem os ferir,
Sem os trazer a esta espuma negra
Onde corpos e corpos se repetem,
Parcimoniosamente
No meio de sombras

PEDRO ABRUHOSA - SE EU FOSSE UM DIA O TEU OLHAR




Tieta do Agreste

EPISÓDIO Nº 57


DO BANHO DO RIO COM OS SOBRRINHOS, O ATREVIDO E O RECATADO


Diverte-se Tieta com os sobrinhos. Peto, um espoleta, reinador, matreiro a rondar em torno delas, da tia de são Paulo e da formosa enteada, quando não está no bar instruindo-se no que não deve. No que não deve?

- Esse menino é a minha cruz. Ponho-o de castigo, arreio-lhe a taça com vontade, nem assim. Em vez de estudar, vive no bar aprendendo porcarias… tenho um desgosto! Lastima-se Perpétua, constatando a ausência do filho menor.

- Porcarias? – Antonieta adora arreliar a irmã, escandalizá-la – pois fique sabendo que já estão ensinando essas coisas na escola, li nos jornais que vai ser obrigatório, desde o primário.

- Nas escolas, o quê?

- Aulas de educação sexual para meninos e meninas.

- Cruz credo! – benze-se, puxa do terço, o mundo está perdido.

Peto desemboca na varanda, contente da vida, o ar sonso, o olho velhaco regalando-se nos seios entrevistos, nas pernas e coxas à mostra; vai ter uma indigestão, sorri Tieta. Vem recordar o banho no rio, programado para aquela manhã. Perpétua ordena a Ricardo que se prepare e acompanhe a tia. Irão à Bacia de Catarina.

No caminho, carregado com os instrumentos de pesca, Peto conversa com Leonora:

- Mãe me disse que você é minha prima. É mesmo?

- Sou sim, Peto. Está contente com essa prima feiosa?

No bar, Peto escuta Osnar provocando Seixas sempre ocupado a levar as primas sempre ao cinema, ao banho de rio, a passear com elas, são várias: minha prima Maria das dores para cá, minha prima Lurdinha para lá, minha prima Lalita chegou da roça. Osnar cantarola a paródia de certa melodia italiana, come prima… quem tem prima come prima. No bar, aplicado, Peto se educa.

- Contente, pacas. Feiosa? Pô – o olho atrevido atravessando a saída de banho – Só é bonita. Seu Ascânio está gamado.

- Quem?

- Morda aqui – estende o dedo mínimo – diga que não sabe. Pô!

Mistura as expressões da terra com a gíria que ouve na rádio, freguês de programas de música jovem. Tieta e Ricardo ficaram para trás.

- A tia é legal, gosto dela pacas.

A Bacia de Catarina é uma pequena enseada na curva do rio, onde as margens se afastam na maior distância. A correnteza serpenteia entre pedras, seixos, rochedos, águas claras, límpido abrigo. Dali se avista o ancoradouro, os barcos, as canoas, a lancha de Elieser. Escondidos entre as rochas, à margem, recantos discretos, pousos de namoro e frete, o capim amassado pelos corpos.

Antigamente havia horário para homem e mulheres banharem-se separados na Bacia de Catarina, duas vezes por dia, pela manhã e à tarde. Com o aparecimento dos maiôs e a evolução dos costumes – mesmo em Agreste os costumes evoluem – desapareceram os horários e a separação. De manhã cedinho é certo encontrar seu Edmundo Guerreiro, Aminthas e Fidélio. Seixas na farra com Osnar até ao alvorecer, aparece mais tarde comboiando primas. Lavadeiras batem roupa sobre as pedras. Lavadeira foi Catarina, conta a lenda

Lá vai Catarina
Com sua bacia
O patrão atrás
De fala macia
A água é fria
Quente a bacia
De Catarina


Por volta das seis surge Carol, passa em silêncio, sem dar trela a ninguém, todos espiam. A água é fria, é quente a bacia, na de Carol mergulha somente Modesto Pires, um despropósito!

JOHN DENVER - ANNIE'S SONG LIVE



JOE DOLAN - LADY IN BLUE



sexta-feira, fevereiro 20, 2009

MAMAS AND PAPAS - MONDAY, MONDAY




Tieta do Agreste

EPISÓDIO Nº 56


MAIS UM FRAGMENTO DA NARRATIVA, NA QUAL –
DURANTE A LONGA VIAGEM DE ÔNIBUS – LEITO DA CAPITAL DE SÂO PAULO À DA BAÍA – TIETA RECORDA E CONTA EPISÓDIOS DE SUA VIDA À BELA LEONORA CANTARELLI



- Quando me dei conta da intenção de Jarbas: queria que eu fizesse a vida, ficando para ele o ganho, para sustentar sua malandrice, senti uma raiva subir pelo meu peito, uma sufocação. O mais difícil foi arrancar o amor cravado em mim, no meu corpo inteiro. Tinha me apaixonado, estava entregue. Pela primeira vez não era só gozo de cama, era uma coisa diferente, tão boa.

Jarbas La Cumparsita subsistia com razoável largueza às custas do físico de gigolô latino-americano em filme de Hollyood. Esbelto, corpo de toureiro, negros cabelos lisos à custa de brilhantina, o bigodinho, as unhas tratadas, a piteira longa e os olhos, ah!, olhos fatais. Aqui e ali as trabalhadoras reunidas em cooperativa para sustentar os gastos do galã. Ameaças quando preciso, uns bofetes, La Cumparsita vinha e recolhia a féria.

Mas para chegar a bom resultado fazia-se necessário que a obrigação fosse precedida de namoro e conquista, levando a recruta ao delírio: faça de mim o que você quiser, meu amor. Jarbas possuía uma pequena voz agradável, cantava tangos e, por vezes, dizia-se argentino.

Quando falou de amor a Tieta, declarando-se enrabichado, disposto a viver com ela para todo o sempre, contando vantagens de dinheiro e importância social, não foi a perspectiva de largar a vida, ter mando e filho que a jogou nos braços dele.

- Xodó tão grande, eu não pensava em nada disso, ele não precisava prometer me tirar da zona. Se me levasse para viver com ele, em casa nossa, eu de rainha, muito que bem. Mas se quisesse apenas vir tarde da noite, após a ocupação, deitar comigo, falar de coisa à toa, tomar de minha mão, dizer de palavras doces, cantar em meu ouvido me abrindo por dentro e por fora isso me bastava demais. Cega de amor.

Quando elas estavam presas sem remédio à melosa lábia e inegável competência nos embates de alcova, então Jarbas decretava a lei, ditava os itens do regulamento das finanças do casal: para ele, no mínimo setenta por cento da receita diária, daí para cima. Cafifa de tal status implica em despesas. Empenho no trabalho, nada de vagabundagem, cadela.

Eu estava desarvorada no auge da paixão, no maior amor e até começara a acalentar a ideia de morar com ele, largar o ofício, ser mulher direita, já pensou? Tudo conversa mole para engabelar. Depois, igual aos tangos que ele cantava, la cumparsa de misérias sin fin, só então compreendi por quê. Me deu uma raiva, dele e de mim. Ele nem tinha acabado de falar, eu juntei calça e paletó, camisa e gravata, atirei tudo no corredor: fora daqui, escroto!

Revolta e fúria Jarbas não esperava. Vez ou outra, um gesto de recusa, boca e peito em choradeira. Resistência curta. Logo a lábia, a intimidação, a violência, em último caso: consolo e como sonhar, minha filha.

- Sonho tanto…

- Quem sonha, paga caro. Bom é querer. Comecei tudo de novo, devo esse favor a Jarbas La Cumparsita. Disse para mim mesma: puta posso ser mas de alto bordo. A partir daí cheguei ao que sou.

- Nunca mais se apaixonou, Mãezinha?

- Paixão daquela, de perder a cabeça, nunca. Gostar, gostei de alguns. De Filipe, demais.

Mesmo depois de Filipe ter falecido, Tieta não retirara os chinelos e o pijama do quarto de dormir, como se ele fosse voltar a qualquer momento. Em hora incerta, como sempre, para o sorriso e o beijo.

Com Filipe foi diferente, durou quase vinte anos. Quando me conheceu, eu ainda era jovem, esbadanada.

- Era doido por você, Mãezinha.

- Ele encontrava em mim alegria, o descanso, o outro lado da vida. Também não sei definir meu sentimento. Amor, amizade, gratidão, mistura das três coisas? Por isso vim nessa viagem, porque ele morreu e fiquei de novo sozinha como no começo. Para pegar nas duas pontas do novelo e dar um nó, ligar princípio e fim.

- Fim, Mãezinha? Tão nova, tão bonita, com tantos pretendentes?

- Não falo disso, ainda não apaguei o fogo, será que ele se apaga um dia? Penso que só com a morte. Quero apenas mergulhar no que fui, saber como seria se eu tivesse ficado em Agreste em vez de vir para São Paulo. Quero tomar banho na Bacia de Catarina, no rio, enterrar os pés na areia das dunas de Mangue Seco. Só isso. E encher teu peito de ar puro, curar tua anemia.

- Mãezinha, você é tão boa!

- Boa e ruim, quando tenho raiva ninguém pode comigo, viro cão.

- Já testemunhei mas a raiva passa, a bondade fica.

- Aprendi com o sofrimento. Uns trancam o coração, outros abrem, o meu se escancarou. Porque encontrei Filipe. Se não tivesse conhecido ele talvez só a ruindade crescesse em mim, engordando na amargura. Para falar a verdade, não sei. Dizem que sou mandona.

- Penso que você já nasceu como é, Mãezinha. Nasceu para ser pastora, cuidar do seu rebanho.

ELTON JOHN - CAN YOU FEEL THE LOVE TONIGHT




Eugénio de Andrade

DEVIAS ESTAR AQUI


Devias estar aqui rente aos meus lábios
Para dividir contigo esta amargura
Dos meus dias partidos um a um
- Eu vi a terra limpa do teu rosto,
Só no teu rosto e em mais nenhum…



O AMOR


Estou a amar-te como o frio
Corta os lábios.

A arrancar a raiz
Ao mais diminuto dos rios.

A inundar-te de facas,
De saliva esperma lume.

Estou a rodear de agulhas
A boca mais vulnerável.

A marcar sobre os teus flancos
Itinerários de espuma

Assim é o amor: mortal e navegável




URGÊNCIA


É urgente o amor.
É urgente um barco no amor.
É urgente destruir certas palavras,
Ódio, solidão e crueldade,
Alguns lamentos,
Muitas espadas,

É urgente inventar alegria,
Multiplicar os beijos, as searas,
É urgente descobrir rosas e rios
E manhãs claras.


Cai o silêncio nos ombros e a luz
Impura, até doer.
É urgente o amor,
É urgente
Permanecer.

JOHN LENNON - STAND BY ME




quinta-feira, fevereiro 19, 2009


Tieta do Agreste

EPISÓDIO Nº 55



ONDE TIETA RECUSA A PROPOSTA DE DONA ZULMIRA E EM TROCA VÊ UMA PROPOSTA SUA VETADA PELO PAI, PELO CUNHADO E POR ELISA, ESSA POBRE ELISA



Alguém, cujo nome não importa, aconselhara dona Zulmira a vender a casa e a colocar o dinheiro vivo no altar necessitado da Senhora Sant’Ana, livre de contestação, garantindo-lhe o lugar no céu, à direita de Deus, entre os mais justos. Quem sabe, a mesma voz divina o aconselhou a pedir à ricaça de São Paulo o dobro do preço proposto a Modesto Pires. A bolsa de imóveis funcionando pela primeira vez em Agreste.

Se Antonieta não soubesse do preço anterior, talvez nem discutisse pois, mesmo pelo dobro, a vivenda ampla e fresca em centro de terreno, com árvores e jardim não lhe parece cara. Tinha porém horror de ser explorada, sabia o valor do dinheiro. Generosa mas não esbanjadora. Perpétua se engana ao julgá-la. Conhecera dias podres, conservava vivo o travo da miséria. Custou-lhe esforço, habilidade, tato e malícia o que conseguiu juntar a duras penas, não pensa desperdiçar o seu pé-de-meia. Com a morte Filipe secou-se a fonte.

Recusa a proposta de dona Zulmira, oferece a quantia pedida a Modesto Pires. Não teve ainda resposta.

Em lua-de-mel com a família dá-se conta, no entanto, do encoberto interesse de cada um, da avidez maior ou menor a movê-los, apenas os sobrinhos escapam, ainda limpos, fora do círculo mesquinho onde os demais se movimentam. Mais do que os pedintes, os parentes a apoquentam.

Preocupada com o facto de Astério pagar aluguel, levantara a hipótese de, comprada a casa de dona Zulmira ou outra semelhante, igual em conforto, residirem juntos os dois casais: o pai e Tonha, Astério e Elisa. Consultou a uns e a outros em separado.

- Não minha filha, não me obrigue a isso! – o velho bate com o cajado no chão, lança uma cusparada negra, de fumo mascado – Elisa só pensa em moda e figurinos, o rádio naquelas alturas o dia todo. Astério, aqui para nós não vale um peido. Tenho que estar controlando para
ele não meter a mão no dinheiro que você me manda. Se você faz questão e como não tenho outro jeito, vou morar com eles. Mas se você tem piedade de seu pai, me poupe esse desgosto. Pode ser meu fim.

Tieta termina rindo, que outra coisa pode fazer? O Velho, forte, sadio,
mandão a fazer-se fraco e humilde para viver com a filha e o genro.

- E se fosse com Perpétua, Pai? Vosmicê aceitava?

- Deus me livre e guarde, minha filha! Antes a morte. Me crave logo um punhal no peito mas não me peça isso.

- Vosmicê não toma jeito.

- Com você eu posso morar minha filha. Você é direita, saiu a mim. Nossos génios combinam.

Não menos categórica a reacção de Astério e Elisa:

- Enquanto puder pagar aluguel prefiro que a gente more só, Elisa e eu. Não por mãe Tonha, mas seu Zé Esteves é osso duro de roer. Tem cisma comigo – desculpa-se Astério cheio de dedos.

- Pai só tem modos com você, com a gente é aos pontapés. Já pensou, ele e a gente morando na mesma casa? Quer saber de uma coisa mana? Eu não tenho vontade de ter casa própria em Agreste. Até prefiro não ter.

Tieta não perguntou porquê. Sorriu para a irmã, essa pobre Elisa.

- Se é assim, não se fala mais nisso.


Eugénio de Andrade



Pseudónimo de José Fontinhas Rato. Poeta português nascido na freguesia de Póvoa de Atalaia (Fundão) em 19 de Janeiro de 1923.

Faleceu a 13 de Junho de 2005, no Porto, após uma doença neurológica prolongada.



“Passamos pelas coisas sem as ver,
Gastos, como animais envelhecidos:
Se alguém chama por nós não respondemos,
Se alguém nos pede amor não estremecemos,
Como frutos de sombra sem sabor
Vamos caindo no chão, apodrecidos.”



MADRIGAL

“Tu já tinhas um nome, e eu
Não sabia se eras fonte ou brisa ou mar ou flor
Nos meus versos chamar-te-ei amor”



FRENTE A FRENTE


“Nada podeis contra o amor,
Contra a cor da folhagem,
Contra a carícia da espuma,
Contra a luz, nada podeis,
- e é tão pouco!




AS PALAVRAS


Orvalho apenas.
Secretas vêm, cheias de memória.

Inseguras navegam:
Barcos ou beijos,
As águas estremecem.

Desamparadas, inocentes, leves.
Tecidas de luz e são a noite.
E mesmo pálidas
Verdes paraísos lembram ainda.

Quem as escuta?
Quem as recolhe, assim,
Cruéis desfeitas
Nas suas conchas puras.

THE SHADOWS - RIDERS IN THE SKY



JOHNNY MATHIS - FEELINGS




quarta-feira, fevereiro 18, 2009


Tieta do Agreste

EPISÒDIO Nº 54





DE TERRENOS E CASAS À VENDA OU TIETA NO MUNDO DOS NEGÓCIOS IMOBILIÁRIOS


Foi o dono do curtume que chamou a atenção de Tieta para a casa de dona Zulmira.

De braço com a esposa, dona Aída, Modesto Pires visitara a badalada conterrânea logo no dia seguinte ao desembarque, apressado em conhecer melhor a emitente dos cheques mensais que ele descontava. Guardava leve lembrança da molecota a pastorear cabras, namoradeira, expulsa de casa pelo pai, regressando agora viúva e rica. Admirou-lhe as carnes e a imponência, o requinte da peruca acaju, a saia aberta de um lado, refinamentos devidos à posição social e ao trato de São Paulo. Comparou-a com Carol, dois pancadões de mulher, diferentes uma da outra mas ambas fartas, densas, desejáveis mulheres para a cama.

Acompanhada de Leonora e de Ricardo, de batina, Tieta, dias depois, paga a visita. Modesto e dona Aída a recebem e tratam nas palmas das mãos; licor de jenipapo, bolo de milho, doce de banana em rodinhas, confeitos e bolachas de goma. Dona Aída esconda essas tentações, estou engordando a olhos vistos, vou virar uma baleia. Que nada, a senhora está óptima. Leonora regala-se com o doce de banana em rodinhas, Tieta promete:

- Depois lhe digo como se chama este doce aqui…

Risos na sala. Modesto Pires comporta-se como homem do mundo, liberal.:

- Se quiser dizer não se acanhe, dona Antonieta. Aída e o padrezinho tapam os ouvidos.

- Maluquice minha, sou uma estouvada. Me desculpe, dona Aída. O que quero pedir ao senhor, seu Modesto, é um conselho.

Homem rico, importante plantador de mandioca em Rocinha, criador de cabras e ovelhas, proprietário do curtume, de terras a perder de vista, na beira do rio, nas imediações de Mangue Seco, de várias casas de aluguel, entre as quais aquela onde Elisa reside, ninguém melhor do que Modesto Pires para aconselhar sobre casas e terrenos.

- Quanto a terreno em Mangue Seco, se desejar, eu mesmo lhe posso servir. Boa parte do coqueiral daquela área me pertence. Temos lá uma casa de veraneio, para receber os netos, só que não vêm.

Dona Aída não esconde a mágoa: apenas a filha mais velha, casada na Baía com um engenheiro da Petrobrás, aparece nas férias e traz os dois meninos.

O filho, médico, no interior de São Paulo, sócio de uma casa de saúde, casado com paulista, promete muito, nunca se decide. Tão pouco a filha mais nova; vive em Curitiba, o marido é paranaense, empresário, construtor de imóveis.

Para ver filhos e netos dona Aída tem de viajar, tomar o avião em Salvador, morre de medo. Antonieta simpatiza com a queixosa:

- A vida no sul é muito absorvente, ninguém tem tempo para nada. É por isso que quero comprar casa aqui e terreno na praia.

Ali mesmo acertam os detalhes sobre o lote em Mangue Seco, vizinho ao do Comandante Dário, adquirido também a Modesto Pires. Depende dela ver e gostar, naturalmente.

- Vai adorar, o lugar é lindo e está a salvo da chuva de areia. De lá para as dunas, um pulo, uma caminhadinha a pé, Boa para manter a forma.

- É bonito, sim – confirma dona Aída. – Tomara que a senhora venha sempre, assim aumenta a nossa colónia de veraneio. Daqui a uns dias estaremos lá. Logo que Marta e Pedro cheguem – refere-se à filha e ao genro engenheiro.

- Nós iremos com o Comandante, neste fim-de-semana. Estou contando as horas. Faz para mais de vinte e seis anos que não vejo a praia de mangue Seco.

Modesto Pires informa:

- Quanto à casa na cidade, sei que dona Zulmira quer vender a dela, até já mandou me oferecer. Não me interessei, comprar casa de aluguel em Agreste é comprar consumição. Os alugueis são baixos, as casas sempre precisando de conserto, o pagamento atrasa. Tenho algumas, vivo me amofinando com elas. Mas essa casa de dona Zulmira vale a pena. Construção boa, terreno plantado. Ela quer se desfazer para dar dinheiro à Igreja. Tem medo que o sobrinho, se ela morrer, faça como os parentes do finado Lito que botaram causa na justiça, contestando o testamento pelo qual ele deixou tudo para o padre dizer missa. Não sei a conselho de quem, dona Zulmira resolveu vender a casa e dar logo o dinheiro à Senhora de Sant’Ana. A velhinha só ocupa um pedaço da residência: um quarto, a cozinha e o banheiro, o resto trancado, se estragando.

- Onde ela vai morar?

- Tem uma casinha pequena desalugada. Vai morar lá.

- E quanto ela está pedindo, o senhor sabe?

- Já lhe digo – Modesto Pires vai em busca da pasta, retira um papel.

- Está aqui a quantia, escrita pela mão dela.

- Barato, não é?

- Para a senhora, talvez. Para Agreste razoável. Não digo que seja caro mas casa aqui não tem valor. Passe na rua e veja quantas ao abandono, em ruínas. Como diz minha filha Teresa, a que mora em Curitiba, Agreste é um cemitério.

- Um cemitério? Se Agreste, com este clima, esta fartura de frutas e peixes, essa água santa é um cemitério, o que se há-de dizer de São Paulo?

- São Paulo, dona Antonieta é uma grandeza, com aquele parque industrial, aquele movimento, aqueles edifícios uma potência. Que ideia a sua comparar Agreste com São Paulo.

Não estou comparando seu Modesto. Para quem quer ganhar dinheiro, São Paulo é a cidade ideal. Mas para viver, para descansar, gozar de um pouco de sossego, quando a gente cansou de trabalhar e de ganhar dinheiro…

- E tem quem se canse de ganhar dinheiro? Me diga, Dona Antonieta? Não sei de ninguém.

- Tem sim, seu Modesto – Tieta pensa em Madame Georgette, passando o negócio adiante, embarcando para França no auge dos lucros.

- Pois eu não acredito, me perdoe – Muda de assunto, - soube que a senhora mandou telegramas para São Paulo pedindo que Hidrelétrica nos forneça luz.

- Telegrafei para dois amigos do meu finado marido que me consideram. Pode ser que dê resultado.

- Deus permita. Estão falando que um dos dois foi o doutor Ademar, será verdade?

- É sim, dou-me muito bem com ele, lhe arranjei uns votos na última eleição. Filipe não votava nele, coisa de paulista metido a nobre. Mas se davam bem e comigo ele sempre foi muito atencioso.

- Para mim – sentenciou o dono do curtume – é um grande homem. Rouba mas faz. Se todos fizessem como ele, seríamos rivais do EUA. Não pensa assim dona Antonieta?

Nessas trincas de polícia, sou ignorante, seu Modesto. Lhe digo apenas que grande coisa é ter amigos. Felizmente, eu tenho.

- Se a senhora conseguir a luz da Hidrelétrica, o povo lhe vai entronizar no altar-mor da Matriz, junto com a Senhora de Sant’Ana.

Ideia tão estapafúrdia, Antonieta riu às gargalhadas.

GIANI MORANDI - CHIMERA



JIM REEVES - GOODNIGHT IRENE



terça-feira, fevereiro 17, 2009


Tieta do Agreste

EPISÓDIO Nº 53


Os pobres, inumeráveis, vêm a qualquer hora, não passam da sala de jantar; a de visitas, Perpétua, reserva aos graúdos. Cada pobre, uma história triste, uma súplica, um pedido. A fama da riqueza e da generosidade de Tieta alastra-se como erva ruim, veleja nas águas do rio, viaja nos lombos dos burros, alcança as fronteiras de Sergipe. Perpétua franze a testa, não tolera abusos nem esbanjamentos.

- Não posso ver ninguém necessitado, passando fome – declara Tieta.

- Sei o que é precisão, dói em minha carne.

Perpétua, apesar da chaleirice, não se contém:

- Não digo que não ajude um ou outro infeliz. Margarida, que o marido largou na cama, de barriga aberta, vá lá, não pode trabalhar. Calo minha boca. Mas David, um batoteiro, cabra ruim que nunca pegou no pesado, não merece esmola. Só sabe beber cachaça e roncar na beira do rio. É até pecado ajudar a preguiça, a vagabundagem. O melhor benefício que se pode prestar a essa gente é rezar por eles, pedir a Deus que lhes indique o bom caminho. Quem mais pratica a caridade sou eu: rezo por eles todas as noites. Ainda ontem você deu dinheiro a Didinha. Uma perdida com aquele renque de filhos, cada um de um pai e ainda por cima uma ladrona. Dona Aída teve pena, tomou de empregada, pegou roubando na dispensa…

- Feijão para dar aos filhos, Perpétua tenha piedade. Havia de deixar os pobrezinhos morrerem de fome?

- Não os tivesse. Na hora de deitar com o primeiro que aparece não pensa no futuro, só na descaração, Deus me perdoe – a voz sibilina em nojo e reprovação.

- Nessa hora, Perpétua, ninguém pensa em nada, não é? Não dá mesmo… - ri Antonieta – Você foi casada, sabe disso, não sabe? – espia a irmã, um sorriso de galhofa.

- O dinheiro é seu, faz com ele o que quiser, não tenho nada com isso. Mas que me dá pena esse desperdício, me dá, não nego.

- Lá isso é, minha filha. Uns aproveitadores. Sabem de seu bom coração, abusam. Por mim metia eles todos na cadeia, é o que merecem. – Zé Esteves, por uma vez, de acordo com Perpétua.

Todas as manhãs o Velho passa para botar a bênção à filha pródiga: Deus te abençoe e aumente minha filha. Resmunga um Deus te dê a bênção para Perpétua, outro para Elisa, se a mais nova está presente. Relanceia o olhar pela sala onde conversam – numa rede na varanda, Leonora escuta os trinados do pássaro sofrê oferecido por Ascânio. Zé Esteves pousa o olhar em Perpétua, em Elisa, prossegue:

- Só querem lhe explorar. Todos. Sem excepção. Tome tento. Se você continuar de mão aberta, roubam tudo – refere-se aos pedintes? Os olhos em Perpétua, em Elisa, masca o naco de fumo de corda. – Não está vendo dona Zulmira, toda devota, vive na Igreja papando hóstia. Na hora de dizer quanto quer pela casa, como é para você pede um absurdo. Quem falou certo foi Modesto Pires: um roubo. Essa gente que vive metida na Igreja…

Perpétua faz que não ouve, contida pela presença de Tieta. O Velho está pondo as manguinhas de fora, pela vontade dele a filha rica não ajudaria sequer as irmãs, os sobrinhos. Velho ruim como a necessidade. Vive agora na perspectiva da mudança para casa confortável em rua decente, a ser adquirida por Tieta para os dias da velhice. Enquanto ela não vier, Zé Esteves e Tonha desfrutarão sozinhos, isso já está assentado. Não será tão breve que Antonieta, guapa, transbordante de vida, deixará o fausto de São Paulo para enterrar-se em Agreste. É muito mulher para casar de novo e aí então não virá nunca.

Nesse caso Zé Esteves ficará de dono, refastelado, de papo para o ar, com criada para cuidar para cuidar da casa, mesada larga, tendo de um tudo, que encomendou a Deus. Fazendo economia, pode até pensar em adquirir um pedacinho de terra e um par de cabras e recomeçar a criação. No mundo, não há coisa melhor e mais bonita do que um rebanho de cabras nos oiteiros.

ANDREA BOCCELI & DULCE PONTES - O MAR E TU




A HOMOSSEXUALIDADE E O CASAMENTO



Meu Aspirante, quando cheguei à idade de ser menino só me sentia atraído por outros meninos, as meninas nunca me disseram nada, eram-me completamente indiferentes.

Recordo esta conversa como a abordagem mais importante sobre a homossexualidade que tive em toda a minha vida.

O cenário era a parada do R.I. 16 em Évora, o ano, 1961, o contexto, uma recruta para preparar os soldados para a guerra de Angola recentemente iniciada: “…para Angola, depressa e em força! … dissera Salazar.

Quem se abria assim comigo era um soldado do meu pelotão de recrutas que nesse dia, por estar magoado num pé, não participava nos exercícios de “ordem unida” que estava a ser ministrada pelos cabos milicianos.

Distraído, como sempre, tinha sido o último a saber e apenas porque um dos cabos resolveu prestar-me a informação, com algum pudor, sobre aquele soldado que estava à minha responsabilidade.

Os tempos eram outros e estas situações constituíam no fim da década de 50, princípios de sessenta, “autênticos bichos-de sete-cabeças”, tantos os tabus e ignorância sobre elas.

Sentado ao meu lado, continuava a desabafar com toda a naturalidade e sinceridade. As palavras saíam-lhe percebendo-se, através delas, uma identidade feminina, sem ar de queixas, aversão ou ressentimento para quem quer que fosse. Os pais tinham-no expulso de casa logo em muito jovem e de toda a família apenas uma irmã, mais sensível, ainda o visitava, provavelmente às escondidas do resto dos parentes.

Trabalhava num restaurante como ajudante de cozinheiro e as conversavas que gostava de ter eram sobre namorados e vestidos, referindo-se a si sempre no feminino:

- O meu Aspirante já viu o meu tormento a dormir numa camarata de homens e a tomar banho num balneário com eles todos nus?

As perguntas secaram-se todas na minha garganta, apenas soube o que ele me quis dizer, desabafos naturais da sua vida, estranha e bisonha para mim, ignorante aos 22 anos, desconhecedor das realidades de um mundo que era bem maior, complexo e intrigante do que o meu universo de heterossexuais.

Ainda debaixo do efeito surpresa fui ter com o Capitão, Comandante da Companhia, e pedi-lhe que diligenciasse para que aquele soldado fosse dado como livre da tropa ao abrigo dos Regulamentos mas a resposta que obtive foi seca, brutal, desumana:

- Qual quê, ele faz jeito aos soldados lá em Angola!

Fiquei a perceber que ele estava destinado a cumprir dois objectivos para com a pátria: “carne para canhão” e “carne para a carne”.

Não consegui ouvir ontem toda aquela discussão no Prós e Contras, a favor e contra o casamento entre homossexuais, sem ter presente aquela conversa já velha de quase 50 anos e que me abriu os olhos para uma verdade oculta e proscrita por uma sociedade cobarde, injusta e cínica. Aquele(a) jovem destapou para mim, em palavras simples, sinceras, a verdade oculta por vergonha e pudor dos homens “macho”, a maioria dos quais não teria força nem coragem para sobreviverem a tão profundas provações e contrariedades que muito se assemelham a um assassínio em vida, não daqueles que põem fim a tudo num repente, do género: “já está e acabou-se”, mas um assassínio lento que destrói a alma, a personalidade, a identidade, no mais injusto dos castigos em que alguém sofre uma vida inteira apenas por ser “assim”.

-Meu Aspirante, eu nasci assim, não tenho culpa!

Claro que não tinha culpa mas eu nem tive coragem, naquele momento, para o reconfortar com essas palavras:

- “Claro que não tiveste culpa”! …e teria sido tão simples dizer apenas isto.

De toda aquela argumentação do programa de ontem, retive especialmente, a parte final, a outra, dos homofóbicos envergonhados, uns mais que outros, apenas tomei nota que continuam a existir.

Os homossexuais que lutam pelo direito ao casamento civil em igualdade de condições com os heterossexuais fazem-no por uma questão simbólica.

A nossa sociedade já lhes concedeu as Uniões de Facto, que até poderão ser aperfeiçoadas para que não fique qualquer espécie de prejuízo comparativamente ao casamento civil.

- Que mais querem eles? A resposta deles é simples: queremos casar como vocês!

O casamento não lhes vai trazer nada mais para além da concretização do direito à igualdade e liberdade, mas é exactamente isso que eles procuram obter, o símbolo da concretização desse direito.

Fundamentalmente, o casamento, contrato ou não contrato, chamem-lhe o que quiserem, é a via escolhida pela maioria das pessoas para tentarem ser felizes na vida, por quê excluir dela os homossexuais?

À maioria, que são os heterossexuais, e que resolvem casar para serem felizes, que lhes afecta que os homossexuais vivam em comunhão de casa e de cama, em união de facto, ou casados?

Nada, positivamente, nada! Eles apenas não querem partilhar o símbolo, a instituição, o estatuto, não querem deixar entrar para o seu seio aquela minoria de pessoas que é diferente deles.

A diferença assusta-os, conviver com ela no seio da instituição casamento, aflige-os, perturba-os, quantos deles com problemas de sexualidade mal resolvidos…escondidos atrás do casamento!

Que será feito do(a) meu(minha) jovem recruta? – Pelo menos consegui que fosse devolvido, quando ela acabou, a um Quartel da sua terra.

Terá sobrevivido na guerra? – E na vida? – Se conseguiu, a uma e a outra, é um herói.

Para ti, o meu voto SIM, quando chegar o Referendo.

Entretanto, mais uma vez, aqueles que se intitulam de representantes de Deus na Terra, vão optar, como é seu timbre em questões deste tipo, pela condenação e sofrimento, na boa tradição judaico-cristã.

… e para isso qualquer pretexto lhes serve, um Referendo, por exemplo…

segunda-feira, fevereiro 16, 2009

GIGLIOLA CINQETTI - DIO COMO TE AMO



JOHN LENNON - IMAGINE



ENGELBERG - A MAN WITHOU LOVE



DEMIS ROUSSOS - MY FRIEND THE WIND




Tieta do Agreste

EPISÓDIO Nº 52




BREVE ESCLARECIMENTO DO AUTOR SOBRE PROFECIAS E ENXÔFRE


Houve quem quisesse descobrir na arenga do beato Possidónio sobre o próximo e inevitável fim do mundo referências proféticas à indústria do dióxido de titânio.

Quando, por exemplo, o iluminado aludiu ao enxofre procedente dos infernos para destruir a terra e a humanidade não citou claramente os objectos não identificados, vistos em Mangue Seco? Naves de gás?

Conotações, existem, não há dúvida. Em tempos de tanto misticismo, o melhor é não negar nem discutir. Os profetas multiplicam-se, exibem-se na rádio e na televisão. Ao contrário do beato Possidónio, não se contentam com escassa esmola. O beato Possidónio é profeta antigo, produto semifeudal, perdido no sertão, ainda não percebeu as maravilhas da sociedade de consumo.

Não se dá conta de que nas mini-saias lavamos a vista condenada à cegueira pela poluição. Quanto ao enxofre é produzido nos Estados Unidos, nação privilegiada, não se faz necessário importá-la dos infernos.



DE PEDINTES E ABUSOS, DE AMBIÇÕES – CAPÌTULO DE MESQUINHOS INTERESSES


Alegre alvoroço, na feira e em todo o burgo, nascido da presença em Agreste de Tieta e da enteada, formosa e virginal. Tão meiga, lembra a Ricardo, a noiva predilecta do Senhor, Santa Teresinha do Menino Jesus, apesar da mini-saia, do transparente cafetã e dos shortes ousados. Mesmo acompanhando as indecentes modas actuais, percebe-se na suave Leonora o odor da castidade, o encanto da inocência.

Após o passeio na feira, Elisa ameaçara vestir a mini-saia trazida por Tieta, em solidariedade e desagravo a Leonora – ou em competição? Astério se opôs, contou com o apoio de Perpétua:

- Podem-me chamar de atrasada; sou contra, pelo menos aqui. Em São Paulo, pode ser. Aqui o povo não aceita, acha imoral. Eu também para ser franca – a voz esganiçada, estridente, soprando as labaredas do inferno.

- Por mim, dona Perpétua, fique descansada. Nunca mais uso. Não quero ser responsável pelo fim do mundo – promete a mansa Leonora num fugaz sorriso.

- Não lhe estou censurando, sobrinha, você não teve culpa.

Não deseja ofender a querida parenta, sobrinha por adopção. Sobrinha, sim, pois enteada da irmã, filha do cunhado industrial e comendador do Papa, herdeira rica. Pena os meninos serem tão novos, quem está rondando a bolada é Ascânio, não parecia tão esperto.

- Sei que você não fez por mal sua boba. Em São Paulo, nos Estados Unidos, nessas terras onde só tem protestante, não digo nada. Mas aqui ainda se cumpre a lei de Deus.

Conversa aparentemente sem consequência mas, por detrás da alegria a rodear Tieta, existem esperanças, planos, alguns audazes. Reunido em torno à filha pródiga, o clã dos Esteves se desdobra em bajulação às paulistas, escondendo sob o manto da paz familiar uma efervescência de inconfessáveis ambições, de furtivas diligências. Entreolham-se, com suspeita, uns dos outros.

No correr da semana, sucederam-se as visitas, uma romaria. Os importantes do lugar, colegas de Astério, a professora Carlota, seu Edmundo Ribeiro, colector, Chico Sobrinho com a esposa Rita, por coincidência acompanhados por Lindolfo Araújo, tesoureiro da Prefeitura e galã – um dia ainda se enche de coragem e irá tentar a vitória num programa de caloiros na televisão, em Salvador. Vieram o doutor Caio Vilasboas, circunspecto, falando difícil, metade médico, metade fazendeiro, se fosse viver de clínica em Agreste, terminaria pedindo esmola aos sábados, e o coronel Artur de Tapitanga que demorou a tarde inteira conversando. Conhecia Tieta de quando ela, meninota, pastoreava as cabras do pai em terras vizinhas às suas, aliás hoje suas, compradas a Zé Esteves. Fez elogios à beleza de Leonora: parece como uma estatueta de biscuit que antigamente tinha na casa grande, quebrou-se. Fosse ele ainda jovem, na sustança dos setenta, e lhe proporia casamento, mas aos oitenta e seis não quer correr o risco. Por mais honesta que a moça seja, há perigo de chifre. Ria numa catarreira grossa, puxando a fumaça do charuto. Único a faltar, o prefeito da cidade, Mauritônio Dantas, ausência explicada por Ascânio Trindade por ocasião do desembarque: o digno mandatário vive confinado em casa, de miolo mole desde a deserção da mulher, Dona Amélia de apelido Mel, activíssima militante da revolução sexual.

IVES MONTAND - PARIS-C'EST SI BON



domingo, fevereiro 15, 2009

SALVATORE ADAMO - C'EST MA VIE




VINCENT (Starry Starry Night) - DON MCLEAN




Tieta do Agreste

EPISÓDIO Nº 51


Não só meninos, homens feitos também, bando de ordinários. É a mini-saia de Leonora, figurino inédito em Agreste. Antonieta olha para Ascânio, para Osnar, eles fingem não se dar conta da corja em zombaria. Barbozinha está reencarnado pela esta vez em longínqua galáxia. As mãos nas cadeiras, à maneira das feirantes, Tieta fita o animado rebanho. O olhar da ricaça de são Paulo – ou o olhar da pastora de cabras? – entre severo e pícaro, dissolve o cortejo, restam apenas alguns moleques, admiradores mais renitentes. Ascânio respira, Osnar aprova. Para dizer a verdade, o que mais incomoda Ascânio é a presença de Osnar, o olhar de verruma, a expressão de beatitude.

Duas cadeiras de barbeiro ao ar livre, ocupadas ambas, e o trovador Claudionor das Virgens a declamar os versos de folheto de cordel:

Três vezes já casei
Com branca, preta, mulata
No padre, no juiz, na mata
Pela quarta casarei
Por ordem do delegado
Para deixar de ser ousado,

Cala-se a voz do trovador das Virgens à passagem da comitiva. A mini-saia o inspira, improvisa:

Quem me dera casar com Aurora
Que passa de cu de fora.

- É isso que você come em casa no café da manhã – Tieta aponta as raízes de aipim, de inhame, as batatas-doces. A verde fruta-pão.

Elisa, inquieta, a constatar novo crescimento novo crescimento do número de basbaques convida:

- Vamos indo para casa? Estou morrendo de calor.

Verdade, aliás. Não trocara de roupa, está com vestido negro posto para a missa, fechado no pescoço, o contrário de Leonora. O que mais aflige Elisa?

Os moleques, os assobios, o deboche do trovador, a falta de respeito, o achincalhe ou o sucesso da paulista?

- Ascânio prometeu me levar para ver os passarinhos… - doce pipilar de Leonora.

A procissão engrossa, enquanto rumam para a feira de passarinhos – os pássaros sofrê, os pássaros pintores, os pássaros negros, os cardeais, os azulões, os canários-da-terra, papagaios e periquitos e uma araponga a malhar o ferro com o seu grito de bigorna. Leonora irradia felicidade, o acompanhamento toma aspecto de comício, com risos, dichotes, pregões.

- Acho melhor a gente ir andando – insiste Elisa.

- Só um minuto mais. Olhe esse, que amor!

- É um pássaro sofrê, imita todos os passarinhos. Ouça – Ascânio assobia, a ave responde.

Da turba em gozação, outros assobios, acanalhados. Fi-ti-ó-fó, vai também o passarinho. Rindo, a pitar o cigarro de palha, soletre, Osnar avança em direcção aos pândegos, agarra um molecote pela orelha, os demais recuam em correria, explodem em apupos, a troça se estende pela feira.

Ali perto, em cima do caixote de querosene, a cuia ao lado, o profeta Possidónio proclama o iminente fim do mundo, anunciado pelo aparecimento de objectos luminosos em Mangue Seco, ígneas naves de gás conduzindo arcanjos enviados por Deus para escolher e marcar os locais onde se erguerão as fogueiras de enxofre sobrenatural, fabricado nas caldeiras do inferno para consumir o mundo entregue à devassidão, à orgia, à luxúria.

De costas para a cara do ascético beato, curva-se Leonora, oferecendo o dedo a um papagaio manso e falador – diz bom-dia, pede a bênção, fecha um olho, cómico. O beato Possidónio, por mais erudito em matéria de iniquidade humana, de depravação, de impudicícias, jamais vira, com os seus olhos queimados pelo sol do sertão, tal desregramento, tamanha imoralidade. O excitante traseiro de Leonora, praticamente nu, obra-prima de Satanás, aplaudido pela súcia de condenados, coloca-se diante das místicas ventas do profeta, provocação monstruosa!

- Arreda! Sai de minha frente, volta para as profundas do inferno, mulher imunda, pecadora, rameira!

Indignado, Ascânio marcha para o beato Possidónio:

- Cala a boca, maluco!

Mas Tieta o detém, segura-lhe o braço, diverte-se às pamparras.

- Deixa o velho Ascânio. É a mini-saia de Leonora.

- Hein! A mini-saia… - Leonora não sabe se há-de rir ou chorar. – Não me diga, nunca pensei… - dirige-se a Ascânio. – Nunca me passou pela cabeça. Desculpe.

- Quem tem de pedir desculpas sou eu, pelo atraso do povo. Um dia vai mudar – No fundo, nem ele próprio tem certeza. Mudança tão incerta quanto o fim do mundo do sermão de Possidónio.

Deixam para outro passeio boa parte da feira: as carnes-de-sol, os guaianos, os potes e moringas, as figuras de barro, o caldo de cana extraído em primitivas prensas de madeira, tão sujo e tão delicioso. O beato continua a vociferar enquanto eles partem. Tieta a rir do acontecido, e logo a pedir a Osnar que lhe conte a célebre história da polaca, sobre a qual Carmosina lhe falara. Alguns moleques ainda os acompanham pela rua.

A notícia os precedeu, chegou ao bar e ao adro da igreja, um alvoroço para vê-los passar. Leonora anda o mais depressa possível, nunca pensara desencadear o fim do mundo.

- Está próximo, sim, tive aviso e confirmação, posso assegurar – esclarece Barbozinha a par dos segredos dos deuses e das loucuras dos homens – Vai ser uma explosão atómica colossal. Todas as bombas atómicas existentes, as americanas, às russas, as francesas, as inglesas, as chinesas – os chineses estão fabricando na surdina, tenho informações recentes – vão explodir ao mesmo tempo, às três horas da tarde de um primeiro dia de Janeiro. Não digo o ano para não alarmar ninguém.

Igreja virtual e uma imagem de Frederico Gil, o melhor tenista português

Hoje é Domingo, dia de ir à Igreja, aqui






in JN
(...)

Esta foi a segunda semana consecutiva em que o português atingiu as meias-finais de um torneio do ATP Tour, feito que já alcançara em Joanesburgo, onde apenas caiu perante o vencedor da prova, o francês Jo-Wilfried Tsonga, número 14 do Mundo, por 6-3 e 6-4.

O Open do Brasil, que decorre até domingo na Costa do Sauípe, distribui 562.000 dólares (cerca de 436.000 euros) em prémios monetários.

LMP

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