África - O Continente do Meu Fascínio
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Refiro com pormenor este espaço do tempo porque a medida do tempo, como já se aperceberam, é muito enganadora. Anos e anos em que nada acontece, tudo igual, rotina pura, com grande dificuldade em referenciar o que quer que seja, e depois períodos intensos em que parece que tudo se combina para acontecer, no turbilhão de uma roda do carrossel que nos deixa tontos.
África, acontece na minha vida nesses períodos efervescentes em que os sentidos se excitam pela novidade permanente do dia a dia, emprestando mais cor às paisagens e intensidade aos factos que ganham importância especial, porque aconteceram naquele momento e naquelas circunstâncias.
Tivesse eu nascido e sido criado naquele continente, e o que registaria seria o resultado de um processo de habituação em que tudo me seria familiar. Mas eu não tinha nada nem ninguém que me ligasse a África e, por isso, o meu deslumbramento, choque, surpresa no contacto com uma natureza que nuns sítios é vigorosa, asfixiante mas, ao mesmo tempo, cúmplice e protectora e noutros, extensa, infindável, mística e entre uma e outra - todas as combinações possíveis desde um pôr-do-sol paradisíaco na ilha de St.ª Carolina do arquipélago do Bazaruto, próximo da costa de Moçambique - até à grandiosidade esmagadora dos penhascos da Tundavala no planalto Central de Angola.
E depois, temos as circunstâncias. Milhares de jovens como eu foram “despejados,” de um dia para o outro, nas luxuriantes matas do norte de Angola que, de dia nos enchiam os olhos do verde da vegetação e à noite os ouvidos com as sinfonias de todos os insectos, batráquios e não sei que mais bicharada. Era como se a natureza nos interpelasse através das vozes de cada um daqueles bichinhos: vocês não são daqui, quem são, que estão aqui a fazer?
Meses mais tarde, feitas as respectivas apresentações, esclarecidos os objectivos e garantido que o problema era de homens contra homens, e que não éramos portadores de serras ou mota-serras que destruíssem a floresta, fomos acolhidos em igualdade de condições tendo apenas em nosso desfavor a ignorância que não nos permitia defender tão bem do feijão-macaco como aqueles que, conhecendo-o de ginjeira, conseguiam passar-lhe ao lado sem lhe tocarem.
Mas quanto ao resto, lá estava ela, a floresta, feita mãe protectora, sempre disponível, abrigando-nos, escondendo-nos dos olhares indiscretos porque debaixo do seu manto protector ninguém encontra ninguém a não ser por casualidade e nos caminhos de “pé-posto”; ou então nos imaginários relatórios de uma guerra ficcionada na mente de um alferes que pensa mas não diz que aqueles sítios não são para guerras.
Mas nos primeiros dias foi assustador porque naquele cenário verde, milhões de olhos nos olhavam enquanto aos solavancos, em cima dos Unimogues, progredíamos nas picadas à estonteante velocidade de 10 km/H, perguntando cada um a si próprio qual seria o primeiro a cair trespassado por um daqueles olhares.
Oh, meu Alferes, eu tive tanto medo que nem a cabeça de um alfinete me cabia no cu! E assim ficou, até ao fim da Comissão, “o cu de alfinete”… mas que dias tão pouco gloriosos…mas tão profundamente humanos!
Depois, mais tarde, nas "terras do fim do mundo", lá na fronteira, nas margens do Zambeze, com as suas praias de areias cantantes, sem guerras, convivendo com as populações, os simpáticos Luenas, que durante quinze meses nos acolheram com toda a naturalidade, convidando-nos para os seus batuques de fim-de-semana como nós, de certo, também os teríamos convidado para os bailes nas nossas aldeias.
É impressionante como as pessoas simples do povo são tão parecidas em qualquer parte do mundo, no essencial ficando as diferenças apenas para o que é circunstancial: o acordeonista afina o acordeão de uma maneira, o tocador do tambor com o calor de um molho de capim a arder e a música tem mais ritmo e menos melodia, apela mais aos sentidos e à sensualidade, a outra ao sentimento até porque as mães vigiavam atentamente as raparigas casadoiras.
Nos bailes predomina o ambiente dos desejos contidos, no batuque a liberdade dos desejos. Entre os Luenas o amor não é pecado porque não pode ser pecado o que é da natureza. Nos bailes, a natureza é a mesma, o sangue fervilha da mesma forma, com a mesma intensidade mas no entanto o amor, fora do sagrado sacramento do casamento, era pecado.
Por isso os frequentadores dos bailes são “civilizados”, os dos batuques são “selvagens”:
- Para uns, o entendimento é que a natureza não pode ser deixada entregue a si própria porque ser-se civilizado é obedecer a um estrito código de comportamentos em que imperam as proibições que testam as nossas almas, que orientam as nossas vidas e que, finalmente, nos devem conduzir ao descanso eterno;
-Para os outros a natureza é o que é, vivendo em comunhão com ela, contrariá-la não faz sentido. Se uma pessoa é adulta e livre é senhora dos actos que têm a ver consigo própria, se assumiu compromissos deve respeitá-los e se alguém se serve, ainda que com consentimento, de quem tem um compromisso deve indemnizar o legítimo possuidor do direito e tudo regressa ao normal.
As verdadeiras proibições têm a ver com tudo aquilo que pode pôr em risco as vidas como, por exemplo, aproximarem-se das margens de um rio sem acautelarem a presença de um furtivo crocodilo, não que o crocodilo seja mau, apenas que é da sua natureza poderem comer pessoas descuidadas que não respeitam os locais onde vivem os crocodilos.
A natureza é sábia e foi ela que “produziu” o homem depois de muitas tentativas condenadas ao fracasso. Finalmente, lá conseguimos emergir da noite dos tempos depois de milhões de anos sem conseguirmos mais do que uma simples ferramenta de pedra usada até à exaustão em locais próximos e idênticos àquele onde eu me encontrava.
Tão frágeis e indefesos que éramos a nossa sobrevivência tinha a ver com a cooperação do grupo e a vida deveria ser de um sobressalto permanente perante o risco que representavam as feras, especialmente o tigre Dentes de Sabre, nosso predador por excelência.
Tive a percepção de uma situação dessas quando, um dia, em pé, sobre o capô do jeep, com o motor desligado, perscrutava o horizonte.
Era uma planície a perder de vista, polvilhada por árvores esparsas, o cenário por onde os nossos antepassados poderiam ter andado, ninguém falava e o vento por entre o capim que não era muito alto, produzia um som de uma grande suavidade, como um murmúrio.
De repente, senti um medo ancestral que me subiu pela coluna até à base do crânio: estava perdido, não via os meus companheiros, encontrava-me à mercê dos predadores….
Ainda hoje, passados já mais de 40 anos, guardo essa estranha sensação.
Não sei quanto tempo durou, breves instantes com certeza, saltei para o chão, sentei-me ao volante e pus rapidamente o motor a trabalhar e só então recobrei totalmente daquela viagem relâmpago ao nosso passado mais remoto. Foi muito bom ter voltado a ouvir o som do motor do Jeep Willis.
Não contei esta estranha experiência a ninguém durante muitos anos, exactamente porque ela era muito estranha mas dela ficaram-me alguns sentimentos:
- de admiração e reconhecimento pelos nossos antepassados que em condições tão adversas me permitiram estar ali depois de tantos e tantos anos de uma lenta, dolorosa e periclitante evolução;
- e o ter sentido, como hoje está provado cientificamente, que aquela foi mesmo a nossa terra de origem.
Mas pensar a África hoje é interrogarmo-nos como foi possível um tão grande retrocesso nas condições de vida dos seus habitantes desde que, progressivamente, ao longo dos últimos cinquenta anos, a condução política de todos os seus territórios passou para representantes legítimos das suas populações.
À laia de exemplo:
-De acordo com as Nações Unidas, até há bem pouco tempo 2/3 da população da Zâmbia estava na miséria;
-Angola é um dos 5 países mais corruptos do mundo;
-O Zimbabué, que já foi o celeiro da sub-região em que se insere, está mergulhado na miséria ao ponto do seu Presidente Mugabe ter, recentemente, mandado abater os animais de uma reserva eco-turística como solução imediata para matar a fome à população;
Terá sido esta a herança que os europeus lá deixaram?
Para terminar, falemos de Moçambique pela voz de Mia Couto, que começa por afirmar que “até aqui a independência não passou da liberdade de escolher outras dependências” e dirigindo-se à consciência de todos os moçambicanos, que bem poderiam ser todos os cidadãos da África sub-sariana, fala dos "sete sapatos" que é preciso descalçar:
- a ideia de que os culpados são sempre os outros;
-a ideia de que o sucesso não nasce do trabalho;
-a ideia de que quem critica é um inimigo;
-a ideia de que mudar as palavras muda a realidade;
-a vergonha de ser pobre e o culto das aparências;
-a passividade perante as injustiças;
-a ideia de que para sermos modernos temos que imitar os outros;
Por aquilo que se vê os 7 sapatos de Mia Couto bem se podem transformar nos 12 trabalhos de Hércules da mitologia greco-romana, com a diferença de que os moçambicanos não são deuses, não se podem socorrer de truques e malabarismos próprios dos deuses e, por isso, o que se lhes pede parecendo mais simples talvez seja mais difícil.
Geograficamente, os moçambicanos estão em cima do Vale do Rift que há milhões de anos atrás foi o berço dos nossos antepassados mais remotos. Um deles transformou-se naquilo que somos hoje, será que os moçambicanos se conseguem transformar, mesmo que não seja completamente, naquilo que o Mia Couto pretende?
- Desejamos sinceramente que sim.
PS:
África - O Continente do Meu Fascínio:
Não mais voltarei ao continente do meu fascínio. Depois de paisagens impressionantes com cidades lindas e alindadas com gente humilhada lá dentro, não arrisco ver fome, miséria e degradação. Conheci Angola e Moçambique, Zâmbia e o Zimbabué, os dois primeiros diferentes dos outros dois.
Recuperada a paz há sinais evidentes de inversão do ciclo negativo em Angola e Moçambique, nos dois restantes não me parece. As próximas duas ou três gerações irão ser decisivas, a história das sociedades mostra que nada é definitivamente mau, mas interrogo-me perante a riqueza da biodiversidade, será que vai ser possível conciliá-la?
Haverá forças e inteligência suficientes para perceber que sem preservar essa riqueza o desenvolvimento será impossível e que o simples crescimento redundará num inevitável empobrecimento a longo prazo para a África e para o mundo?