sábado, janeiro 03, 2009

Whitney Houston



GAL COSTA E TIM MAIA - Dia de Domingo



SONHOS - Jane Duboe




O Discurso de Fim da Ano do Sr. Presidente da República




O Presidente da República fez o discurso que eu esperava que fizesse: deu palavras de esperança, solidarizou-se com as pessoas que se encontram em piores condições e maiores dificuldades, reafirmou a crise com que nos estamos a debater e que se vai agravar no próximo ano com maior risco de desemprego, de pobreza, exclusão social e falou da verdade…da necessidade de falar verdade.

Depois, referiu-se à dívida, à enorme dívida que temos para com o estrangeiro, ao facto de continuarmos a gastar em cada ano muito mais do que aquilo que produzimos, (penso ter sido também assim nos vários anos em que foi 1º Ministro, época de “vacas gordas” com os dinheiros da CEE, muito dele esbanjado pelos portugueses que não estavam preparados para “digerirem” correctamente somas tão avultadas).

E falou também, que quando a capacidade de endividamento se esgotar resta-nos “vender os bens e as empresas nacionais ao estrangeiro”…suprema humilhação, ao fim de mais de oito séculos de história acabamos entregues aos credores!

Finalmente, segundo lhe parece, ainda há um caminho para Portugal sair da quase estagnação, um caminho estreito, é certo, mas que existe e para o qual ele tem vindo insistentemente a chamar a atenção mas, pelos vistos, os políticos, vendedores de ilusões, preocupados em brigas internas e uns com os outros, não lhe têm dado ouvidos.

Acreditemos num futuro melhor e para todos… BOM ANO DE 2009, desejou o Sr. Presidente.

O Presidente da República é só um homem e como se sabe, não é uma pessoa entusiasmante, não empolga, não mobiliza, de resto, a ter podido fazer alguma coisa de verdade, foi há uns anos atrás, também ele, tal como Sócrates, a governar o país com maioria na Assembleia.

Mas o problema não está nele, está em todos nós e muito em especial nas elites deste país a quem falta competência, seriedade, determinação e a força necessária, e já vimos que as maiorias absolutas não são suficientes porque, mais poderosas que elas, são os interesses há muito instalados e os privilégios que se tornaram moedas de troca.

Reformas importantes da Administração Pública? Impossível, só por cima dos cadáveres dos senhores dos Sindicatos apoiados pelo PCP.

Não vale a pena, viu-se com o anterior Ministro da Saúde:

- O povinho, grandes manifestações orquestradas com as televisões para a abertura dos Telejornais, as mulheres à frente a protestarem, o Louça ou o Jerónimo a darem uma ajuda, o ministro a explicar, inutilmente, que a medida era necessária, tinha a ver com a reorganização dos serviços para optimizarem recursos humanos e tecnológicos…que não senhor, eles, que são dali daquela terra é que sabem o que é bom para eles e não o ministro que tem de governar todo o país.

Resultado? – Ministro para a rua!

- Que não há dinheiro? – Mas quem acredita nisso? Quanto gastavam as pessoas que geriram a Gebalis, empresa responsável pela gestão dos bairros camarários de Lisboa, só em almoços, prendas e viagens?

- Quanto ganham os administradores das empresas públicas?

- Quanto levam para casa os administradores dos bancos?

- Como é possível administradores reformarem-se por motivos de saúde de um banco e com as reformas no bolso irem gerir outros bancos, acumulando pensões, ordenados e tudo o mais, confessando-se depois os responsáveis por estas situações… “muito incomodados”(coitadinhos, como os lamento!).


Senhor Presidente da República, pela parte que me toca, agradeço-lhe os votos para um Bom Ano de 2009 mas, com toda a verdade também lhe digo, que as suas palavras não vão contribuir para alterar nada, tal como todos os anteriores discursos de fim de ano.
Seremos vítimas daquilo que tiver que ser!

Somos assim… egoístas, cada um por si e para si, muitos, mesmo sem escrúpulos e vergonha nenhuma, indisciplinados, em suma, ingovernáveis… até quando?

BOM ANO também para si, Senhor Presidente!


Tieta do Agreste
EPISÓDIO Nº 8


ONDE RICARDO, SOBRINHO E SEMINARISTA, ACENDE VELAS CONTRADITÓRIAS AOS PÉS DOS SANTOS; CAPÍTULO BANHADO EM LÁGRIMAS, ALGUMAS DE CROCODILO



- Então? Cadê? – interroga Perpétua e ela própria responde vitoriosa, aflita vitória: - Carta e cheque, babau, minha miss Baía! – derrama sobre a irmã o fel a lhe amargar a boca: - Se eu fosse Astério, você não saía para a rua nesses trajes indecentes, de peitos de fora. Mas agora tudo vai acabar. Vai começar o tempo da pobreza.

Eliza deixa-se cair na cadeira, cobre o rosto com as mãos, não retruca: poderia lembrar que, na hora da divisão dos presentes, Perpétua não critica os vestidos, trata de empalmar os mais finos e ousados para vendê-los a bom preço em Aracajú, a senhoras ricas. Cala-se, porém; gostaria, isso sim, de tapar os ouvidos para não escutar; a voz avinagrada da irmã torna as palavras mais cruéis.

Antes Elisa passara na loja, naquela hora já repleta, Osnar escornado na cadeira. Trocara apenas um olhar com o marido, suficiente para Astério largar o metro e a peça de madrasto. Osnar pusera-se de pé: bom dia, dona Elisa. Bom dia, patroa – Sabino brechou rápido do decote no alto às ancas em baixo, salve, salve quem inventou estes vestidos justos, colados ao corpo, marcando até as pregas da bunda, moda mais jeitosa. Um felizardo, o patrão.

- Três metros… - reclamou a freguesa a reparar também na elegância de Elisa, aquilo sim era fazenda.

Astério voltara a medir, mal sustendo metro e tesoura.

- Vou até casa de Perpétua, daqui a pouco mando Araci com a marmita – avisara, despedindo-se: - Até lá seu Osnar, esteja a gosto.

Durante o percurso, não pudera impedir as lágrimas. Cada palavra, na loja, custara-lhe esforço e contenção. Agora, arreia na cadeira sob a voz de Perpétua a criticar-lhe o decote como se não bastassem as mãos vazias de carta e cheque.

- Bateu a caçoleta, eu disse. Tu ainda duvida? – além da voz sibilante, o dedo em riste.

Elisa descobre a face, balança a cabeça, vencida, as lágrimas escorrem.

Lágrimas, de que adiantam? Não resolvem nenhum problema, não substituem o cheque, não ressuscitam a morta, não determinam as medidas a tomar. Perpétua, no entanto, conhece e respeita as conveniências, exigente nas formalidades. Do bolso da saia negra retira o lenço e com ele toca o canto dos olhos – nem por invisíveis deixam de ser lágrimas de luto. Coloca um acento de dor na rispidez da voz, ao gritar pelo filho mais velho:

- Cardo! Vem aqui, depressa! Ai, meu Deus!

Leva o lenço novamente aos olhos, Elisa deve ver, testemunhar o sentimento a afligi-la quando a hipótese se confirma e a morte de Antonieta já não admite controvérsia. Deus a tenha em sua guarda e lhe perdoe os pecados; a assistência ao pai e às irmãs há de contar a seu favor na hora do juízo final.

Surge correndo um rapagão suado, os pés descalços. Forte, alto, bonito, dezassete anos desabrochando em espinhas no rosto. Sobre o lábio risonho, a sombra de buço. Vestido apenas um calção – estava chutando bola no quintal.

- Tá me chamando, mãe? – ao notar Elisa, acrescenta: - Bênção, tia.

Respira saúde e satisfação, não percebe de imediato a atmosfera fúnebre da sala. Pela terceira vez, ante a presença do filho, Perpétua enxuga lágrimas escassas mas finalmente visíveis. O adolescente dá-se conta, põe-se sério:

- Aconteceu alguma coisa ao avô? De manhã cedinho, quando foi ajudar a missa, vi ele na feira fazendo compras…

Perpétua ordena:

- Vá buscar uma vela benta, acenda no oratório. Tua tia Antonieta, coitada…

- Tia Tieta? Morreu?

Vencida, sim, convencida, não, Elisa levanta a cabeça, rebela-se:

- Ainda não se sabe de nada certo…de nada!

Perpétua nem responde, reafirma a ordem:

- Faça o que estou mandando, sei o que digo: uma vela nos pés de Nosso Senhor Jesus Cristo pela alma de Antonieta. Em seguida, tome banho, vista a batina, por hoje o recreio terminou. Cadé Peto?

- Foi pescar no rio…

- Diga a ele para vir para casa. Depois do almoço vamos falar com o padre Mariano. – Um suspiro, a mão sobre o peito, a conter certamente o coração.

Atónito, Ricardo, sem palavras, preso à sala pela notícia. Volta-se para Elisa. Os ombros curvos acentuam o decote no colo moreno. Apesar das críticas constantes da mãe, o moço jamais reparara na elegância da tia. Pela primeira vez dá-se conta de como ela veste bem e se enfeita; parece uma santa, ali desamparada na cadeira, sofrida, a recusar a morte da irmã, lutando contra a evidência reflectida na fisionomia e nos gestos da mãe. Na voz da tia, abafada de choro, um pedido, uma súplica:

- Vamos esperar ter certeza para falar nisso com o Reverendo… por que tanta pressa?

(continua)

sexta-feira, janeiro 02, 2009

Os Filmes de Cow-Boys da Minha Juventude



Tieta do Agreste
EPISÓDIO Nº 7


ONDE SE TRAVA CONHECIMENTO COM DONA CARMOSINA, CIDADÃ IMPORTANTE, AGENTE DOS CORREIOS, E SE TEM NOTÍCIA DOS FILHOS DE SEU EDMUNDO PACHECO, COLETOR, COMPENSANDO A FALTA DE CARTA E CHEQUE DE TIETA SOBRE CUJO ESTADO DE SAÚDE CRESCE O PESSIMISMO.



Ainda de longe, antes de transpor a porta dos Correios, Elisa lê, na atitude de Dona Carmosina, a comprovação do que já sabia com certeza: a carta não chegara. Braços caídos, semicerrados os olhos miúdos, o ar grave, a activa funcionária vive, ela também, o drama do inexplicável atraso. Faz-se mais pálida a face de Elisa, os pés de chumbo, a voz inarticulada, quase um gemido:

- Nada?

Cinquentona, sarará, corpulenta, cara larga, a voz rouca, dona Carmosina indica a correspondência do dia, escassa, espalhada no balcão:

- Nada! Hoje não veio nenhuma carta registada. Por via das dúvidas, passei as malas duas vezes, carta por carta. O que chegou está aí, pouca coisa. Ainda não entreguei nada, você é a primeira a aparecer. Vieram jornais e revistas, isso sim, hoje é sábado. – Repara na palidez da amiga: - Quer um pouco de água?

- Não, obrigado. – As palavras saem estranguladas.

- Que demora, hein? Em todos estes anos, nunca atrasou tanto…

- Mais de dez anos… - gemeu Elisa.

- Onze anos e sete meses – corrigiu dona Carmosina, escrupulosa nos detalhes: - Inda me lembro da primeira carta, como se fosse hoje. Quando abri o saco, senti logo o cheiro, naquele tempo ela usava um perfume mais forte do que o de agora, encheu a sala. Que carta será essa? Perguntei a mim mesma e li correndo o subscrito e o nome do remetente. Estava dirigida a seu pai ou a qualquer membro da família Esteves e quem enviava era Antonieta Esteves, Caixa Postal 6211, São Paulo, Capital. Vou buscar água para lhe dar, com esse calorão e nada de carta, coitadinha…

Enquanto de costas, dona Carmosina toma da moringa e enche o copo, Elisa curva-se sobre a correspondência, não por manter esperanças, mas por desencargo de consciência.

- Botei duas gotas de água de flor. Faz bem prós nervos.

Elisa bebe em pequenos goles, dona Carmosina retoma a narrativa:

- O envelope cor-de-rosa, lindo, parece que estou vendo. Pelo falecido seu Lima mandei recado para seu marido na loja, vocês estavam casadinhos de novo. Ele veio com Osnar, entreguei, leu aqui mesmo. Carta mais bonita, pedindo notícias, do pai, das irmãs, como iam de saúde e de vida, se precisavam de ajuda. Até colaborei na resposta, se lembra?

- Me lembro…o major era vivo, foi ele quem escreveu…

- Era burro que nem uma porta mas tinha a letra bonita… Letra dele, redacção minha De lá para cá nunca mais falhou. Todo o mês a carta com o cheque, o rico dinheirinho…

Empolgada, dona Carmosina nem sente o mormaço a entrar pelas duas portas asfixiante. Pensativa a olhar para Elisa:

- Nunca demorou desse jeito… esquisito mesmo.

Elisa percebe, na voz da amiga, inquietante sinal de alarme. Tenta acalmá-la e acalmar-se:

- Uma vez quando ela estava passeando em Buenos Aires…

- Chegou no dia dezassete…dezassete de Fevereiro, exactamente. Hoje estamos a vinte e oito de Novembro. A que você atribui? Doença? – Os olhos pequeninos de dona Carmosina observam Elisa que segura o copo vazio sem receber resposta, o choro preso na garganta.

Felizmente apareceu seu Edmundo, Edmundo Ribeiro, o coletor, enfarpelado, paletó, gravata e chapéu, deseja boa-tarde:

- Alguma coisa para mim Carmosina?

- Duas cartas, uma do filho, outra do genro… - ri com os lábios descorados, divertida: - Aposto que os dois estão pedindo dinheiro…

O coletor recolhe as cartas, olha através dos envelopes contra a luz, que pode impedir que dona Carmosina saiba e comente a visa alheia, não passam por suas mãos (e vistas) telegramas e cartas? Carmosina, quase albina, mais que ladina, voz masculina, língua ferina, doce assassina – declamava Aminthas, seu primo segundo e comensal assíduo. Dona Carmosina é de bom tempero, famosa no pirão de leite e no molho pardo. E o cuscuz de milho?

- Como se eu fosse um saco sem fundo, entupido de dinheiro… - seu Edmundo suspira, sem pressa de abrir os envelopes apesar do desejo de saber dos filhos, Dirige-se a Elisa: - Feliz é Zé Esteves, seu pai, dona Elisa. Tem filha rica que manda em vez de pedir. Comigo é o contrário…

Dona Carmosina relanceia a vista, considera Elisa, informa:

- Este mês a carta de Tieta ainda não chegou. Esquisito, não acha seu Edmundo? Um atraso desses…

O coletor não esconde a surpresa, um dos envelopes aberto:

- Ainda não? Que é que houve dona Elisa?

- Quem sabe seu Edmundo? Para mim ela está viajando, esses passeios que faz todos os anos de navio…

- Cruzeiros marítimos… - esclarece dona Carmosina mas o olhar sob as sobrancelhas ruças exprime dúvida. Seu Edmundo balança a cabeça, não encontra comentário a fazer, retorna à cata do genro.

- Elisa despede-se, uma fraqueza nas pernas que nem Astério:

- Obrigada, Carmosina.

- Agora, querida, só terça-feira. – Para levantar-lhe o ânimo, não deixá-la partir tão por baixo, acrescenta: - Você hoje está uma tetéia. Esse vestido eu ainda não conhecia…

- Foi Tieta que mandou…

Seu Edmundo suspende a leitura da carta, escapa-lhe o desgosto da notícia:

- Suzana está esperando menino outra vez…

Elisa reúne forças:

- Parabéns, seu Edmundo. Quando escrever a Suzi mande um abraço meu…

- O quarto, não é? O senhor ainda tão moço e já cheio de netos. Bonito, acho isso bonito. – A voz rouca de dona Carmosina, sincera ou gozadora?

- Bonito, eu é que sei quanto me custa…falta de juízo.

- Que é caro, lá isso é…Logo agora tão fácil de evitar, com a pílula. Na Baía, se encontra em qualquer farmácia, a venda é livre…até a Igreja já aprova o uso – acentua dona Carmosina,
doce assassina.

Elisa diz até breve, atravessa a feira barulhenta, em direcção à casa de Perpétua. Não sente o peso do olhar do árabe, não lhe alisa a bunda a mirada de nenhum moleque nem lhe fere o ouvido a assobio do mendigo. Doença, insinuara Carmosina, para não falar no pior. Morta sim, Elisa já não duvida, Perpétua sabe o que diz.

Há vinte e três anos na agência dos Correios, dona Carmosina emite julgamentos definitivos sobre pessoas e factos:

- Moça boa e séria está aí, seu Edmundo. Conheço Elisa de menina, sempre direita, cumpridora. Faz tudo no capricho. Trabalhadeira, a casa dela é um brinco e gosta de se vestir, de se arrumar, não é como outras por aí, que vivem no desmazelo. Só que agora, pobrezinha…

Seu Edmundo, para melhor ouvir, interrompe a leitura da carta do filho estudante:

- A que atribui tanta demora?

- Se Tieta não morreu deve estar muito doente. O marido dela bem podia dar notícia mas ele nunca quis conversa com os parentes daqui. Vou aconselhar Elisa ou Perpétua a telegrafar.

De volta à carta o coletor explica:

- Idiota! Só serve para isso…

- O que é que Leléu fez dessa vez, seu Edmundo?

- Pegou numa carga de gonorreia; desculpe, Carmosina, quero dizer blenorragia, e pede dinheiro urgente para médico e remédios…

- Com duas doses de penicilina fica bom. É tiro e queda. Tratamento barato nem precisa de médico.

Dona Carmosina lê os jornais antes de entregá-los, sabe do que vai pelo mundo, entende de cinema, política, ciência. Acumula o cargo nos Correios com a representação de A Tarde, da Baía, de revistas do Rio e de São Paulo.

- Coitada da Elisa, ficou tão transtornada, nem levou as revistas. Depois deixo em casa dela

Separa a carta endereçada a Ascânio Trindade pois o vê do outro lado da rua; carta de Máximo Lira, um amigo da capital, sem interesse. Antigamente, sim, tão romântico: Quando Astrud escrevia cartas de amor e Ascânio em resposta enchia laudas de juras e saudades. Um poeta, Ascânio, pena não escreva versos, seriam lindos. Retorna dona Carmosina ao silêncio de Tieta.

- Quer saber minha opinião, seu Edmundo? Antonieta já não pertence a este mundo. Mortinha da silva.

(continua)

Dean Martin - Rio Bravo




Os senhores da iurd





Os senhores da iurd (igreja universal do reino de deus) são como os abutres que cheiram a quilómetros os animais mortos e de acordo com a sua estratégia começam por sobrevoar os céus antes de pousar nas árvores próximas e aguardarem aí o momento propício para atacar as carcaças.

Os abutres, no entanto, desempenham um papel muito útil na natureza livrando-a de restos de animais que os restantes predadores desprezaram ou mesmo antecipando-se a eles, são os chamados necrófagos.

Ao contrário, os senhores da iurd, não se interessam por cadáveres, apenas por pessoas no estertor dos problemas, da dor, das dificuldades, frágeis e fragilizadas, carentes de uma mão amiga, de uma palavra de carinho, de estímulo.

Atentos a estas situações, os seus dirigentes apresentaram agora na Banca um pedido de financiamento de não sei quantos milhões para construírem uma sede na cidade do Porto que, segundo as suas previsões, estará paga nos próximos 15 anos.

Estas previsões optimistas baseiam-se em perspectivas relacionadas com a crise que esperam, venha a abater-se sobre as pessoas.

“Dê até doer”… é a palavra de ordem dos mensageiros do além, espécie de cobradores de deus, para os quais haverá sempre, lá ao canto da gaveta, um dinheirinho para entregar, um anel para penhorar, ou uma necessidade que pode ficar por satisfazer.

Em troca, vendem ilusões, um discurso que foi estudado, ensaiado, experimentado e comprovado…nunca falha.

As suas fortunas crescem por todo o lado impunemente, com a cobertura da lei, no silêncio das autoridades, no receio da Igreja de Roma que se vê de mãos atadas perante estes assaltos às ovelhas do seu rebanho.

Infelizmente, bem vistas as coisas, o negócio é o mesmo. Um começou há 2.000 anos, o outro, há meia dúzia deles.

E as receitas “deslumbrantes”do santuário de Fátima e de todos os outros santuários, e as dádivas, as bulas, as heranças, tudo o resto?

Ah!, mas aqui temos a meritória acção social da Igreja católica junto da sociedade no apoio aos mais carecidos…pois temos, a igreja de Roma refinou-se, atenta a uma sociedade cada mais crítica e atenta, mas o fenómeno da exploração da crença é o mesmo e por isso ela está de “mãos atadas” perante os senhores da iurd que, tal como os padres, dizem também falar em nome de deus, o mesmo deus pelo qual as pessoas se matam hoje, na Faixa de Gaza, no Iraque, no Paquistão, no Afeganistão, na Índia, tal como sempre se mataram ao longo dos tempos por causa de um deus qualquer.

O problema mergulha na noite dos tempos, no dealbar da humanidade, quando a sobrevivência da nossa espécie constituía um duro “osso de resolver”.

Frágeis à nascença, um longo período de dependência dos progenitores e perigos, muitos perigos a rodeá-los por todo o lado e nós sabemos bem como os miúdos são traquinas, curiosos, irrequietos…

E os pais, olhando para eles de dedo em riste diziam:

- “o menino não vai para o rio porque está lá um crocodilo e come-o; o menino não vai para trás daquela rocha porque está lá um precipício por onde pode cair”.

Havia, então, dois tipos de meninos: os que acreditavam no que os pais lhes diziam e não iam para o rio ou para junto do precipício e ficavam, por isso, com maiores probabilidades de sobreviverem e terem filhos, que também como eles, acreditariam no que lhes dissessem, e os outros, que não acreditaram e por isso não tiveram tantas probabilidades de sobreviver e terem filhos, como eles, não crentes.

E isto foi assim, geração após geração, dezenas de milhar de anos, atrás de dezenas de milhar de anos, por um processo de selecção natural, igual a tantos outros, que se criou no nosso cérebro um espaço para acreditarmos, como também se criou um espaço para nos apaixonarmos, tudo em nome da sobrevivência.

Mas esse espaço do nosso cérebro que nos “manda” acreditar, sim, “manda”, porque não é pelos bonitos olhos dos padres ou dos senhores da iurd que as pessoas acorrem a prostrarem-se aos seus pés e a darem-lhes dinheiro, por muita habilidade que eles tenham em sacá-lo e têm-na, sem dúvida.

O mecanismo da fé é cego, manda acreditar mas não diz em quê e por isso, quando os nossos antepassados selvagens disseram aos meninos que se eles cortassem o pescoço à cabra a próxima caçada seria um êxito, eles “não viram” nenhuma razão para não acreditarem como já tinham acreditado, e acertadamente, no perigo do crocodilo e do precipício.

A exploração do mecanismo da crença é o traço de união de todas as religiões, o chamado ecumenismo que salienta a necessidade de todas as religiões viverem em paz e repartirem entre si o “bolo” comum de acordo com os méritos de cada uma delas.

Como eles dizem: “com nomes diferentes, o Deus é o mesmo” e é precisamente o mesmo!

O mecanismo da crença é muito forte, está ligado a factores ancestrais de sobrevivência e embora a razão, a inteligência e as evidências constituam, igualmente, traços distintivos da nossa espécie, é mais fácil obedecer à crença instintiva do que à força da razão.

Hostilizar os senhores da iurd não é hostilizar as pessoas que são vítimas deles, porque os primeiros estão de má fé, foram industriados, preparados para um negócio de exploração da crença, os segundos são duplamente vítimas, da iurd e da crença com que nasceram e que tendo servido os objectivos da sobrevivência da espécie serviu, igualmente, um sub-produto chamado religião.

Dialogar com paciência, respeito e compreensão por todos os que se sentem ligados a crenças é o ponto de partida… na maioria dos casos elas acompanhá-los-ão até ao fim da vida.

Uma pequena percentagem libertar-se-á delas e os filhos dessas pessoas terão muito mais probabilidades de serem livres para viverem as suas vidas sem condicionantes religiosos.

Livres, para viverem a vida tal como ela é, respeitando a natureza e os outros, praticando com eles, todos eles, cristãos, maometanos, hindus, a amizade, a solidariedade, sem atacar ninguém pela sua forma de pensar e sentir.

Os bons sentimentos não são propriedade de ninguém, desta ou daquela religião, de crentes ou não crentes, simplesmente, e não é pouco, estes últimos estão livres e descomprometidos para os exercerem em melhores condições.

quinta-feira, janeiro 01, 2009

Mulheres - Martinho da Vila



Dulce Pontes - Amor a Portugal




“O Menino Guerreiro Está a Passar Por Aqui”




“A escolha de Pedro Santana Lopes para candidato à Câmara de Lisboa coloca um problema ao eleitorado:

- Qual é o PSD que os portugueses preferem? O PSD populista e demagógico de Luís Filipe Menezes, que aposta em Santana Lopes para cargos importantes, ou o PSD sério e credível de Manuela Ferreira Leite, que aposta em Santana Lopes para cargos importantes?”

Esta é a pergunta que fica para 2009 formulada por Ricardo Araújo Pereira no seu comentário político do último número da Visão do ano que terminou.

Dê a sua própria resposta e veja na Revista aquela que foi dada pelo Ricardo Araújo.


Tieta do Agreste

EPISÓDIO Nº 6



DE ELISA, LINDA DE MORRER, DIANTE DO ESPELHO, E DO MARIDO ASTÉRIO, BOM DE TACO – CAPÍTULO ONDE NADA ACONTECE



Quando no dia seguinte a marinete de Jairo buzinou na curva próxima da cidade, Elisa, sentada à mesa antiga, quem sabe de valor, a servir de penteadeira, terminara de passar batom nos lábios e sorrio para a imagem reflectida no espelho barato pendurado na parede. Achou-se bonita. A negra, bravia cabeleira, agora cuidada, solta sobre os ombros, emoldura-lhe a face pálida, o langor dos olhos, a boca de lábios gulosos, acentuados pelo batom.

Linda de morrer, como diz, ao referir-se a estrelas de rádio, teve, cinema, o admirado locutor Mozart Cooper – pronuncia-se Cu…u…per - , voz de veludo nas ondas hertzianas a embalar os corações solitários. Coração solitário, linda de morrer.

Durante alguns minutos esqueceu-se de tudo quanto a afligia e ensaiou poses e trejeitos, imitados das cenas das fotonovelas: um muxoxo com os lábios, olhar apaixonado, sorriso tentador, a ponta da língua a surgir entre os lábios, vermelha e húmida. Beijar a quem? Num gesto cansado encolheu os ombros, os olhos cobriram-se de sombra. Volta a pensar na carta, busca tranquilizar-se: está chegando na mala do correio, trazida pela marinete, de hoje não passa. E se não chegar?

Na véspera, na mesa do almoço, Astério, comilão e apressado, a boca cheia, mastigando feijão e palavras repetia pergunta e lamúria:

- Porque tanta demora? Logo em Novembro, mês de pouca venda, quase nenhuma. Que diabo pode ter acontecido?

Elisa trancara os lábios, se lançasse a suspeita a queimar o peito o marido entraria em pânico. Esmorecido de natureza, incapaz de esforço e luta, o dia inteiro encostado ao balcão da loja à espera da minguada freguesia, animando-se apenas quando um dos parceiros de bilhar – Seixas, Osnar, Aminthas ou Fidélio – aparece para comentar apostas e jogadas; se Ascânio Trindade treinasse, Astério teria adversário pela frente. Osnar, desocupado, faz ponto na loja, o cigarro de palha pendurado no lábio. Infalível aos sábados, quando o movimento cresce por causa da feira. Após vender a farinha, a carne-de-sol, o feijão, as frutas, o cultivo das roças e o barro cozido em pequenos fornos rudimentares – moringas e quartinhas, cavalos e bois, jagunços e soldados, o padre cura e os noivos de mãos dadas, potes e panelas - , os sitiantes e roceiros enchem a loja a comprar fazendas, sapatos, calças e camisas, quinquilharias, vez por outra um rádio de pilha.

Na moita, equilibrado numa velha cadeira, Osnar espreita as caboclas novas, puxando conversa quando lhe parece valer a pena. Nos sábados, o moleque Sabino ganha cinco cruzeiros para ajudar, atendendo a maioria dos rudes fregueses – cinco cruzeiros e o que rouba no troco.

Se Eliza contasse a conversa com Perpétua, Astério seria capaz de ter um daqueles vexames repetidos a cada aperto maior de dinheiro, a cada problema com os fornecedores; suores frios, fraqueza nas pernas. Tontura, vómitos. Recolhe-se à cama, batendo o queixo, tiritando, a loja entregue a Sabino. Só Osnar consegue levantá-lo, arrastando-o para o bilhar, no Bar dos Açores, de seu Manuel Português.

No bilhar transforma-se, vira outro homem. Ri e graceja, arrota valentia, aposta sem medo, manda desafiar Ascânio, certo da vitória. Bom no taco. No taco do bilhar, somente no bilhar taco de ouro, surpreende-se Elisa a resmungar. Censuráveis resmungos, pensamentos ruins, surgiam assim de repente, perseguiam-na os malditos, cruz credo.

A face pensativa no espelho. Linda de morrer, ali perdida, a envelhecer naquelas ruas paradas, à espera da carta e do cheque. Não fossem o rádio de pilha e as revistas, que seria de Elisa?

Se revelasse a Astério o tema debatido com Perpétua, a probabilidade – para a irmã, a certeza – da morte de Tieta, ele vomitaria o feijão, o arroz, a carne, os pedaços de manga, ali mesmo em cima da mesa do almoço. Tirando o bilhar, um molengas, sem ânimo, sem ambição, sem conversa, sem alegria.

As raras prosas, as poucas risadas provinham ainda do bar, picantes histórias dos parceiros, de Seixas e Aminthas, raramente Fidélio, reservado de natureza e por cálculo, quase sempre Osnar, abastado, obsceno e mulherengo. As histórias de Osnar, entre as quais figura o notável caso da polaca, são de morrer de rir, em geral têm a ver com o descalibrado dos seus órgãos sexuais.

Estrovenga de jumento, afirma Astério, distanciando as mãos para indicar a medida espantosa: daqui para maior.

O cansado motor da electricidade deixa de trabalhar às nove da noite, marcando a hora de dormir, confirmada pelas badaladas do sino da Matriz. Astério conclui a partida, encosta o taco, recolhe ou paga as apostas, toma o caminho de casa. Vez por outra, se Elisa ainda não pegou no sono, Astério, ao despir-se, repete a mesma frase, prólogo do caso a narrar: Acontece cada uma!

Osnar ou Aminthas, Seixas ou Fidélio, fosse qualquer dos quatro o personagem, fosse outra figura da cidade, o enredo era quase sempre escabroso envolvendo mulher e cama – cama ou mato na beira do rio. Elisa ouve em silêncio, tensa, atrevendo-se de raro, a pedir detalhes, tão necessários no entanto à construção do imaginado mundo em que se trancara para subsistir, onde cada elemento importava; a grandeza de Antonieta, o postal de Buenos Aires, o perfume no envelope, as tramas de Seixas, os segredos de Fidélio, as patifarias de Aminthas, a anatomia de Osnar. Durante o dia, o rádio ligado sem parar, Elisa passa e remenda roupa, lava pratos, cozinha, lê e relê revistas, visita dona Carmosina no Correio, suporta, após o jantar, a lengalenga da vizinha, dona Lupicínia, cujo marido se mandara há mais de um lustro para as bandas do sul da Baía e não tinha previsão de regresso, vai ver não volta nunca.

Linda de morrer, só mesmo para morrer, para que outra coisa, qual? A boca ante o espelho abre-se ávida para o beijo. Qual beijo? Elisa levanta-se, ai quem lhe dera possuir um espelho onde pudesse se ver de corpo inteiro! Linda de morrer, no fino da moda.

Afinal, pergunta-se a encolher os ombros novamente, por que gasta esse tempão a pintar-se, em ajeitar a negra cabeleira, em fazer-se tão elegante no vestido restaurado, presente da Tieta como todos que possui, cada qual de melhor fazenda e de padrão mais moderno – usado mas pouco, quase novos.

Para que tanto apuro, tanto cuidado com a maquiagem, para que o decote a mostrar os ombros, o nascer dos seios?

Para atravessar as ruas desertas de passantes, perceber o peso do olhar do árabe Chalita, a bigodaça de sultão, a barba por fazer, eterno palito entre os dentes, dono do cinema Tupy e da sorveteria, velho e descuidado ou sentir sem ver a mirada matreira do moleque Sabino fixo no meneio das ancas da inacessível mulher do patrão, ouvir o pestilento assobio do Bafo-de-Bode, mendigo e bêbado? Tão podre e miserável, pode-se dar a todos os atrevimentos sem temer represálias. Esses três infelizes e acabou-se. Além disso, um boa-tarde dona; um chapéu levantado em muda saudação; a bênção do vigário e a incontida inveja das mulheres: Até parece que se vestiu para um baile, querida

Discreta e comedida, esposa honesta e virtuosa, ao passar Elisa recolhe no decote o cúpido olhar do levantino: ao vê-la certamente recorda tempos de antanho e corpos de mulheres; a cobiça do moleque acentua-lhe o requebro da bunda, assim de noite Sabino sonhará com ela. Não despreza sequer o assobio fétido do esmoler. Quanto à inveja das mulheres, tem igualmente merecimento e sabor, Modesta, Elisa responde: Vestido enviado por minha irmã Tieta, é dela o gosto e a elegância, hei-de botar fora? Louvam então em coro a ausente Antonieta, irmã generosa, filha exemplar, a infalível ajuda mensal, os presentes régios – régios, sim senhora, cada vestido desses vale um dinheirão!

Elisa recomenda à pequena Araci atenção na casa, fecha a porta da rua, dirige-se para o correio. Atravessará a feira, passará pelo árabe, pelo moleque, pelo maluco, pelas comadres no adro da Igreja. O rosto sério, como cumpre a uma senhora casada. O coração apertado, lá dentro a certeza de que a carta não chegou.

quarta-feira, dezembro 31, 2008

A NOSSA MENSAGEM PARA 2009





TIETA DO AGRESTE

EPISÓDIO Nº 5

Praia de Mangue Seco



Pois já lá vai mais de seis meses que ele morreu e até agora o padre não viu a cor do dinheiro. Está depositado na mão do juiz, em Esplanada, porque os parentes botaram questão, com advogado e tudo. Doutor Almiro disse que, pela lei, metade é deles. Daí eu fui perguntando, com não quer nada…

- Tu quer dizer que quando uma pessoa morre, metade do que ela tem fica para parentes?

- É isso mesmo…Perpétua busca no bolso da saia m lenço para enxugar o suor fino na testa com o lenço aparece um terço de contas negras.

- Quer dizer que, se tu morrer, metade do que é teu fica para mim e para o pai…

- Tu não presta atenção no que se fala. Só quando o falecido não tem filhos; é o caso dela mas não o meu. O que eu deixar quando morrer vai ser repartido entre Ricardo e Peto, meus filhos, meus únicos herdeiros. Já foi assim quando o Major morreu – faz o sinal da cruz, eleva os olhos murmurando Deus o tenha em sua glória – a herança foi dividida, metade para mim, metade para os meninos. O doutor Almiro…

- Tu perguntou isso também?

- Sempre vale a pena saber.

- Tu pensa que ela morreu e que o marido não diz nada para ficar com tudo?

- E não pode ser? Porque ela nunca deu o endereço para nós? Mandou a gente escrever para caixa-postal, onde já se viu?
Proibição do marido, para a gente não saber. Você sabe o sobrenome dele? Nem eu. É Comendador para cá, Comendador para lá, e acabou-se, nada de sobrenome. Por quê? Tu não atina nestas coisas mas eu tenho pensado muito nisso e tirei as minhas conclusões.

Também Elisa havia atentado naquelas esquisitices. Em sua opinião, porém, outro era o significado da falta de endereço, de sobrenome, da ausência de maiores detalhes sobre a vida e família: Antonieta perdoara os agravos, não guardara magoa, mas não esquecera o passado, não queria maior aproximação com os parentes, gente mesquinha do interior, não desejava misturá-los a seu mundo maravilhoso. Ajudava pai e irmãs como cumpre às filhas quando em boa situação. Obrigação cumprida, a consciência em paz, ponto final: reserva e distância. Se querem saber, faz ela muito bem! Era isso e nada mais, não passando o resto de invenções da Perpétua, a cachola sempre a pensar malfeitos e desgraças. Se Antonieta decidisse deixar alguma coisa para o pai e as irmãs, após a morte, tomaria as medidas necessárias com antecedência, estaria tudo disposto e estabelecido.

- Não acredito, não. Se ela tivesse morrido, a gente havia de saber.

Termina de botar a mesa, fica parada, o olhar perdido:

- Está viajando, gozando a vida. Toda vez que sai a passeio, a carta atrasa. Atrasa mas chega. Lembra quando foi a Buenos Aires e mandou aquele cartão tão bonito? Vida é a dela: viagens, passeios, festas. Tieta é muito boa de pensar na gente no meio de tanta animação. Se fosse comigo que tivesse acontecido, nunca mais, nunca mais mesmo, eu havia de dar notícias.

Volta a vista para Perpétua, agora a passar as contas do terço:

- Vou dizer uma coisa, acredite se quiser. Mesmo se fosse para herdar o dinheiro todinho, sem ter que dividir com ninguém, nem assim eu desejo a morte dela.

- E quem deseja? – Perpétua suspende a reza, a conta negra entre os dedos:

- Mas senão chegar mais cartas, então é sinal que Antonieta morreu. Aí eu vou mover mundos e fundos até descobrir o marido dela e tomar a minha parte.

- Tu acaba lesa de pensar tanta maluquice. Ela está passeando, se divertindo. Por que agourar criatura tão direita? A carta não passa de amanhã.

- Tomara mesmo. Fui em casa do velho, ele está nos azeites. Sabe o que me perguntou? Se Astério não tinha metido a mão no dinheiro e pago alguma dívida, como fez daquela vez que usou o cheque para resgatar a letra vencida. O velho pensa que a gente vive roubando ele. – Volta a dedilhar o terço, os lábios sem pintura movem-se em silêncio.

Com Perpétua é assim, taco a taco: Elisa fizera referência à intriga que resultara na partida de Antonieta, Perpétua, na volta da conversa, deu o troco, desentocou o malsinado assunto da duplicata, velho de cinco anos. A voz cansada, Elisa revida sem veemência:

- Tu sabe que, se ele não pagasse a letra, a loja ia à falência. Tu sabe, o Pai sabe…

Não cresce o tom de voz, monótono:

- Mas que a gente vive roubando, ah!, isso vive, não adianta tu ficar aí sentada de terço na mão, mastigando padre-nosso com esse ar de santa.

- Nunca toquei num tostão do velho…

- Nem ele ia deixar. É dela que a gente rouba. Para que ela manda o cheque todos o mês?

- Para as despesas do velho.

- E para que mais?

- Para ajudar na educação dos sobrinhos.

- Isso mesmo. Para ajudar na educação dos filhos da gente. O meu não chegou a completar dois anos e eu nunca mais peguei menino. Nunca mais, Deus não quis…

Os olhos vão da sala de jantar para o quarto de dormir, pela porta aberta vê a cama de casal ainda por arrumar. Deus não quis? Nem para isso Astério serve… A voz neutra prossegue:

- E tu? Será que tu mandou dizer a Tieta que Peto está no Grupo Escolar, não paga nem um vintém? Que padre Mariano arranjou com o Bispo o seminário de graça para cardo? Eu sei o que tu mandou dizer: o preço da Escola da Dona Carlota, a mensalidade do seminário. Isso, sim, tu mandou dizer, pró resto boca trancada. Por que tu puxa de novo essa história da letra que Astério resgatou se cada um de nós tem seus podres?

- Foi o velho que falou, só repeti o que ele disse.

- Um dia eu ainda tomo coragem, escrevo a ela contando a verdade: que não tenho mais filho nenhum, o que tinha a doença levou mas que a gente precisa tanto do dinheiro que ela manda, mas tanto a ponto de me ter faltado forças para comunicar a morte de Toninho. Era capaz de ela ficar com pena e mandar até mais do que manda. Só que não tenho coragem de arriscar…Por que a gente é assim, Perpétua? Por que a gente não presta? É por isso que ela não quer aproximação, não manda endereço, ajuda de longe.

A voz se faz pesada, áspera, quase desagradável como a de Perpétua:

- E ela age muito bem porque se eu tivesse o endereço…

Os olhos fitam o vazio:

- Ah!, se eu soubesse o endereço já tinha arribado para lá!

Perpétua chega ao fim do terço, beija a pequena cruz:

- Tem hora que tu nem prece mulher feita e casada, fala o que não deve. O que tu precisa é ir ajudar na igreja em vez de ficar lendo revista e ouvindo rádio, gastando o tempo com essas porcarias.

Elisa deixa cair os braços, a voz novamente neutra:

- Amanhã, logo que a marinete chegue, passo no correio. Vem amanhã tu vai ver.

- Deus te ouça. Com a desculpa da doença, Lula Pedreiro há três meses não paga aluguel. Agora mandou a chave, foi morar com o filho, deixou a casa imunda, um chiqueiro. Para alugar vou ter que dar pelo menos uma demão de cal.

- Tu te queixa sem razão. Mora em casa própria e ainda tem mais duas para alugar, fora a pensão do falecido. A gente, senão fosse pelo dinheiro que ela manda pró anjinho, nem numa sessão de cinema podia ir.

- Amanhã, me avisa logo se chegou ou não. Se não chegar, vou tomar minhas previdências.

- Por que não fica para almoçar? O que dá para dois dá para três.

- Eu? Comer carne em dia de sexta – feira? Tu bem sabe que é pecado. É por isso que vocês não vão para a frente. Não cumprem a lei de Deus.

Ergue-se da cadeira, guarda o terço no bolso da saia. Toda em negro, a blusa de mangas compridas, sem decote, fechada no pescoço, o coque alto, coberto pela mantilha, o rosto severo, virtuosa e devota viúva. Benze-se ao ouvir o sino da Matriz nas badaladas do meio – dia, encaminha-se para porta. Na rua deserta, ressoam os passos de Astério. O mormaço sobe do chão, desce do céu.

Elisa suspira, dirige-se para a cozinha.
(continua)

Lágrima - Dulce Pontes



Rain Drops Keep





A Mãe de Todas as Burcas


Estes olhos verdes deram a volta ao mundo na capa de uma das revistas da National Geographic.

Olhos profundos, exóticos, acusadores, há muito escondidos atrás das grades de uma burca.


Um dos espectáculos mais tristes que se pode ver nas ruas, hoje em dia, é a imagem de uma mulher coberta da cabeça aos pés por um trajo preto, sem graça, perscrutando o mundo através de uma minúscula abertura.

A burca não é apenas um instrumento de opressão das mulheres e de repressão enclausurante da sua liberdade e beleza; é também símbolo da gritante crueldade masculina e de uma submissão feminina tragicamente imposta pela intimidação.

Vem a propósito destes Olhos Verdes e especialmente das Burcas, o texto que passo a trascrever do livro "A Desilusão de Deus" de Richard Dawkins, a que ele próprio deu o título, A MÃE DE TODAS AS BURCAS, já em tempos apresentado neste Blog, mas que se justifica pelo seu interesse pedagógico:

- "Quero aqui usar a fenda do estreito véu como símbolo de uma outra coisa. Os nossos olhos vêem o mundo, também, através de uma estreita fenda no espectro electromagnético.

A luz visível não é mais do que um raio brilhante na vastidão negra do espectro, que vai desde as ondas de rádio, na sua extremidade mais distante, até aos raios gama, na parte mais curta.

Não é fácil conceber quão estreita é essa fenda e tentar transmiti-lo constitui um verdadeiro desafio.

Imagine-se uma gigantesca burca preta com uma fenda para os olhos da largura aproximadamente igual ao seu tamanho normal, ou seja, de 2,5 centímetros. Se a extensão do tecido preto acima da fenda representar a parte do espectro invisível correspondente às ondas mais curtas e a extensão do tecido preto abaixo da fenda representar o segmento das ondas longas de que comprimento teria de ser a burca para comportar uma fenda de 2,5 centímetros à mesma escala?

As dimensões com que estamos a lidar são de uma ordem tão vasta que é difícil representá-las razoavelmente sem recorrer a escalas logarítmicas. Por isso, garanto apenas, que seria a mãe de todas as burcas.

A janela de 2,5 centímetros de luz visível é ridiculamente pequena comparada com os quilómetros e quilómetros de tecido preto necessários para representar a parte invisível do espectro desde as ondas de rádio, na bainha da saia até aos raios gama no alto da cabeça.

Aquilo que a Ciência faz por nós é alargar a janela e esta abre-se de tal forma que a aprisionadora peça de vestuário preta quase desaparece por completo, expondo os nossos sentidos a uma liberdade arejada e revigorante.

Os telescópios ópticos usam espelhos e lentes de vidro para examinar os céus e o que vêem é a cintilação de estrelas situadas na estreita faixa de comprimentos de onda a que chamamos luz visível. Mas outros telescópios “vêem” nos comprimentos de onda dos raios X ou de ondas rádio, revelando-nos toda uma cornucópia de céus nocturnos alternativos.

A uma escala mais pequena, certas câmaras com filtros apropriados conseguem “ver” no ultra violeta e fotografar flores que mostram uma estranha gama de listas e manchas visíveis aos olhos dos insectos e aparentemente para eles “desenhadas”mas que a nossa vista não consegue divisar a olho nu.

Os olhos dos insectos possuem uma janela espectral de largura semelhante à nossa, mas situada um pouco acima relativamente à posição da burca; não são sensíveis ao vermelho e conseguem penetrar mais no ultravioleta do que nós.

A metáfora da janela de luz estreita que se vai expandindo até um espectro espectacularmente amplo serve para outras áreas da Ciência.

Vivemos algures perto do centro de um complexo de galerias de magnitudes diversas. Vemos o mundo com órgãos sensoriais e com sistemas nervosos que estão equipados para percepcionar e compreender apenas uma escassa gama intermédia de tamanhos, movendo-se de acordo com uma gama igualmente intermédia de velocidades.

Sentimo-nos à vontade com objectos cujo tamanho varia entre alguns quilómetros (a vista do cume de uma montanha) e cerca de uma décima de milímetro (a ponta de um alfinete).

Fora desta gama, até a nossa imaginação é deficiente pelo que necessitamos da ajuda de instrumentos e da matemática de que, felizmente, podemos aprender a servir-nos.

A gama de tamanhos, distâncias ou velocidades com que a nossa imaginação se sente à vontade corresponde a uma faixa minúscula situada no meio da gigantesca gama do possível, que vai desde a escala da estranheza quântica, na extremidade das pequenas dimensões, até à escala da cosmologia einsteiniana, na extremidade das dimensões maiores.

A nossa imaginação, ou imaginações, estão irremediavelmente sub equipadas para lidar com as distâncias situadas fora da estreita gama intermédia que nos é, ancestralmente, familiar.

Tentamos visualizar um electrão como uma minúscula bola orbitando à volta de um cacho maior de bolas que representam protões e neutrões. Mas não é nada que se pareça com isso. Os electrões não são como pequenas bolas. Não são como nada do que conhecemos. Nem sequer é claro que a palavra «como» tenha qualquer significado quando os nossos voos nos levam a acercar-nos dos horizontes mais remotos da realidade As nossas imaginações ainda não possuem as ferramentas necessárias para nos avizinharmos do quantum. A essa escala, nada se comporta como seria de esperar que a matéria – tal como a evolução nos condicionou a pensar – se comportasse.

Também não estamos aptos a lidar com o comportamento de objectos que se movam a fracções consideráveis da velocidade da luz.

O senso comum deixa-nos ficar mal porque evoluiu num mundo em que nada se move muito depressa e nada é muito pequeno ou muito grande.

“O facto de vivermos na base de um profundo poço de gravidade, à superfície de um planeta coberto de gás que gira em torno de uma bola de fogo nuclear situada a 145 milhões de quilómetros de distância e pensarmos que isto é normal é já, obviamente, um sinal de quão distorcida a nossa perspectiva tende a ser”.

A evolução da vida complexa, para já não falar no próprio facto da sua ocorrência num universo que obedece a leis da Física, é algo de maravilhosamente surpreendente ou sê-lo-ia, se não fosse a circunstância de a surpresa ser uma emoção que só pode existir num cérebro que é, ele mesmo, produto desse surpreendente processo.

Pensemos nisto um pouco. Num dado planeta, e possivelmente num só em todo o Universo, algumas moléculas que normalmente não formariam nada mais complicado do que um simples calhau, congregam-se em pedaços de matéria do tamanho de calhaus e dotados de uma complexidade tão espantosa que são capazes de correr, saltar, nadar, voar, ver, ouvir, capturar e comer outros pedaços de complexidade igualmente animados; em certos casos, capazes de pensar, de sentir e ainda de se apaixonar por outros pedaços de matéria complexa.

Agora, compreendemos como é que o truque, essencialmente, se processa, mas só desde 1859. Antes de 1859 tudo terá parecido, efectivamente, muitíssimo estranho. Hoje, graças a Darwin, é só muito estranho.

Darwin, pegou na janela da burca e franqueou-a de par em par, deixando entrar uma corrente de compreensão cuja ofuscante novidade e capacidade de elevar o espírito humano não tivesse precedente a não ser, por ventura, na descoberta de Copérnico de que a Terra não era o centro do Universo.

O modo como vemos o mundo e a razão pela qual consideramos certas coisas intuitivamente fáceis de compreender e outras difíceis é que os nossos cérebros são, eles próprios, órgãos resultantes de uma evolução: verdadeiros computadores de bordo que foram evoluindo para nos ajudarem a sobreviver num mundo onde os objectos que eram importantes para a nossa sobrevivência não eram nem muito grandes nem muito pequenos; um mundo onde as coisas ou estavam paradas ou se deslocavam lentamente em comparação com a velocidade da luz e onde o mais seguro era chamar impossível ao improvável.

A janela da nossa burca mental é estreita porque não precisava de ser mais larga para ajudarem os nossos antepassados a sobreviverem.

A Ciência, à total revelia da intuição gerada pelo processo evolutivo, ensinou-nos que as coisas aparentemente sólidas, como sejam cristais e pedras, são na realidade compostas quase totalmente por espaço vazio.

A ilustração mais corrente representa o núcleo de um átomo como uma mosca no centro de um estádio de futebol. O átomo seguinte encontra-se logo ao lado de fora do estádio.

Assim, a pedra mais dura, mais sólida e mais densa é, na realidade, quase só espaço vazio apenas interrompido por minúsculas partículas, tão afastadas entre si que praticamente nem contam.

Sendo assim, por que motivo dão as pedras a impressão de serem sólidas, duras e impenetráveis?

Enquanto biólogo da evolução, eu responderia da seguinte maneira:

- Os nossos cérebros evoluíram no sentido de ajudarem os nossos corpos a situarem-se no mundo, à escala em que esses corpos funcionam. A nossa evolução não foi no sentido de nos orientarmos. Se assim fosse, é provável que os nossos cérebros tivessem das pedras exactamente essa percepção de espaço preenchido pelo vazio.

As pedras parecem duras e impenetráveis ao tacto porque as nossas mãos não as conseguem penetrar e a razão pela qual não conseguem fazer isso não tem a ver com as dimensões nem o afastamento das partículas que constituem a matéria, mas antes com os campos de força associados a essas partículas muito afastadas que compõem a matéria sólida.

Aos nossos cérebros convém construir noções como solidez e impenetrabilidade, porque elas ajudam-nos a orientar os nossos corpos através de um mundo em que os objectos – que dizemos sólidos – não podem ocupar o espaço uns dos outros.

Quando entregue a si mesma, a intuição humana, produto da evolução e de toda uma habituação no seio do mundo mediano, tem até dificuldade em acreditar em Galileu quando este nos diz que uma bala de canhão e uma pena, sem atrito do ar, cairiam no solo no mesmo momento se fossem largadas de uma torre inclinada.

Isto acontece porque no mundo mediano o atrito do ar está sempre presente. Se tivéssemos evoluído no vácuo, esperaríamos que a pena e a bala de canhão atingissem o solo simultaneamente.

Existe um sentido em que nós, animais, temos de sobreviver não só no mundo mediano, mas também no micro mundo dos átomos e dos electrões. Os próprios impulsos nervosos com que pensamos e imaginamos dependem de actividades que se desenrolam no micro mundo mas não há nenhuma acção que os nossos antepassados selvagens alguma vez tivessem de desempenhar, nem nenhuma decisão que alguma tivessem de tomar, que pudesse ter beneficiado com uma compreensão do micro mundo.

Seria diferente se fossemos bactérias, constantemente fustigadas pelos movimentos térmicos das moléculas, mas nós, habitantes do mundo mediano, somos demasiado avantajados para repararmos no movimento browniano.

De tal forma as nossas vidas são dominadas pela gravidade que somos praticamente insensíveis à força delicada da tensão superficial.

Um pequeno insecto inverte esta prioridade, pois para ele a tensão superficial será tudo menos delicada.

Somos criaturas do mundo mediano, aí se deu a nossa evolução, e isso limita aquilo que estamos em condições de imaginar. A menos que sejamos especialmente dotados ou peculiarmente cultos, a janela estreita da nossa burca apenas nos permite ver esse mundo."

terça-feira, dezembro 30, 2008

AQUELES OLHOS VERDES - Trio Irakitan




Tieta do Agreste
EPISÓDIO Nº 4
CERIMINIOSO CAPÍTULO ONDE SE TRAVA CONHECIMENTO COM TRÊS IRMÃS, A POBRE, A
REMEDIADA E A RICA; ESTANDO A ÚLTIMA AUSENTE – QUEM SABE PARA TODO O SEMPRE; ONDE SE CONHECE DA CARTA MENSAL E DO CHEQUE IDEM, ANSIOSAMENTE AGUARDADOS, SOBRETUDO O CHEQUE, COMO É NATURAL, E TAMBÉM DE PEQUENAS MISÉRIAS E MÍNIMA ESPERANÇA, NA HORA DO MORMAÇO; ONDE, EM RESUMO, SE COLOCA INQIETANTE PERGUNTA:
TIETA ESTÀ VIVA OU MORTA?
SINGRA OS MARES EM CRUZEIRO DE TURISMO OU JAZ EM CEMITÉRIO PAULISTA?


Empertigada na cadeira, as mãos cruzadas sobre o peito magro, toda em negro dos sapatos ao xaile, coberta assim de luto fechado desde a morte do marido, Perpétua baixa a voz, lança a fúnebre hipótese:

- E se sucedeu alguma coisa com ela? – adianta a cabeça para onde está a irmã, sussurra: - E se ela bateu a caçoleta? – mesmo sussurrada, a voz, sibilante e ríspida , é desagradável:

- E se ela morreu?

Elisa estremece, solta o pano de prato, derrotada pelo mau presságio. Há dois dias e duas noites longas tenta arrancar da cabeça esse maldito pressentimento a persegui-la, a roubar-lhe o sono, a deixá-la com os nervos em ponta.

- Ai, Senhor meu Deus!

Perpétua descruza as mãos, alisa a saia de gorgorão bem passada, ratifica com um movimento de cabeça; não fez uma pergunta e sim uma afirmação. De comprovação fácil, aliás:

- Estamos a vinte e oito, praticamente no fim do mês. A carta sempre chega por volta de cinco, nunca passa de dez. Para mim, ela bateu a caçoleta.

Mesmo no desalinho da manhã de ocupações domésticas, o rosto de Elisa é bonito: morena de tez pálida, olhos melancólicos, lábios carnudos. Sob o desleixo do vestido velho e amarfanhado, chinelas gastas, ergue-se o corpo esbelto, de ancas altas e seios rijos. Um lampejo de curiosidade brota nos olhos assustados. Elisa busca na face da irmã outro sentimento além da preocupação pelo dinheiro. Não encontra: a proclamada morte de Tieta não aflige Perpétua, teme somente pela sorte do cheque. A cessação da remessa mensal assusta igualmente Elisa: não só perderiam a ajuda indispensável como teriam de sustentar o pai e a mãe, onde arranjar o necessário? Um horror, Deus não permita!

Um horror, sem dúvida, porém havia mais e pior. Ao calafrio de medo sucede a tristeza, um aperto no coração. Se ela morreu, então tudo se acabou para sempre, não somente o cheque, também a ténue esperança; sobrará apenas o vazio. Essa irmã Antonieta – meia irmã, aliás, pois Elisa nascera do segundo e inesperado casamento do velho Zé Esteves – de quem não conserva lembrança, a respeito de quem sabe tão pouco, é a razão de ser de Elisa.

Nos últimos anos, sobretudo após o casamento, começara a idealizar a figura da ausente, espécie de génio bom, heroína de conto da carochinha, imagem fugidia, quase irreal, a se fazer concreta no auxílio mensal, nos esporádicos presentes.

Reunindo frases ouvidas, narrativas de antigos enredos, comentários do pai e da mãe; a letra larga e redonda nas pequenas cartas – parcas em palavras e notícias, reduzidas às mesmas perguntas pela saúde dos velhos, das irmãs, dos sobrinhos, mas não secas e frias, contendo, além do cheque, abraços e beijos – o perfume ainda a evolar-se do envelope após tantos dias de correio; os embrulhos de roupa usada, quase nova; o título de comendador ostentado pelo marido; a fotografia na revista, Elisa construíra, pouco a pouco imaginário retrato da irmã, fada alegre, bela e bondosa, habitando um mundo rico e feliz. Nessa visão pensa e nela se apoia quando sonha com outra vida, mais além da pasmaceira e do cansaço. Morta Antonieta, que restará a Elisa? As revistas de telenovelas, nada mais. Nem isso, meu Deus!

Onde os níqueis, sobrados das despesas, com que comprá-las?

Tristeza por tudo quanto perderá, o dinheiro mensal, os presentes, o devaneio, o sonho, mas também tristeza simplesmente pela morte da irmã; gostará tanto de alguém quanto gosta dessa meia-irmã que não conhece? Reage, na necessidade de conservar pelo menos a esperança: Perpétua imagina sempre o pior, boca de agouro.

- Se ela tivesse morrido, a gente já tinha sabido, alguém havia de dar a notícia. Em casa dela tem nosso endereço, todo o mês ela escreve, não é? Haviam de avisar… - há dois dias, na labuta da casa, na cama de insónias, repete estes argumentos para si mesma.

- Avisar? Quem? Só se o marido dela e a família dele forem malucos.

- Malucos? Não vejo porquê.

Perpétua estuda a irmã em silêncio, a se perguntar se deve ou não contar, decide-se por fim, de qualquer maneira ela terá de saber:

- Porque, com a morte dela, a gente tem direito a uma parte da herança. Nós três: o velho, eu e você.

Elisa volta a enxugar os pratos, de onde Perpétua tirara aquela ideia de herança? Cada bobagem!

- Quem vai herdar é o marido dela, o Comendador. Por que a gente havia de herdar? Pró pai, pode ser que ela deixe alguma coisa, tem sido boa filha, boa até de mais. Mas pra nós duas, por quê? Quando ela saiu de casa, eu tinha menos de um ano. E tu, não foi por tua culpa que ela foi embora?

- Não foi tu que xeretou ao pai? Abriu o bico, ele quebrou a pobre no pau, tocou ela rua afora, não foi? Mãe me contou como se deu e Pai confirmou, disse que tu foi a culpada.

- Dizem isso agora, para adular. Depois que ela começou a mandar dinheiro, virou santa. Por que tua mãe não tomou as dores na ocasião? Quem foi que deu a surra, quem botou ela pra fora de casa? Eu ou o Velho?

Elisa estende sobre a mesa a toalha manchada de azeite, de feijão, de café.

- Astério tem mão podre, não sabe se servir sem derramar caldos e molhos, o infeliz. Encolhe os ombros não responde à pergunta de Perpétua, o pai e a irmã que decidam entre eles de quem a culpa; dela, Elisa, é que não foi, não completara um ano de idade quando denúncia, expulsão e fuga aconteceram.

Perpétua semicerra os olhos gáseos, por que Elisa se empenha em recordar o passado? A própria Antonieta não esquecera, há muito, agravos e injustiças? Não envia dinheiro, presentes? Não ajuda nas despesas? Ademais, há males que vêm para bem, não é mesmo? Se ela não tivesse sido posta no olho da rua, em vez de partir para o Sul e triunfar em S. Paulo, bem casada, cheia de dinheiro, feliz da vida, teria ficado ali, naquele buraco, vegetando na pobreza, sem direito a noivado e casamento pois a história com o caixeiro viajante logo se tornara de domínio público. Sem direito a nada, mera criada do pai e da madrasta.
- Se tu não lembra essas coisas por que tu há de lembrar?

- Não fiz por mal, só para mostrar que ela não tem motivo para deixar herança para nós duas.

- Não depende dela querer ou não querer… - Perpétua descerra os olhos, compõe a saia, retira invisível cisco da blusa: - Quando ela morrer, metade da fortuna fica para o marido e, como ela não tem filhos, a outra metade é dividida entre os parentes, os parentes próximos, o Velho e nós, o pai e as irmãs.

Como é que tu sabe?

- Doutor Almiro me disse…

- O promotor? E tu foi falar com ele?

- Propriamente falar, não falei. Ele estava conversando com padre Mariano, eu e outras zeladoras de junto, ouvindo. Estavam falando da herança de seu Lito, que deixou o dinheiro todo para o padre dizer missa pela salvação da alma dele na Igreja da Senhora Sant’Ana. (continua)

MULHER DE 40 - ROBERTO CARLOS



segunda-feira, dezembro 29, 2008






A CASA ONDE NASCI



Sabes, Rui, eu penso que gostamos mais das terras onde nascemos quando, pelas circunstâncias da vida, as temos que deixar.

Então, se for uma grande cidade, com aquela dinâmica própria das grandes cidades, esse sentimento pela ausência ainda mais se acentua.

Furtamo-nos à poluição, ao trânsito, ao receio por uma maior insegurança e o que permanece é a imagem colorida feita saudade, um misto de sentimentos que mete ruas, praças, jardins, prédios… a nossa vida feita aos retalhos, um pedacinho neste lugar, outro além, naquele outro.

Memórias que nos aconchegam a alma e nos devolvem, de regresso, ao nosso banco do jardim à sombra daquela árvore, ao passeio da frente com a paragem do eléctrico e de repente, o polícia de turno que passa no seu andar calmo, mãos atrás das costas, seguro, tão seguro e confiante de si próprio que nos faz sentir aliados da autoridade.

Quase setenta anos de vida que não se somam em parcelas iguais, longe disso, a maior parte passaram incógnitas, não me lembro delas, não interessam, foram ram-ram, folhas de uma agenda que se rasgaram e perderam… procuro-as na minha memória e não as encontro.

À primeira vista parece um enorme desperdício, pensando melhor, foi mesmo um grande desperdício, o mesmo que enche a vida de tantas pessoas que, como eu, não deram conta de que o relógio estava a contar, minuto a minuto, hora a hora, todas exactamente com a mesma duração, todas sem retorno.

Mas a minha cidade, essa, está lá toda, não a tua, grande parte dela nem a conheço, não tem nada a ver comigo.

Lembras-te da inauguração da Expo / 98, das bichas intermináveis para os bilhetes de acesso, da euforia criada pelas expectativas de algo verdadeiramente novo, moderno, arejado?

Nunca me senti tão orgulhoso da minha cidade, comovi-me quando pela primeira vez entrei naquele espaço e me apeteceu correr ao encontro dos responsáveis de tudo aquilo que via ao meu redor no enquadramento mágico do estuário do Tejo, abraça-los e dizer-lhes obrigado.

Apeteceu-me recuar 50 anos e partir à desfilada por toda a Lisboa a gritar:

-“Venham cá agora, venham ver o meu bairro de operários, dos Armazéns de Vinho do Abel Pereira da Fonseca, da Fábrica do Material de Guerra, do Sabão, dos bilhetes de eléctrico a dois tostões destinados aos operários, do fim da linha dos eléctricos do Poço do Bispo, venham cá agora, seus vaidosos, convencidos, do Bairro de Alvalade, da Baixa, do Chiado…venham cá agora!”

Ah… se fosse possível misturar os tempos!

Eu tinha razões especiais:

- Quase sessenta anos antes, em 39, eu tinha nascido muito perto dali, na R. José do Patrocínio, ao Poço do Bispo, no fim da linha dos eléctricos, onde o condutor se apeava para mudar o “troley” e inverter a marcha, próximo daquele que viria a ser, desde cedo, o maior depósito de lixos tóxicos, algo a que à data apenas se chamava, prosaicamente, de porcaria e onde, 49 anos mais tarde viria a nascer, quase como por artes mágicas, a Expo/98, o maior, mais belo e surpreendente projecto de recuperação urbanística da cidade de Lisboa.

O Bairro de Marvila era, na década de 40, o local, por excelência, das tabernas e carvoarias, das fábricas, dos operários e dos copos de três, no tempo em que beber vinho era dar de comer a um milhão de portugueses.

O meu pai era proprietário de duas dessas tabernas e carvoarias, uma em Vale Formoso e outra na R: Direita de Marvila e ao Domingo, quando ganhava o C.O.L (Clube Oriental de Lisboa), aumentava a euforia e o negócio do vinho a copo.

Ainda se faziam sentir os efeitos da guerra terminada em 45, das senhas de racionamento, das dificuldades, não para mim que era filho de pai, então rico, usava calções, meias de soquete e chamava de mamã à minha mãe.

Em 1937/38, o meu pai alugou uma moradia quase no fim da Rua José do Patrocínio onde então desaguava, vindo de cima, por uma ruazinha estreita, o bairro chinês, o mais antigo bairro de lata da cidade de Lisboa.

A moradia, sobre elevada relativamente à rua, tinha um amplo terraço em toda a sua frente com uma dupla escadaria, a primeira até um portão de ferro pintado de verde que se abria para a outra até à rua.

O edifício era de dois pisos separados por uma escadaria interior muito bonita, em madeira exótica que se abria em leque ao chegar hall. A parede frente era toda em azulejos verdes com uma varanda ao meio a toda a largura com figuras de pedra a encimá-lo.

Que fazia ali aquela moradia? Quem era o seu dono? Por que razão a construíra ali, às portas do bairro chinês, encostada a uma ponte por onde o comboio ao passar fazia estremecer toda a casa?

Ah… não sei como vocês podem viver aqui!

Porquê? Eu não dei por nada, nasci com o barulho do comboio, já o ouvia quando estava na barriga da minha mãe.

Depois, via-os passar do meu terraço, eram todos pretos, à excepção de um que era branco, o “comboio de prata”, o rápido que ia para o Norte, levava pressa, de tão junto que passava da minha casa até parecia que a ia atropelar.

Ainda hoje os ouço no seu matraquear característico, especialmente quando iniciavam a marcha na estação de Braço de Prata, ali próxima.

Pou-ca-te-rra…Pou-ca-te-rra… Pou-ca-te-rra…Pou-ca-te-rra….ÚÙÙÙ…ÙÙÙÙ e lá vinha ele resfolgando como que a tomar balanço para a próxima corrida até à nova estação.

O pior eram aqueles que não paravam na estação e passavam já embalados…era coisa de doidos, abanava tudo, os copos à mesa estremeciam, os talheres tilintavam e o meu pai, depois do comboio passar e ficar audível dizia para a minha mãe:

- Mimi, passa-me o pão por favor.

Um dia, um homem resolveu caminhar a pé pelo meio da via e prendeu-se-lhe a bota… sei que era uma bota porque veio parar ao meu terraço com o pé lá dentro.

Não me lembro de quantas noites não consegui dormir…foi a única vez em que me zanguei com os comboios.

O meu vizinho que morava do outro lado da ponte, o Mário Martins, o da Valentim de Carvalho, que descobriu tudo o que era cantor em Lisboa e arredores, a começar pelo Marco Paulo, uns anitos mais velho que eu, dizia-me, apurando o ouvido para o comboio que lá vinha:

- Aposto que o número do comboio que lá vem é o… ainda hoje estou para saber como é que ele acertava sempre, seria um truque ou já a manifestação da sua extraordinária sensibilidade musical?

Lembro-me, que ele vivia no desejo nostálgico de ter um instrumento musical, não posso precisar qual, mas o negócio da pequena mercaria do pai, nesse tempo, era de patacos e a fiado, como já vai sendo hoje nas mercearias de bairro, e além disso, oriundo lá do norte, não era sensível à vocação musical do filho.

Por isso, o meu amigo Mário, olhava para o piano que a minha mãe tinha em casa um pouco à maneira de quem olha, mesmo de perto, aquilo que lhe estava tão distante.

Recordo que o meu pai alugou esta casa por 400 mil réis, o dobro do que a minha mãe pagava à cozinheira, e um quarto do que pagava à “criada de fora”, comidos e dormidos, já se vê, que sendo já dinheiro para a época, devia ter alguma coisa a ver com a frustração do senhorio que nunca se deve ter entendido com o barulho do comboio.

Devia de andar pelos meus 50 anos quando regressei de novo àquele local e àquela casa.

Bati à porta e disse à senhora que me atendeu:

- Nasci nesta casa há 50 anos, vivi nela os meus primeiros 10, nunca mais cá voltei, importa-se que dê uma vista de olhos?

- Faça favor, isto agora é um infantário, esteja à sua vontade.

Dei meia dúzia de passos, olhei ao meu redor, não reconheci nada, agradeci e vim embora…tinha-me esquecido de levar os meus olhos de criança!

Recentemente, viu-o de soslaio da janela do comboio, um pouco antes de chegar a Santa Apolónia, pareceu-me estar já em perfeita degradação. Podem destruí-la por completo porque sem os meus olhos de menino não me serve para nada.

Para a revisitar não tenho necessidade de lá voltar, nem sequer preciso dela, todos os seus mais pequeninos recantos e pormenores continuam indeléveis na minha memória.


Nota:

Dedico este texto ao meu sobrinho Rui.

Maria Betânia - Cálice


Daniela Mercury - O Canto da Cidade



The Christmas Song - Nat King Cole





Lembranças da Guerra

- QUANDO O FEITIÇO SE VIRA CONTRA O FEITICEIRO...


Viver toda uma vida, ainda que apenas a da juventude, na cidade de Lisboa, na paisagem serena de uma aldeia da Beira - Baixa, ou numa pequena cidade da Estremadura do nosso Portugal, como Tomar, Abrantes ou Santarém e ser autenticamente despejado, ao fim de nove dias de viajem no paquete Vera Cruz, nas matas luxuriantes do norte de Angola, constituiu, para nós, militares da Companhia de Caçadores 388 e para mim em concreto, um contraste e choque totais.

Estávamos a cumprir as ordens de Salazar:

“PARA ANGOLA, DEPRESSA E EM FORÇA”

Eu já tinha estado em Angola, numa visita de estudo, em Setembro de 1960, mas não deu para sentir África: os aviões, os hotéis, uma ou outra estrada são mais ou menos iguais em todo o lado e a paisagem, por mais diferente e exótica que seja apenas nos enche o olhar.

Chegamos de noite ao Úcua e fomos recebidos pela tropa que íamos render, nós de camuflados novinhos, eles de fardas de cores esbatidas, comidas pelo sol e pelo suor, nós estranhos, sem à vontade, peixes fora de água, eles, seguros, confiantes, olhando-nos com indiferença, cansados de terem chegado ao fim.

Um alferes acercou-se de nós e convidou-nos para o acompanhar. Os alferes milicianos eram apenas soldados mais graduados, com excepção do médico, também ele alferes mas com funções naturalmente diferentes, constituíamos uma pequena família de quatro pessoas.

Subimos para o jeep e sem que nos dissesse mais palavras iniciamos a viajem pela picada iluminada pelos faróis que rompiam os trilhos naquele mar de verde à nossa volta.

De repente estacou, apeou-se e nós o acompanhámos sem sabermos ao que íamos. Parou junto de uma árvore, do lado esquerdo da picada, em frente, do lado direito, outra árvore de igual porte.

Atada a estas árvores, impedindo a passagem, disse ele, estava uma corrente com um letreiro:

“Branco Aqui Não Passa” e falou-nos num tom calmo, natural como se nos quisesse tranquilizar.

“Agora já não há aqui terroristas, foram-se embora, mais para o norte” e sem mais palavras regressámos. A viajem fora breve, descontraída, provando isso mesmo: já ali não estavam!

Ali, era o sopé da famosa Pedra Verde que conhecíamos dos noticiários da Televisão, quando no fim de muitas toneladas de bombas largadas pela aviação em cima dela, “eles” se foram embora e um soldado nosso, talvez do pelotão daquele alferes, conseguira trepar e ser fotografado a hastear a bandeira nacional como se a guerra tivesse acabado, como se ela estivesse ganha.

Na casa abandonada pelos colonos, depois da mortandade em resposta a outra mortandade, a de Março de 1961, no norte, as populações tinham fugido: a negra, que sobreviveu, para o mato, os brancos para Luanda, a pouco mais de 100 km dali.

Da janela da improvisada sala dessa casa, onde nos instalámos, víamos a Pedra Verde, bastava olhar pela janela, imponente, enorme, dominava a paisagem lá ao longe, indiferente às guerras dos homens.

O capitão, comandante da Companhia, poucos dias depois de termos chegado, chamou-me e disse:

-“Alferes Matos, amanhã vai com o seu pelotão à Pedra Verde, sai de madrugada”.

Fui ter com os meus soldados, chamei-os à parte:

- “Amanhã, de madrugada, saímos para a Pedra Verde, já ouviram falar dela, não é verdade?”

Era a nossa primeira saída, esperava-nos a aventura, a novidade, o medo, a ansiedade…, eu sabia que não era uma saída perigosa, “eles já lá não estavam”, tinha dito o Alferes que, provavelmente, tinha participado na sua conquista, mas os soldados não tinham essa informação, intencionalmente não a transmiti, tudo o que pudesse contribuir para aumentar a atenção e o alerta dos sentidos devia ser feito, mesmo à custa de uma pequena batota.

Em 1962, os soldados que me acompanhavam eram quase todos do norte, rapazes simples, humildes, do meio rural, na maioria analfabetos.

A situação era nova, estranha, tanto para mim como para eles, mas a sociedade desse tempo colocava-nos em mundos diferentes: eu era da cidade, tinha estudos e eles, quase todos do campo onde a enxada ficara à espera sem outras perspectivas que não fosse continuarem a cavar ou simplesmente emigrar, atravessar a fronteira para um destino que os livrasse de uma vida igual às dos seus pais.

Mas naquele momento o importante era sobreviver e para isso todo o cuidado era pouco, sem esquecer que “eles” viam-nos e nós, cegos pelo verde da vegetação à qual ainda não estávamos habituados, não fazíamos a mínima ideia onde estariam, se é que estavam.

A deslocação fazia-se em silêncio absoluto, uns atrás dos outros, na chamada “bicha de pirilau”. Fossemos 200 ou 20 como éramos, e o resultado seria o mesmo, “a frente de combate” era apenas o primeiro da fila… arma em posição de fogo, dedo no gatilho, olhar fixo, demasiado fixo porque a tensão e a inexperiência eram grandes e apenas eu sabia que “eles” já não estavam ali…não estariam?

Coloquei-me em terceiro lugar com a convicção de que não corria perigo mas as advertências que tinha feito sobre a perigosidade daquele já histórico local, as “tintas negras” de que o tinha revestido, criaram um clima opressivo…na realidade era a primeira vez que estávamos no mato em operações de guerra… e a deslocação continuava lentamente.

A paisagem à nossa volta era, naquele local, de pouca vegetação mas no horizonte, ao fundo, via-se já o verde da floresta que se fechava.

Em determinado momento o soldado que ia na frente estacou, eu parei, todos se imobilizaram.

Dirigi-lhe um olhar interrogativo, ele levantou o braço e com o dedo indicador espetado apontou para um local à nossa frente.

Percebi que estava atemorizado por qualquer coisa que só ele descortinara e não me pareceu que fosse capaz de continuar, o medo apossara-se dele e estava a contagiar todos…olhei para as suas caras e não descortinei voluntários para ultrapassar o impasse, eu próprio, o único a quem tinham dito que “eles” já não estavam ali, deixara-me apanhar pela pequena batota que tinha feito, pelo medo que tinha ajudado a criar.

Finalmente saí da fila, assumi a frente e avancei, atrás de mim estavam todos parados e eu, como os heróis na guerra, um falso herói, subentenda-se, que já não sabia se havia ou não perigo, lá fui… um passo atrás do outro, pistola metralhadora em riste, defrontar o inimigo.

…e de repente, a poucos metros dos meus pés uma ave enorme, do tamanho de uma águia, maior, de um abutre, quem sabe de uma avestruz, se elas voassem, levantou voo com o estardalhaço próprio do bater das ases… e eu apanhei o maior susto da minha vida.

Levei alguns segundos a recompor-me mantendo-me de costas e com toda a fingida calma e naturalidade voltei-me, regressei ao meu lugar e mandei continuar… mas não me perguntem mais nada porque tudo o resto daquela operação esqueci.


Tieta do Agreste
Episódio Nº3


Quanto aos grandes patrões, esses não se mostram em bares, não brindam com jornalistas de cavação e preferem as formosas nuinhas de todo, no conforto e no recato, longe de qualquer exibição pública. Ai, quem me dera a honra, a glória suprema de que pelo menos um deles venha a aparecer nas mal alinhadas páginas deste relato; seria o máximo para o modesto escriba contar com uma tamanha personagem.

Realista, os pés na terra, não espero que aconteça esse milagre; onde forças capazes de arrastar um lorde estrangeiro àquele cu – de – mundo, através de lama e poeira?

Caso tudo dê certo, aprovado o projecto, instalado o complexo industrial, quando o progresso chegar com asfalto sólido, estradas de mão única, motéis, piscinas, moças de túnicas transparentes, polícia de segurança, aí sim, talvez tenhamos o privilégio de enxergar, com nossos olhos que a terra há-de comer, um desses grandes do mundo envolto em ouro.

De qualquer maneira, vou em frente, mesmo sabendo que alguns detalhes dificilmente merecerão crédito de parte de pessoas sensatas, pespegá-los exige martelo russo e prego caibral, para usar expressão da velha Milú repetida cada vez que o bardo Barbosinha termina de narrar sobre o além e o passado ou, indómito, penetra futuro adentro, a voz eloquente e empostada – empostada por uma embolia que o acometera anos atrás e por pouco o desencarna.

Não deu para tanto, suficiente porém para aposentá-lo do quadro de funcionários da Prefeitura da Capital, onde exerceu, com relativa capacidade e certo desleixo, funções de escriturário, e trazê-lo de volta às ruas poucas e pacatas de Sant’Ana do Agreste, cujos limites culturais, com tal retorno, logo de muito se ampliaram pois Barbosinha – Gregório Eustáquio de Matos Barbosa – é autor de três livros, publicados na Baía, dois de poesia e um de máximas filosóficas.

De tudo isso se dará notícia no decorrer da acção. Aqui venho apenas livrar a cara, declinar de qualquer responsabilidade. Relato os factos conforme me foram narrados, por uns e por outros. Se de quando em quando meto a minha colher e situo opiniões e dúvidas, é que também não sou de ferro nem me pretendo indiferente às “agitações sociais, vendavais do século a convulsionar o mundo” (De Matos Barbosa, in Máximas e Mínimas da Filosofia – Dmeval Chaves Editor – Baía, 1950). Sou apenas prudente, o que nos tempos de agora não é virtude nem mérito e sim necessidade vital.

De uma coisa desejaria realmente ter a certeza no momento em que colocar o ponto final nas páginas deste folhetim, e para isso conto com a ajuda dos senhores, lanço-lhes um desafio: respondam-me quais os heróis da história, quem lutou pelo bem da terra e do povo. Em nome da terra e do povo todos falam, cada qual mais ardente e gratuito defensor.
A gente vai ver se descobre dinheiro pelo meio, no bolso dos sabidos, povo e terra que se danem.

Nesta embrulhada, cujos nós começo a desatar, quem merece nome em placa de rua, avenida ou praça, artigos laudatórios, homenagens, comendas, cidadania, ser proclamado herói? – digam-me os senhores. Aqueles que pugnam pelo progresso a todo custo – pague-se o preço sem reclamar, seja qual for – a exemplo de Ascânio Trindade? Se pagasse com a vida, teria pago menos caro. Se não forem eles que outros? Não há-de ser a Barbosinha ou a dona Carmosina, a Dário, comandante sem tropas a comandar, que se confira tais honrarias, muito menos a Tieta, melhor dito, à madame. As palavras também valem dinheiro, herói é vocábulo nobre, de muita consideração.

Agradecerei a quem me elucidar quando juntos chegarmos ao fim, à moral da história. Se moral houver, do que duvido. (Continua)

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