Cooperativa de Habitação em Santarém
COOPERATIVA DE HABITAÇÃO SCALABITANA
- Para começar estas "Memórias Futuras" - nada melhor do que um pedaço de história. História da minha vida.
Rui:
Um dos leitores do Macroscópio, o Sr. João Amaral, que me conheceu dos tempos da Cooperativa de Habitação Económica Lar Scalabitano, dirigiu-me, na secção dos Comentários, palavras simpáticas e elogiosas que agradeço rectificando apenas, relativamente ao Centro de Emprego de Santarém, do qual já estou reformado, que me limitei a ser seu técnico, nunca tendo desempenhado funções de dirigente.
Mas o tema da Cooperativa é um bom assunto porque tem a ver com a intervenção que um qualquer cidadão pode ter, no quadro legal existente, para intervir civicamente na resolução de problemas concretos que correspondam à satisfação de necessidades importantes das pessoas, como é o caso da habitação.
Não sei como está hoje no país o Sector Cooperativo de Habitação Económica, mas dada a inversão de uma situação em que havia casas a menos, especialmente a partir de 1975 em que entraram em Portugal centenas de milhares de conterrâneos nossos oriundos das antigas colónias, para uma outra em que há casas a mais. Provavelmente, já nem se justifica a existência desse quadro legal.
Acresce ainda que as cooperativas foram sempre olhadas com alguma desconfiança por certos estratos da sociedade portuguesa, políticos e não só, que viam nelas iniciativas de inspiração de partidos ou movimentos de esquerda ou extrema-esquerda, para se implantarem no seio das populações, influenciando-as e tentando conquistá-las para as suas organizações políticas. Suspeitas estas que estavam longe de serem completamente infundadas e daí, talvez, mais um contributo para o seu progressivo esvaziamento e perda de importância.
Por outro lado, o próprio sector privado também não convivia pacificamente com este sector cooperativo porque, recebendo este das Câmaras, em direito de superfície, por 99 anos, a preços simbólicos, terrenos camarários, alguns deles muito bem localizados, impedia que os mesmos se viessem a constituir em futuras fontes de negócio e, por outro, os construtores civis que intervinham na construção dos edifícios das Cooperativas, limitavam-se aos ganhos que resultavam dos orçamentos das propostas apresentadas a concurso, em disputa com outras empresas de construção, uma vez que a dona da obra era a Cooperativa que cedia depois, aos seus associados, os fogos pelos preços de custo, eliminando-se, assim, todos os intermediários que encarecem o produto final.
Por estas razões era um sector aparentemente virtuoso já que, em conclusão, era um factor de dinamização da sociedade civil e permitia fazer chegar a famílias de rendimentos baixos, casas com dignidade que, de outra forma, não poderiam vir a desfrutar, uma vez que que, no que respeitava ao seu pagamento, apenas era exigida uma entrada inicial no valor de 5% do valor da casa, com os restantes pagamentos ao longo de 20 anos com juros bonificados.
Mas como até a virtude tem os seus defeitos, também este não era isento e as melhores das intenções podem ser, na prática, desvirtuadas, uma vez que muitas pessoas de estratos económicos mais elevados entravam para as cooperativas, nada nos regulamentos o impedia e através dela, adquiriam uma casa idêntica a uma outra do mercado por um preço muito mais baixo para posteriormente as venderem com grandes margens de lucro.
Por outro lado, todo o processo, desde a constituição e legalização da Cooperativa até à entrega dos fogos, passando pelos terrenos, projectos e sua adjudicação, financiamento e finalmente construção, era deveras moroso e complicado não se mostrando, na maioria dos casos, as pessoas que integravam as Direcções, não obstando muitas vezes a sua boa vontade, preparação suficiente para serem bem sucedidas na condução desses processos, incorrendo normalmente em erros de liderança que eram fatais para o desfecho, para desespero dos técnicos do FFH que tinham como missão acompanhar as cooperativas.
Liderei, em Santarém, todo este processo desde a sua ideia, tomada numa noite em estado de espírito de grande revolta, porque depois de viver mais de um ano, em situação de favor, num cubículo interior, em casa de um familiar, não consegui alugar uma casa por 5 contos, o máximo que me era possível pagar, porque o meu futuro senhorio me exigiu a entrega de 50 contos a título de “pagamento da chave” que eu, naturalmente, não possuía.
Depois foram mais de 5 anos a lutar, primeiro para arranjar 200 associados, número mínimo para poder constituir uma Cooperativa de Habitação Económica numa cidade capital de Distrito, depois contra a burocracia, contra a inveja e a desconfiança dos próprios técnicos do Sector Cooperativo do Fundo de Fomento de Habitação que no início me olhavam, por ser Dr., como um agente infiltrado das direitas junto do povo querendo aproveitar-me das Cooperativas que lhes pertenciam, tal como as estrelas do céu que também eram do povo, na canção do Paulo de Carvalho dos “Meninos à Volta da Fogueira”. E a seguir contra a UDP, que partiu ao assalto da liderança da Cooperativa quando se apercebeu que as casas iriam mesmo ser uma realidade e, finalmente, com os dois empreiteiros envolvidos na construção que acabaram ambos falidos. Tendo sido eu a terminar a obra por administração directa com o dinheiro das garantias bancárias.
Finalmente, ao fim desses 5 anos, em 1983, depois de muitos episódios que dariam para muitos e-mails, e em que me cheguei a sentir uma espécie de D. Quixote a lutar pela sua Dulcineia, tive a grata satisfação de entregar 96 casas a outras tantas famílias, muitas das quais, de outra forma, nunca as teriam tido, e retirar-me definitiva e completamente da Cooperativa sem que tivesse ficado com qualquer casa para mim, porque já tinha, entretanto, resolvido o meu problema de habitação, mas deixando para os responsáveis que me sucederam, terrenos, projectos e sócios, com os quais foi possível, com um investimento total que aos preços de hoje rondariam os 30 milhões de euros, construir mais 200 e tal fogos, projectados pelo Arq.Tomàs Taveira, que lá estão, na Av. Alexandre Herculano, do lado direito de quem desce e antes de chegar ao Hospital Distrital. Hoje em zona nobre da cidade de Santarém, preenchendo a sua função, com amplos espaços para zonas de lazer e estacionamentos, como se pode ver pela foto.
Meu caro Rui, creio que, para além do meu curso, foi a única coisa que fiz na minha vida de uma forma completamente empenhada, para chegar ao fim e ser bem sucedido. Lembro-me que às vezes, em momentos de maiores dificuldades, me lembrava daquela expressão “que o homem sonha e a obra nasce”, mas no meu caso a obra nasceu da raiva contra os oportunistas, os homens-abutres que pairam à volta dos seus semelhantes à espera do último estertor para lhe comerem as entranhas.
Nunca cheguei a conhecer “esse senhor” que queria os 50 contos para me alugar a casa uma vez que a proposta me chegou pelo inquilino que eu iria substituir, mas ele viveu como um fantasma dentro de mim durante anos a dar-me forças para continuar, para chegar até ao fim, para que não fosse ele a ganhar aquela guerra da qual, nunca sequer, teve consciência.
Da próxima vez que vieres a Santarém mostrar-te-ei em pormenor todas essas casas, ao fim e ao cabo o “palco” onde se desenrolou essa luta que vivi secretamente e se, para os factos, houve testemunhas, do resto, que foram as verdadeiras motivações, aqui fica o relato do mais importante que nunca tinha revelado e que, de certa forma, também mostra a dose de ingenuidade de que sempre fui possuído. Procurando bem, no fundo, tudo tem a sua história.