sábado, agosto 13, 2016

Portugal, Nação Valente e Imortal 
(Crónica satírica de António Lobo Antunes em 2012)





 - 4 Anos Depois...











As empresas fecham, os desempregados aumentam, os impostos crescem, penhoram casas, automóveis, o ar que respiramos e a maltosa incapaz de enxergar a capacidade purificadora destas medidas. Reformas ridículas, ordenados mínimos irrisórios, subsídios de cacaracá?
  
Talvez. Mas passaremos sem dificuldade o buraco da agulha enquanto os Loureiros todos abdicam, por amor ao próximo, de uma Eternidade feliz. A transcendência deste acto dá-me vontade de ajoelhar à sua frente. Dá-me vontade? Ajoelho à sua frente indigno de lhes desapertar as correias dos sapatos.

Vale e Azevedo para os Jerónimos, já!

Loureiro para o Panteão já!

Jorge Coelho para o Mosteiro de Alcobaça,  já!

Sócrates para a Torre de Belém, já! A Torre de Belém não, que é tão feia. Para a Batalha.

Fora com o Soldado Desconhecido, o Gama, o Herculano, as criaturas de pacotilha com que os livros de História nos enganaram.

Que o Dia de Camões passe a chamar-se Dia de Armando Vara.

Haja sentido das proporções, haja espírito de medida, haja respeito.

Estátuas equestres para todos, veneração nacional. Esta mania tacanha de perseguir o senhor Oliveira e Costa: libertem-no.

Esta pouca-vergonha contra os poucos que estão presos, os quase nenhuns que estão presos como provou o senhor Vale e Azevedo, como provou o senhor Carlos Cruz, hedionda perseguição pessoal com fins inconfessáveis.

Admitam-no. E voltem a pôr o senhor Dias Loureiro no Conselho de Estado, de onde o obrigaram, por maldade e inveja, a sair.

Quero o senhor Mexia no Terreiro do Paço, no lugar de D. José que, aliás, era um pateta.

Quero outro mártir qualquer, tanto faz, no lugar do Marquês de Pombal, esse tirano. Acabem com a pouca vergonha dos Sindicatos.

Acabem com as manifestações, as greves, os protestos, por favor, deixem de pecar. Como pedia o doutor João das Regras, olhai, olhai bem, mas vêde. E tereis mais fominha e, em consequência, mais Paraíso.

Agradeçam este solzinho. Agradeçam a Linha Branca.
Agradeçam a sopa e a peçazita de fruta do jantar. Abaixo o Bem-Estar.

Vocês falam em crise mas as actrizes das telenovelas continuam a aumentar o peito: onde é que está a crise, então?

Não gostam de olhar aquelas generosas abundâncias que uns Violadores de sepulturas, com a alcunha de cirurgiões plásticos, vos oferecem ao olhinho guloso?

Não comem carne mas podem comer lábios da grossura de bifes do lombo e transformar as caras das mulheres em tenebrosas máscaras de Carnaval.

Para isso já há dinheiro, não é? E vocês a queixarem-se sem vergonha, e vocês cartazes, cortejos, berros. Proíbam-se os lamentos injustos.

Não se vendem livros? Mentira. O senhor Rodrigo dos Santos vende e, enquanto vender, o nível da nossa cultura ultrapassa, sem dificuldade, a Academia Francesa.

Que queremos? Temos peitos, lábios, literatura e os ministros e os ex-ministros a tomarem conta disto.

Sinceramente, sejamos justos, a que mais se pode aspirar?

O resto são coisas insignificantes:

- desemprego, preços a dispararem, não haver com que pagar ao médico e à farmácia, ninharias.

Como é que ainda sobram criaturas com a desfaçatez de protestarem? Da mesma forma que os processos importantes em tribunal a indignação há-de, fatalmente, de prescrever.

E, magrinhos, magrinhos mas com peitos de litro e beijando-nos uns aos outros com os bifes das bocas seremos, como é nossa obrigação, felizes…


(Este é o nosso destino... não será muito diferente, mesmo num futuro distante. Os nomes serão outros, a realidade a mesma. Nascemos pequenos e pobres e assim continuaremos, mesmo depois de termos sido Campeões Europeus de Futebol... )
         

O Padre

e a

Freira










Um Padre (muito cavalheiro) ofereceu à freira uma boleia para o convento, já que estava tarde e a chuva não demoraria a chegar...

No caminho o carro avariou. Depois de caminharem uma hora debaixo de chuva, avistaram um motel, e o padre sugeriu:

- Irmã, creio que será melhor dormimos aqui neste motel, e amanhã chamaremos o carro do convento para nos vir buscar.

A irmã, toda molhada e cansada,   concordou feliz da vida!!!!  

Na recepção, foram informados que tinham somente um quarto com uma cama de casal disponível.    

O padre olhou para a freira e disse :  

- Sem problemas, a Irmã  pode dormir na cama, que eu durmo  no chão.  E assim fizeram.

No entanto, no meio da madrugada, a irmã acordou o padre dizendo:

- Padre! Está acordado?

- ( O padre bêbado de sono ) Hã?! Ah, irmã, o que foi?

- Ah... é que eu estou com frio. Pode-me chegar o cobertor?  

- Sim, irmã, com certeza!

O padre levantou-se, tirou o cobertor do armário e cobriu a irmã com muita ternura.

Uma hora depois a irmã acorda o padre novamente dizendo:

- Padre! Ainda está acordado?

 - (O padre a babar na gola ) Ah? Ah,irmã, o que foi agora?

- É que eu ainda estou com frio. Pode-me chegar outro cobertor?


- Claro irmã, claro que sim!

Mais uma vez o padre levantou-se cheio de amor e boa vontade para atender o pedido da irmã.
Outra hora se passou e mais uma vez a irmã chamou pelo padre.

- Padre, ainda esta acordado?  

- (O padre engasgando com o próprio ronco ) Ah? ... sim irmã, o que foi agora?

- É que eu não consigo adormecer. Ainda estou com muito frio.

Finalmente, entendendo as intenções da irmã, o padre disse:

- Irmã, só estamos nós os dois aqui, certo?

- Certo!  

- O que acontecer, ou deixar de acontecer aqui, só nós saberemos e mais ninguém, certo?

- Certo!  

- Então tenho uma sugestão: Que tal nós fazermos de marido e mulher?

A freira pula de alegria na cama e diz:

- Sim! Sim! Vamos fazer de marido e mulher! 

Nesse momento o padre muda o tom de voz e grita:

- Então, porra! Levanta esse cu da cama e vai tu buscar a merda do cobertor!


Obs - Quem pensou que iria haver um final erótico, faz favor, reza 10 Avé-Marias e 20 Pai-Nossos por maus pensamentos...   


sexta-feira, agosto 12, 2016


As cozinheiras do 


antigamente...

 · 








Antigamente as cozinheiras dos bons restaurantes portugueses eram umas Senhoras rechonchudas e coradas, em geral já de idade respeitável, com nomes bem portugueses ainda a cheirar a aldeia – a D. Adozinda, a D. Felismina, a D. Gertrudes – e por vezes com uma sombra de buço que parecia fazer parte dos atributos da senioridade na profissão.
Tinham começado por baixo e aprendido o ofício lentamente, espreitando por cima do ombro das mais velhas. E tinham apurado a mão ao longo dos anos, para saberem gerir cada vez com mais mestria a arte do tempero, a ciência dos tempos de cozedura, os mistérios da regulação do lume.
A escolha dos ingredientes baseava-se numa sabedoria antiga, de experiência feita, que determinava o que “pertencia” a cada prato, o que “ia” com quê, os sabores que “ligavam” ou não entre si.
Traziam para a mesa verdadeiras obras de arte de culinária portuguesa, com um brio que disfarçavam com a falsa modéstia dos diminutivos – “Ora aqui está o cabritinho”..., -  “Vamos lá ver se gosta do bacalhauzinho”... - , “Olhe que o agriãozinho é do meu quintal”...
Ficavam depois a olhar discretamente para para nós, para nos verem na cara os sinais do prazer de cada petisco, mesmo quando à partida já tinham a certeza do triunfo, porque cada novo cliente satisfeito era como uma medalha de honra adicional. E a melhor recompensa das boas Senhoras era o apetite com que nos viam: “Mais um filetezinho?” “Mais uma batatinha assada?”.
Hoje em dia, ao que parece, nestes tempos de terminologias filtradas, já não há cozinheiros, há “chefes”, e a respectiva média etária ronda a dos demais jovens empresários de sucesso com que os vemos cruzarem-se indistintamente nas páginas da “Caras” e da “Olá”.
Os nomes próprios seguem um abcedário previsivel – Afonso, Bernardo, Caetano, Diogo, Estêvao, Frederico, Gonçalo, … – e os apelidos parecem um anuário do Conselho de Nobreza, com uma profusão ostensiva de arcaismos ortográficos que funcionam como outros tantos marcadores de distinção – Vasconcellos, Athaydes, Souzas, Telles, Athouguias, Sylvas…
Quase nunca os vemos, claro, porque os deuses só raramente descem do Olimpo, mas somos recebidos por um exército de divindades menores cuja principal função é darem-nos a entender o enorme privilégio que é podermos aceder a semelhante espaço tão acima do nosso habitat social natural.
A explicação da lista é, por isso, um longo recitativo barroco, debitado em registo enjoado, em que, mais do que dar-nos uma ideia aproximada das escolhas possíveis, se pretende esmagar-nos com a consciência da nossa pressuposta inadequação à cerimónia em curso.
A regra de ouro é, claro, o inusitado das propostas culinárias em jogo e, preferivelmente, a sua absoluta ininteligibilidade para o cidadão comum. Mandam, pois, o bom senso e o próprio instinto de auto-defesa que se delegue na casa a escolha do menu, sabendo-se, no entanto, que não vale a pena sonhar com que pelo meio nos apareça um pobre cabrito assado no forno, um humilde sável com açorda, ou uma honesta posta de bacalhau preparada segundo qulquer das “Cem Maneiras” santificadas das nossas Avós.
Seja o que Deus quiser! E começam então a chegar a “profiterolle de anchova em cama de gomos de tangerina caramelizados, com espuma de champagne”, o “ceviche de vieira com molho quente de chocolate branco e raspa de trufa”, a “ratatouille de pepino e framboesa polvilhada com canela e manjericão”, e por aí fora, em geral com largos minutos de intervalo entre cada prato e o seguinte, para nos dar tempo de meditar sobre a experiência numa espécie de retiro espiritual momentâneo…
E é de experiência que se pode aqui falar no sentido mais fugaz do termo. Deliciosa ou intragável, a oferta tende a ser, por princípio, “one time only”, porque quando o empregado anuncia, na sua meia voz enfadada, o “camarão salteado em calda de frutos silvestres e açafrão”, o uso do singular não é metafórico – é mesmo um exemplar único da espécie que se nos apresenta em toda a sua glória, ainda que possa reinar isolado no meio de um prato em que em tempos caberia um costeletão de novilho com os respectivos acompanhamentos.
Se se detestar, há pelo menos a consolação de que não haverá qualquer hipótese de reincidência do crime; se se adorar – o que há que reconhecer que muitas vezes acontece – ficará apenas a memória fugidia do prazer inesperado.
A função do “chefe” é proporcionar-nos no palato esta sucessão de sensações momentâneas irrepetíveis, todas elas em doses cuidadosamente homeopáticas, um pouco como as configurações sempre novas de um caleidoscópio – ou, se se preferir uma imagem mais forte, como a versão gastronómica de uma poderosa substância alucinogénea, daquelas que faziam as delícias da geração hippie dos anos 60 quando lhes davam a ver, ora elefantes cor-de-rosa, ora hipopótamos azul-celeste. Wow!
Que saudades das Donas Adozindas, das Donas Felisminas, das Donas Gertrudes, mais camponesas ainda do que citadinas, com a sua sabedoria, as suas receitas de família, a sua simplicidade, a sua fartura, o seu gosto de servir bem, o seu sentido de tradição e de comunidade.

Obs - Deliciosa esta receita... desculpem, este texto!

Quais divórcios,

quais carapuças!...


















Marido e mulher estão a jantar num belo restaurante quando entra uma rapariga absolutamente fantástica, que se dirige à mesa deles, dá um beijo apaixonado ao marido, diz:


- Vemo-nos mais tarde... - E vai-se embora.


A mulher, furiosa, fita o marido e pergunta:


- Quem diabo era aquela?


– Oh – responde o marido, – é a minha amante.


- Ah é? Pois esta foi a última gota de água! - Diz a mulher.


- Para mim chega! Quero o divórcio!

– Compreendo – responde o marido, – mas lembra-te, se nos divorciarmos acabam-se as compras em Paris, os Invernos na República Dominicana, os Verões em Itália, os Porsches e os Ferraris na garagem e o Iate. Mas, enfim... a decisão é tua.

Nesse momento entra um amigo comum no restaurante com uma loura estonteante pelo braço.


- Quem é aquela mulher que entrou com o Bernardo? - pergunta ela.


- É a amante dele! - Responde o marido.


- A nossa é mais bonita!... - Responde a mulher.

Assim Nasceu Portugal
(Domingos Amaral)






Episódio Nº 61
















Mas, no presente, servia apenas de residência exclusive dos wali da cidade, embora permanecesse um esplendoroso edifício onde se multiplicavam os claustros, os miranetes, os jardins interiores. Piscinas e uma quantidade incontável de quartos, salas e salões.

Se aquele monumento estava de pé, ornamentado e mobilado como se lá morassem deuses e não pessoas, à família Benu Ummeya se devia, concluiu Zhakaria.

Mas, como era possível que quem tão bem governara o califado de Córdova trezentos anos, quem construíra centenas de mesquitas pela cidade, quem a tornara um local de fé visitado por milhões de muçulmanos, tivesse caído em desgraça?

O que acontecera de tão profundo e corrupto para que as gentes se revoltassem contra aqueles a quem tanto deviam?

Os livros antigos responsabilizavam os próprios Bem Ummeya, a degradação inexorável do seu sangue, embora houvesse quem atribuísse mais culpas ao hajib Al-Mansor, o todo poderoso ministro e usurpador dos poderes da família, que pedira ajuda aos berberes africanos para combater os cristãos e, de caminho, remetera um jovem califa a uma posição secundária, condenando-o a vaguear pelos jardins de Azzahrat como um tonto impotente.

Pouco importava agora: Hixam III, avô das princesas, fora o último monarca que ali vivera, antes de ter renunciado ao trono por se considerar incapaz de pacificar a Andaluzia.

Cem anos tinham passado e nada de bom se aproveitava. O poder muçulmano fragmentara-se, o califado cordovês estilhaçara-se em pequenos reinos, as primeiras taifas, permitindo aos cristãos avançarem para o sul, conquistando Toledo, Coimbra e outras cidades. E anos depois, os almorávidas tinham assentado arraiais, substituindo o califado de Córdova pelo de Marraquexe, primeiramente liderado por Yusuf, pai do actual califa, Ali Yusuf, que Zhakaria odiava.

Matava-o se pudesse...

Estaria preste-se a dar a queda de Marraquexe, questionou-se Zhakaria? A criada de Hisn afirmara que a instabilidade grassava na Andaluzia, mas a ele afigurava-se impensável que o domínio de Ali Yusuf estivesse em risco.

O maldito berbere que, por temer a concorrência dos descendentes dos Benu Ummeya, condenara à morte Taxfin e Zulmira, além de ter colocado a prémio as cabeças das princesas Fátima e Zaida, era um homem poderoso, escudado nos seus implacáveis guerreiros dos desertos africanos, cuja brutalidade assustava os mais suaves árabes andaluzes.


quinta-feira, agosto 11, 2016

Assim Nasceu Portugal
(Domingos Amaral)


Episódio Nº 60






















Todos os familiares de Sohba tinham morrido, desde o pai Hixam III, o último califa de Córdova, até ao irmão Hisham de Hisn, passando por uma filha que a criada nunca conhecera e que se dizia ter falecido jovem, sendo essa a primordial razão da loucura de Shoba.

A criada apontou um olhar triste na direcção dos túmulos e comentou:

 - Uma grande desgraça abraçou os Bem Ummeya.

Depois de um suspiro, prosseguiu:

 - Quem larga um trono, como Hisham III fez, condena a família.

A idosa acrescentou que o maldito Ali Yusuf não descansaria enquanto não os degolasse a todos.

- Já aviou Zulmira e Taxfin, só faltam as minhas meninas.

Com o olhar embaciado que sempre exibia, aconselhou Zakaria:

 - Ide falar com Ismar. É andaluz e é fino, hábil e firme. Desde Taxfin que não se via governador tão bom em Córdova.

De seguida, a celha criada descreveu ao cordovês o que se estava a passar na Andaluzia muçulmana, que sofria uma inesperada mutação.

Sinto-o, pela primeira vez em muitos anos.

Mesmo aquela mulher, que vivia em Hisn como um eremita, notara o califado de Ali Yusuf em perda. O respeito ao reino de Marraquexe já não era o de outrora.

Pelas taifas de Sevilha, Córdova, Mértola ou Badajoz corria já um claro, embora ainda ténue, rumor de revolta.

Ismar sabe do que falo – avisou a criada.

Incentivado por ela, Abu Zakaria foi ao encontro daquele príncipe de Córdova, que viria a ser um dos mais ferozes inimigos de Afonso Henriques e do nosso futuro reino de Portugal-


Córdova, Fevereiro de 1133


- Já vos esperava.

O Governador levantou-se ao ver Abu Zakaria entrar no seu salão privado, situado no primeiro andar do magnífico Azzahrat.


Construído dois séculos antes pe3lo mãos célebre califa da Andaluzia, o valorosa e sapiente Abd al Rahman III, aquele grandioso palácio destinara-se a albergar o detentor do trono de Córdova e a sua família, os seus infindáveis criados e o seu bem recheado harém.

O Rapaz do Trompete
















A vida é fugaz, um sopro, um suspiro, um abrir e fechar de olhos. Antes, o nada, depois, o nada de novo. Entre os dois nadas, a vida. 

Debruço-me sobre ela, braço esticado, revolvendo com os dedos da minha imaginação as recordações que por lá existem. Puxei uma ao acaso, já amarelecida pela idade…há quantos anos! 

Eu teria para aí os meus dezanove, vinte anos, estudava então no Instituto Superior de Estudos Ultramarinos, que em 1961 mudou para Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina (ISCSPU) por causa dos novos ventos da política internacional de então.

O meu pai alugara-me um quartinho numa casa particular pertença de mãe e filha, viúvas, que para sobreviverem arrendaram três quartos que milagrosamente conseguiram fazer sobrar de um primeiro andar do velho prédio de azulejos azuis que dava para o Jardim do Príncipe Real - tal como as magníficas portas do Palacete onde, então, funcionava o meu Instituto.

Estávamos no primeiro ano da década de 60. Em Janeiro, Henrique Galvão, numa operação com o nome de código Dulcineia - surripiou, em pleno alto-mar, o paquete Santa Maria para desespero de Salazar  que ficou possesso  e regozijo da tímida oposição.

Lembro-me, perfeitamente,  de parar no passeio para ver o cabeçalho do jornal “O Século” que relatava, com uma grande fotografia do paquete, a notícia que tinha foros de escândalo nacional.

Ri-me para dentro como o cão Mutley. Estávamos no tempo em que até o apontar, para além de feio, era perigoso.

Mas, quanto ao resto, tudo era calmo naquela Lisboa pacífica e provinciana, e o meio estudantil universitário ainda tinha que aguardar uns anos pelos ventos agitados de Maio de 68 para dar de si.

Nunca mais regressei ao “meu” Jardim do Príncipe Real onde, nas horas de lazer, me deliciava com as leituras do Pitigrilli e nas de aperto, para os exames, media forças com a sebenta de Princípios Gerais de Direito para tentar perceber aquelas vinte e tal páginas em que o Prof. Adriano Moreira explicava as diferenças entre Direito Público e Privado. 

Essa explicação seria, anos mais tarde, feita por Freitas do Amaral, muito melhor e com um terço das páginas...

Para além disto, era o retrato rotineiro dos jardins de Lisboa, com os magalas a namoriscarem as sopeiras, o fulano que vendia a banha da cobra e que, estacionado no passeio, desertava sobre as maravilhas do produto que fazia bem a tudo e  tinha a ver com uma cobra que toda a gente esperava ver quando ele abrisse a mala que estava no chão, a seus pés, e que afinal só guardava os frascos da poção mágica que começavam a ser vendidos quando a conversa já não dava para esticar mais e o pessoal à sua volta ameaçava desertar.

E havia também um sujeito que parava muito por ali, com aspecto de chuleco, ares de galã dos “pampas”, morenaço, calças justas, botas à vaqueiro e andar à Yul Brynner, e ao que diziam as más-línguas, empalitava o Mister Cork, da Casa das Cortiças, ali ao lado, do nosso Instituto, que tinha tanto de gordo, barrigudo e mesureiro   a despedir-se dos clientes estrangeiros, como a mulher, muito mais nova que ele, tinha de “boa”.

Finalmente, havia a minha vizinha da cave e como último personagem desta história de memórias, o malfadado rapaz do trompete.

Ela, era uma jovem linda como os amores, o seu rosto, o de uma boneca que me deixava fascinado como o passarinho se hipnotiza  pelo olhar da serpente.

Não a podia ver à janela pois a cave, onde morava, por baixo de mim, apenas dava para um pequeno e esconso saguão, mas sempre que nos cruzávamos à saída ou entrada do prédio era um encantamento para mim. Segui-a com o olhar e perguntava-me como é que uma rapariga tão linda podia sair daquela cave escura, húmida e mal cheirosa em vez de um palácio a que a sua beleza lhe dava direito?

Eu era um aluno universitário, coisa rara naquele tempo, ela uma pobre rapariga que nem a 4ªclasse teria e, no entanto, os meus olhos enchiam-se com a sua figura e eu, tímido,  sentia-me como um barco à deriva aguardando a orientação de um olhar seu que nunca veio.

Jamais trocámos palavra, nem um simples bom-dia, mas ela era, definitivamente, a eleita do meu coração, a musa inspiradora dos meus sonhos… até que um dia despertei para a realidade ao som de um estridente, agudo e desafinado trompete, desesperadamente soprado por um não menos desafinado músico… era o namorado.

Maldito, não só se tinha apropriado da minha secreta namoradinha como, ainda por cima, fazia-se anunciar junto dela com aquele maldito trompete!

Que desperdício, junto de uma rapariga tão linda tocava-me trompete… raios o partam, como eu o invejei!

A esta distância, as paixões da juventude, tal como as cartas de amor de Fernando Pessoa, parecem-nos ridículas.

Em boa verdade, aos 20 anos estava descomandado e ter-me-ia apaixonado perdidamente por qualquer linda ou não linda, jovem que ousasse levantar certos olhares para mim.

O que eu não sabia e vim a perceber mais tarde, é que me limitava a cumprir instruções da “mãe" natureza que em código cifrado no meu ADN, exigia que transmitisse os meus genes à fêmea mais bonita da minha tribo para que os meus filhos também nascessem lindos e tivessem, por isso, mais oportunidades de continuarem os meus genes pelas gerações seguintes.

A beleza, entre nós, representa um trunfo para a procriação, as contas bancárias viriam mais tarde...

Já lá dizia Vinícius de Morais, “… que me perdoem as feias mas eu prefiro as lindas…" 

E é assim, simples coisas da biologia transformadas em lindos romances de amor, pois não me consta que a Dulcineia do D. Quixote, ou a Julieta do Romeu, fossem vesgas ou tivessem borbulhas na testa…

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