Memórias Futuras
Olhar o futuro pelo espelho retrovisor da história. Qual história? Que futuro?
sábado, março 12, 2011
BATISTA
CANSADA
DE
GUERRA
Episódio Nº 53
Apesar disso e dos luxos de dona Brígida, o doutor teria deixado um pecúlio, mesmo pequeno, não houvesse se metido em política para satisfazer a amigos e honrar a esposa, cujo pai em tempos passados chegara a conselheiro municipal.
A eleição para prefeito, a manutenção do partido político, os anos de administração com o tempo da clínica reduzido, o desfalque dado por Humberto Sintra, tesoureiro da Intendência, correligionário e cabo eleitoral, um dos baluartes da vitória, desfalque abafado e coberto na íntegra pelo doutor com a hipoteca da casa, e sobretudo a campanha seguinte, ruinosa, deixaram-no derrotado, desiludido e sem tostão.
Saiu da disputa eleitoral de nervos desfeitos e coração pesado. Os desgostos consumiram-lhe a alegria habitual, transformaram-no num ser triste e impaciente; se não houvesse morrido em, seguida a um enfarte fulminante, não teria deixado sequer a fama de bondoso e caritativo. Quando dona Brígida secou as lágrimas para atender ao inventário, encontrou-se reduzida à mísera pensão de viúva de médico da saúde pública estadual e às incobráveis contas de consultas.
Dois anos depois do inesquecível enterro do doutor Ubaldo Curvelo, seguido da igreja ao cemitério por toda a cidade de Cajazeiras do Norte, ricos e pobres, correligionários e adversários, Governo e oposição, os grupos escolares e a Escola Normal, a situação de dona Brígida e de Dóris fizera-se insustentável – a hipoteca da casa a vencer-se, o dinheiro mensal insuficiente, o crédito esgotado.
Nem as aparências dona Brígida conseguia mantê-las, por mais remendasse vestidos e tentasse esconder apertos e vicissitudes. Os comerciantes exigiam o pagamento das contas, a memória abençoada do doutor ia ficando para trás, dissipava-se no tempo, já não conseguiam viver às suas custas. Via-se dona Brígida na iminência de descer do trono de Rainha Mãe. Primeira-dama do Município durante a gestão do falecido marido, mesmo depois da derrota mantivera a majestade e, falecido o doutor, fez-se ainda mais altaneira e arrogante.
Uma das comadres, dona Ponciana de Azevedo, língua-de-trapos, merecedora de praça maior onde exercer, apelidou-a de Rainha Mãe em reunião das paraninfas da festa da Senhora Sant’Ana, e perdeu tempo e veneno: o título agradou a dona Brígida, caiu-lhe bem.
No sacrifício e na raça conservara manto e ceptro, mas já não enganava ninguém. Dona Ponciana de Azevedo, vingativa e persistente, calada da noite enfiou um recorte de jornal sob a porta da casa de dona Brígida: “Rainha da Sérvia no exílio passa fome e empenha as jóias”. Jóias, possuíra uma meia dúzia, nos bons tempos; vendera até os últimos anéis a um turco da Bahia, regatão a comprar de casa em casa ouro e prata, santos mutilados e móveis antigos, caídos de moda, escarradeiras e penicos de louça. Fome ainda não passara – nem ela nem a filha – a inesperada gentileza do capitão Justo impedira o pior quando os demais comerciantes de secos e molhados lhe cortaram o crédito.
Gentileza talvez não fosse a palavra correcta. Homem de pouca ilustração, Justiniano Duarte da Rosa não era de finuras e rodeios, de subentendidos gentis. Um dia parou junto à janela de onde dona Brígida comandava a rua, nem deu boa tarde, directo e rude:
- Sei que a Excelentíssima anda comendo da banda podre, não tem mais onde comprar. Pois no meu armazém pode comprar fiado, de um tudo e quanto quiser. O doutor tinha cisma comigo, mas era um prócer.
O capitão aprendera a palavra prócer numa recente viagem á capital.
INFORMAÇÕES ADICIONAIS
Durante cinco séculos, esta tela foi mantida em Turim como uma das muitas "mortalhas de Cristo", que era venerada como relíquia em toda a Europa. Foi a partir de 1898 que começou a tornar-se "a única verdadeira".
O primeiro passo foi o de "provar" que as manchas no lençol foram um "instantâneo" do corpo de Cristo.
Depois divulgou a ideia de que o "retrato" tinha-se produzido pela especial energia divina desprendida no momento em que Cristo ressuscitou. O sudário foi então convertido na prova "científica" da ressurreição de Cristo e, portanto, era a supremacia do catolicismo sobre as restantes igrejas cristãs.
Para divulgar este "prodígio” surgiu na Igreja Católica uma nova "ciência" : a Sindonologia (estudo do Sudário), com especialistas de vários países, livros e publicações em vários idiomas, conferências regulares e simpósios em grandes cidades do mundo.
sexta-feira, março 11, 2011
VÍDEO
Enternecedora a forma como o cão se comporta na brincadeira com o bébé. Ele entendeu perfeitamente o que ele queria... talvez porque ela, a brincadeira, tambem esteja no seu ADN.
Javier Labadon, mais conhecido pelo nome artístico EL ARREBATO, é um cantor espanhol de rumba-pop e flamengo. Começou a sua vida artística em 1985 e recentemente (Set/2010), pôs à venda o seu último trabalho. Tem vários discos de platina e é um dos grandes da música espanhola.
TEREZA
CANSADA
DE
GUERRA
Episódio Nº 52
Devia colocar Dóris na relação? Com ela fora diferente, tivera de noivar e casar, no padre e no juiz, e não a derrubara em nenhum dos dois quartinhos escuros e, sim, na alcova de solteira da casa da Praça de Matriz, quando, após o acto civil e a cerimónia religiosa, “a gentil nubente que hoje inicia a trajectória da felicidade na senda florida do matrimónio” (na frase poética do padre Cirilo) se retirara para trocar as fraldas, vestir-se em função da viagem de trem no início da lua-de-mel, para cada situação um traje diferente, cada qual mais caro, de lascar!
Nem em cubículo de colchão sem cama, nem em quarto elegante do Hotel Meridional, na Bahia, onde ficaram hospedados. Ali mesmo, na alcova, nas vizinhanças da sala, na qual, sob o comando da sogra, dezenas de convidados liquidavam os comes e bebes, um desparrame de comida, um desperdício de bebida. Ali mesmo o capitão começou a cobrar a despesa feita, aquele disparate de dinheiro posto fora.
Acompanhara Dóris e a ajudara a despir-se, arrancando véu, grinalda, vestido de noiva num atropelo, na pressa de romper lhe os ossos magros. Pôs-lhe os dedos sobre os lábios a impor-lhe silêncio: na sala próxima a elite da cidade, o que nela havia de mais importante e fino, a nata, matava a fome e a sede, vorazmente, uns ratos. A casa cheia, Dóris não poderia sequer gemer.
Nas mãos pesadas de Justiniano Duarte da Rosa saltaram os botões do corpinho, desfizeram-se as rendas da calçola. Dóris arregalou os olhos, cruzou os braços sobre o peito de tísica, não pôde conter um estremeção, sua única vontade era gritar, gritar bem alto, tão alto que toda a cidade ouvisse e acorresse.
O capitão viu os braços em cruz sobre os seios mínimos, os olhos fixos, o estremecimento, tanto medo, tanto que o esgar dos lábios a prender os soluços parecia um sorriso. Arrancou o paletó e as calças novas, passou a língua nos beiços, aquela lhe custara fortuna, conta aberta no armazém, vestidos e festas, despesas diversas, a hipoteca e o casamento.
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Justiniano Duarte da Rosa festejara trinta e seis anos de idade quando se uniu em matrimónio à Dóris Curvelo, de catorze anos completos, filha única do falecido doutor Ubaldo Curvelo, ex-perfeito, ex-chefe da oposição, médico cujo desaparecimento toda a cidade lastimara. A memória abalada, a fama de honradez no exercício da medicina – “um crânio no diagnóstico”, segundo o farmacêutico Trigueiros; “a providência dos pobres”, na voz geral – fora tudo quanto deixara à mulher e à filha, de doze anos, além da casa hipotecada e montes de consulta a cobrar.
Em vida do doutor, não passaram dificuldades. Dono da maior clínica da cidade, onde quatro médicos lutavam para sobreviver, obtinha o necessário ao sustento da família e4 a certa ostentação ao gosto de dona Brígida, primeira-dama da comuna por condição e merecimento; pudera, inclusive, comprar e pagar casa na Praça da Matriz.
Boa parte da clientela, constituíam-na pobres diabos sem ter onde cair mortos. Muitos andavam léguas e léguas para chegar ao consultório; os mais afortunados traziam como honorários raízes de inhame ou de aipim, uma abóbora, uma jaca; outros nem isso, somente palavras tímidas, “Deus lhe pague seu doutor”; alguns recebiam ainda dinheiro para os remédios, não tem limites a necessidade naquele país da divisa. (clique na imagem da Tereza com o vira-latas) .
INFORMAÇÕES ADICIONAIS
“SANTO SUDÁRIO” (2)
As Cruzadas, descarregaram sobre o ocidente uma inundação de relíquias, a maioria delas falsas, especialmente as pertencentes aos três primeiros séculos do cristianismo.
A inflação atingiu seus níveis mais elevados nos séculos XIV e XV, quando a indústria de manufactura de relíquias dava trabalho a alguns dos mais conceituadas artífices no mundo mediterrâneo oriental.
O mercado nunca se saturou, muito pelo contrário, a procura tem permanecido acima da oferta. Durante vários séculos, potentados, santuários e igrejas rivalizaram na posse de relíquias
Esta é a análise feita pelo historiador e filólogo espanhol Juan Eslava Galán bem documentado em seu livro "O Sudário de fraude e as relíquias de Cristo" (Editorial Planeta, 2004), que reúne histórias das relíquias mais incríveis (gotas de leite da Virgem, penas e ovos do Espírito Santo e várias cabeças de João Batista ...) e até mesmo grotescas como, por exemplo, o prepúcio de Jesus conservado e venerado como relíquia em pelo menos três lugares na Europa no século XIV.
quinta-feira, março 10, 2011
TEREZA
CANSADA
DE
GUERRA
Sendo um desportista, o capitão preferia naturalmente aquelas que ofereciam certa resistência inicial. As fáceis, com maior ou menor conhecimento e prática, não lhe davam a mesma exultante sensação de poder, de vitória, de difícil conquista.
A timidez, a vergonha, a oposição, a revolta, obrigando-o a empregar a violência, a ensinar o medo e o respeito devidos ao senhor, amo e amante, beijos conseguidos no tapa, isso, sim, dava nova dimensão ao prazer, fazia-o mais profundo e denso.
Em geral tudo terminava pelo melhor, uns socos, uns tabefes, por vezes uma surra, quase nunca o cinto ou a taca de couro cru – foi na taca que Ondina lhe abrira finalmente as pernas.
No fim de uma ou duas semanas, no máximo, a felizarda estava pelos beiços não querendo outra coisa, algumas até se tornavam chatas de tanto agarramento, e essas duravam pouco tempo na condição de favorita. A citada Gracinha, por exemplo: para comê-la em paz tivera de reduzi-la no soco, deixando-a desacordada, tal o seu pavor. Não passara uma semana após a amarga noite onde aprendera o medo e o respeito, e suspirava de impaciência, chegara a audácia de vir convidá-lo em hora imprópria.
Em Aracajú, onde ia frequentemente a negócio, Veneranda a rir, gaiata na troça, lhe propunha moça donzela, quase sempre meninota arrombada mais ou menos recente. Castelo de luxo, quase oficial pelo grande número de políticos a frequentá-lo, a começar pelo nobre governador (a melhor repartição pública do estado, no dizer de Lulu Santos, montado em suas muletas, freguês assíduo), ademais da justiça, desembargadores e juízes, da indústria, do alto comércio e dos bancos, protegido pela polícia (o lugar mais ordeiro e decente de Aracajú, incluindo casas das melhores famílias, ainda na opinião do já citado rábula), numa única ocasião romperam-lhe a tranquilidade ambiente necessária ao conforto e à potência dos ilustres clientes, e quem o fez foi o capitão Justo, tentando demolir os móveis do quarto, onde descobriu o truque da pedra-ume, usado por Veneranda para criar a ilusão de tampos inteiros em moleca nova vinda do interior. Passada a raiva, findo o tremendo reboliço, fizeram-se amigos e a cafetina, com verniz de letrada, só o tratava de “a fera de Cajazeiras do Norte, desbravador de cabaços”.
No castelo de Veneranda, bom mesmo eram as gringas, importadas do Sul, francesas do Rio e de São Paulo, polacas do Paraná, alemãs de Santa Catarina, todas loiríssimas oxigenadas e fazendo de um tudo. O capitão não despreza uma gringa competente; muito ao contrário, aprecia demais.
Pelos arredores, nos cantos de rua, em povoados, vilas, cidades vizinhas, nas roças sobretudo, naquele interior indigente, sobravam meninas e quem as oferecesse, parentes e aderentes.
Raimundo Alicate, lavrador de cana em terras de usina, em troca de pequenos favores, levava garotas ao capitão. Festeiro, batedor de atabaque, recebendo caboclos, tinha facilidade de conseguir gado de bom corte e quando ele dizia “é donzela” ninguém duvidasse, era de certeza. Também Gabi, dona de pensão de mulheres na cidade, de quando em quando destocava pelo campo material apetecível, mas com a velha proxeneta toda a atenção era pouca para não adquirir gato por lebre.
Em mais de uma circunstância, Justiniano ameaçara fechar seu puteiro se ela tentasse de novo enganá-lo; não adiantava, a vigarista reincidia.
As melhores ele mesmo as recrutava, na roça, no balcão do armazém, em arrasta pés e fandangos, nas andanças com os galos de briga em rinhas próximas e distantes. (clique na imagem)
INFORMAÇÕES ADICIONAIS
Nos finais do Séc.IV apareceram as primeiras relíquias de Cristo: lascas e pedaços de cruz, de autenticidade duvidosa, dado o tempo decorrido desde o tempo de crucificação de Jesus. Elena, mãe do imperador Constantino, começou a levar para Roma as relíquias que havia encontrado nas suas viagens pela Palestina.
Desde então, o culto das relíquias começou em ascensão. Os comerciantes, hábeis, percebendo o lucrativo negócio da compra e venda de relíquias, dedicaram-se a falsificar todo o tipo de “objectos sagrados”.
No século VI não havia igreja, humilde que fosse, que não tivesse as suas próprias relíquias: ossos, dentes e cabelo de "santos", pedaços de pano de suas vestes, tudo o que tinha estado em contacto com os seus corpos vivo ou morto. As mais valiosas eram, naturalmente, as de Maria e de Jesus.
quarta-feira, março 09, 2011
Este pode ser o drama das 4ª Feiras de Cinzas, a seguir ao Carnaval: ela não ter aparecido para desfilar...
TEREZA
Arrastaram-na para o caminhão, ele e Terto. Filipa andou para casa, a pedra verde reluzia ao sol. Rosalvo primeiro ficou parado, ainda sem forças, em seguida caminhou para o cachorro. O animal gemia, a perna ferida.
No estribo do caminhão estava escrito em alegres letras azuis: DEGRAU DO DESTINO. Para fazê-la subir, Justiniano aplicou lhe mais um tabefe, dos bons. Assim Tereza Batista embarcou em seu destino: peste fome e guerra.
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Atiraram-na dentro do quarto, bateram a porta. Ao saltar do caminhão, Justiniano e Terto Cachorro tiveram de carregá-la, prendendo-lhe as pernas e os braços. Pequeno e escuro, no fundo da casa, o quarto possuía apenas uma janela ao alto, condenada, por cujas frestas filtravam-se o ar e a claridade.
No chão, largo colchão de casal, com lençol, travesseiros e urinol. Na parede, penduradas, uma oleografia da Anunciação da Virgem, com Maria e o Anjo Gabriel, e a taca de couro cru. Antigamente houvera cama, mas, por duas vezes, a armação viera abaixo nas peripécias da primeira noite: com a negra Ondina, o diabo solto, e com Gracinha, apavorada, louca de hospício. Justiniano resolvera abolir a cama: o colchão em cima do soalho bem mais cómodo e mais fácil.
Havia um quarto assim no quarto da roça, outro na casa da cidade, atrás do armazém. Quase idênticos, destinados ao mesmo prazeroso fim: as núpcias do capitão Justo com as donzelas recolhidas por ela em suas buscas e encomendas.
Preferia as novinhas, quanto mais nova melhor, recomendava, e exigia cabaço comprovadamente virgem. As de menos de quinze anos, ainda cheirando a leite – como lhe disse Veneranda, cafetina de Aracaju, dada ás letras, ao lhe confiar Zefra Dutra, ainda cheirando a leite mas já fazendo a vida há mais de um ano, aquela Veneranda só na porrada! – as de menos de quinze anos, quando virgens real mente, mereciam as honras de um elo no colar de ouro.
No particular, Justiniano Duarte Rosa agia com estrito rigor. Há quem coleccione selos, milhares e milhares de tipos pelo mundo afora, do falecido rei de Inglaterra a Zoroastro Curinga, empregado dos correios e bom de bisca; outros preferem punhais, como o faz Milton Guedes, um dos donos da usina de açúcar; na capital existem coleccionadores de santos antigos, carunchosos, de caixas de fósforos, de porcelana e marfim e até de figuras de barro das vendidas nas feiras – Justiniano colecciona meninas, recolhe e traça exemplares de cor e idade vária, algumas maiores de vinte e um anos, donas de sua vida, mas para a colecção só contam as bem crianças, cheirando a leite. Só para as menores de quinze anos a honra do colar de argolas de ouro.
Muitas já derrubara, naquele colchão da casa da roça, no colchão da casa da cidade. Algumas, sabidas, em geral as mais velhas, manuseadas em namoros, preparadas; a maioria, porém, composta de meninas medrosas, assustadas, ariscas, fugindo pelos cantos e o capitão dando-lhes caça, um desportista. Certa vez, uma delas se mijou de medo quando ele a alcançou e sujeitou se mijou toda, molhando as pernas e o colchão, coisa mais doida, Justiniano ainda se arrepia de prazer ao lembrar-se.
ENTREVISTAS FICCIONADAS
RAQUEL - Hoje, Sábado Santo, estamos com Jesus numa cafetaria perto do Santo Sepulcro em Jerusalém. Ele bebe chá árabe e eu, enviada especial para as Emissoras Latinas, um café.
JESUS – Raquel, por que me trouxeste aqui?
RAQUEL - Em várias entrevistas o senhor foi evasivo quanto à sua divindade. Mas hoje, eu tenho prova.
JESUS - Prova de quê?
RAQUEL - Que o senhor é Deus, que ressuscitou, eu tenho a prova.
JESUS - Vamos ver... o que tens tu?
RAQUEL - Um lençol, o Santo Sudário.
JESUS – E como é que um lençol vai ser santo, Raquel? Podes ter sido enganada. Trazes contigo esse lençol?
RAQUEL – Como posso trazer, se ele está em Itália, em Turim, escondido numa caixa a sete chaves?
JESUS - Mas, Raquel, de onde tiraste essa história?
RAQUEL - Um sindonólogo, especialista em relíquias, ligou-me e disse-me que o senhor iria ficar sem argumentos. Há grande expectativa para o que nos pode dizer na entrevista de hoje. Então trouxe-o a este lugar. Entre tantas pessoas pode falar livremente ...
JESUS – Se não te explicas melhor... pensarei que perdeste a razão.
RAQUEL – Ao morrer, enrolaram-no numa mortalha, certo?
JESUS – Como posso saber...
RAQUEL - Bem, essa mortalha milagrosamente apareceu séculos mais tarde e nela estava fotografado o seu corpo. Tal como acontece com esta máquina de tirar fotografias ...
JESUS - Não pode ser. No meu tempo não havia essas invenções.
RAQUEL - Esse é o milagre. Seu corpo foi fotografado com a força e a luz da sua ressurreição. Quando o senhor sai do sudário, o seu corpo fica impresso na lençol. A ver, desminta essa prova!
JESUS - Paz, Raquel, acalma-te ...
RAQUEL - Uma chamada! ... Sim, Olá?
- Aqui fala Juan Eslava Galán, de Espanha. Sou um especialista na fraude do Sudário. Eu pesquisei tudo sobre essa relíquia ridícula.
RAQUEL - Fraude, embuste?
JUAN ESLAVA - O Sudário é um pedaço de pano em que um vigarista do século XIV estampou o desenho de um cadáver, dizendo que era o pano que envolveu Jesus Cristo. O fulano já conhecia os princípios da fotografia e conseguiu o efeito de um negativo. Mas, como a montagem não lhe saiu tão bem, resultou um homem com dois metros e com braços que vão além dos joelhos. Creio que Jesus Cristo não era deformado nem tão alto, certo?
RAQUEL - Não, é da minha altura ...
JUAN ESLAVA – Esse vigarista vendeu o tecido como uma relíquia e agora a Igreja Católica o vende como prova da ressurreição de Cristo.
RAQUEL - Temos outra chamada ...
SENHORA – O que diz esse Galán não me convence. O Santo Sudário foi provado não só como verídico, mas como tridimensional, pela própria NASA, a agência espacial dos EUA, que prova melhor vocês querem?
RAQUEL - O que acha disto, Sr. Eslava Galán?
JUAN ESLAVA - Desculpe desapontá-la, senhora, mas cerca de dez anos depois dessa experiência, tão discutível, que se fez com o aparato da NASA, nada menos que o Vaticano ordenou que o lençol fosse sujeito ao teste de rádio carbono 21 a pesquisadores de três laboratórios especializados que concluíram que o sudário era do século XIV. E Jesus morreu no século I.
SENHORA – Esse JUAN ESLAVA quer é confundir os crentes, o vigarista é ele!
JUAN ESLAVA – Acalme-se, senhora, cada qual sabe o que leva na sua mortalha.
SENHORA - O Sudário de Turim é a prova mais irrefutável da ressurreição de Jesus Cristo!
RAQUEL - Bem, então, peçamos a opinião a Jesus. O que acha, o senhor, do lençol?
JESUS - Raquel, não é pouco azul para tanto céu? Como é que um pano, um tecido, um lençol poderá ser prova de vida?
SENHORA - Jesus Cristo também está a mentir porque ele sabe muito bem que esta foi a sua mortalha! ... Agora vou chamar o padre Lorin para demonstrar a veracidade do lençol e até da almofada!
RAQUEL - Enquanto a polémica prossegue, continue connosco. De um café perto do Santo Sepulcro, Raquel Perez.
terça-feira, março 08, 2011
TODOS OS ERROS SE PAGAM,
Um jovem noviço chegou ao mosteiro e logo lhe deram a tarefa de ajudar os outros monges a transcrever os antigos cânones e regras da Igreja. Ele se surpreendeu ao ver que os monges faziam o seu trabalho, copiando a partir de cópias e não dos manuscritos originais.
Foi falar com o velho abade e sugeriu que, se alguém cometesse um erro na primeira cópia, esse erro se propagaria em todas as cópias posteriores. O abade respondeu-lhe que há séculos copiavam da cópia anterior, mas que achava procedente a observação do noviço.
Na manhã seguinte, o abade desceu até às profundezas do porão do mosteiro, onde eram conservados os manuscritos e pergaminhos originais, intocados há muitos séculos.
Passou-se a manhã, a tarde e a noite, sem que o abade desse sinal de vida.
Preocupado, o jovem noviço decidiu descer e ver o que estava acontecendo. Encontrou o velho abade completamente
descontrolado, com as vestes rasgadas, batendo com a cabeça ensanguentada nos veneráveis muros do mosteiro.
Espantado, o jovem monge perguntou:
- Abade, o que aconteceu?
- Aaaaaaaahhhhhhhhhh!!!...
CARIDADE... era CARIDADE!
Eram votos de "CARIDADE" que tínhamos
que fazer...não de "CASTIDADE"!!!
TEREZA
BATISTA
CANSADA
DE
GUERRA
No enlevo do anel, a voz de Filipa ressoa quase afectuosa:
- Tereza, vai juntar as tuas coisas, todas. Tu vai com o capitão, vai morar na casa dele, vai ser cria do capitão. Lá tu vai ter de um tudo, vai ser uma fidalga, o capitão é um homem bom.
Em geral não era preciso repetir ordens a Tereza; na escola a professora Mercedes a elogiava, entendimento fácil, inteligência viva, raciocínio pronto, num instante aprendera a ler e a escrever. Mas essa novidade, Tereza não entendeu.:
- Morar na casa do capitão? Porquê, tia?
Quem respondeu, voz de dono, foi o próprio Justiniano Duarte da Rosa. Punha-se de pé, a mão estendida para a menina:
- Não precisa saber porquê, se acabaram as perguntas, comigo é ouvir e obedecer; fique sabendo, aprenda de uma vez por todas. Vamobora.
Tereza recuou da porta, mas não tão rápida; o capitão a segurou pelo braço. Troncudo e gordo, meão de estatura, rosto redondo sem pescoço, com todo aquele corpanzil, Justiniano era ágil e forte, leve e ligeiro, bom de dança, capaz de romper um tijolo com um soco.
- Me largue – esperneou Tereza.
- Vambora.
Ia empurrá-la quando a menina mordeu-lhe a mão com força, com força de raiva. Os dentes deixaram marca de sangue na pele rugosa e cabeluda, o capitão a soltou, ela sumiu no mato.
- Filha da puta, me mordeu, vai me pagar. Terto! Terto!
- Gritou pelo capanga a ressonar na boleia do caminhão: - Aqui, Terto! E você também! – Dirigia-se aos tios: - Vamos pegar a moleca, não estou para perder tempo.
Terto Cachorro juntava-se a eles, saíam para o quintal.
- E Rosalvo, que é que faz ali parado?
Filipa deu meia, volta encarou o marido:
- Tu não vem? Eu sei o que tu está querendo, cabrão descarado. Vem, antes que eu perca a paciência.
Vida desgraçada, que jeito senão juntar-se aos outros, mas não vou de meu querer, esse pecado, meu Deus, não é meu, é só dela, da coisa ruim, ela bem sabe que a casa do capitão é peste, fome e guerra. Rosalvo incorpora-se à caça de Tereza.
Durou quase uma hora, quem sabe mais, o capitão não marcou o relógio de pulso, cronómetro preciso, mas estavam todos botando os bofes pela boca quando finalmente a cercaram no matagal e Rosalvo foi, pé ante pé, pelo outro lado. Para ele o vira-lata não latiu, atento aos demais. Pela última vez Rosalvo tocou o corpo de Tereza, sujeitou-a com os dois braços, prendendo-a contra o peito e as pernas. Abraçou-se nela antes de entregá-la.
Terto acertou um pontapé no cachorro, deixando-o estendido, uma perna destroçada, foi ajudar Rosalvo. Agarrou Tereza por um braço, Rosalvo segurava o outro, pálido, esvaído em gozo e medo. Ela se debatia tentava morder, os olhos em fogo. O capitão veio vindo, de manso parou à frente da menina, meteu-lhe a mão na cara, a mão grande, gorda, aberta. Uma, duas, três, quatro vezes. Um filete de sangue correu do nariz, Tereza engoliu em seco. Não chorou. Comandante não chora – aprendera – aprendera com os moleques nas brincadeiras de guerra.
ENTREVISTAS FICCIONADAS Nº 83 SOB O TEMA:
Bento XVI, veio ilibar o povo judeu da morte de Jesus, atitude que os representantes da Comunidade Israelita de Lisboa elogiam. “Esperamos que tenha um impacto forte sobre os crentes católicos” refere o rabino Eliezer Di Martino.
O Papa actual, Bento XVI, escreveu um livro, “Jesus da Nazaré”, e a partir da análise dos evangelhos de Mateus, Marcos e João defendeu que o povo não foi culpado pela crucificação de Jesus.
O Papa considera que, quando Mateus fala de “todo o povo”, atribuindo-lhes o pedido da morte de Jesus, “seguramente não exprime um facto histórico: como poderia ter estado presente naquele momento todo o povo a pedir a morte de Jesus?”.
E continua: “A realidade histórica aparece de modo correcto em João e Marcos. O verdadeiro grupo de acusadores é a aristocracia do Templo e, no contexto de amnistia pascal, associa-se a eles a massa de apoiantes de Barrabás”.
Dois mil e tal anos de sofrimento profundo de um povo porque, antes de Bento XVI, nenhum outro Papa veio dizer ao “seu povo”, preto no branco, algo que resulta de uma análise simples, lógica e rigorosa de textos que são os pilares da doutrina da igreja católica num contexto histórico que era conhecido e estava documentado.
Em vez disso, foi prevalecendo ao longo da história, a versão que permitiu uma cumplicidade entre a igreja de Roma e os Imperadores, entretanto “convertidos” à nova fé com o intuito de dar um novo alento e alguma coesão a um Império que se desfazia e que, em troca, cumularam os dignitários dessa nova igreja de riquezas e privilégios passando para o povo judeu o odioso de uma acusação infame.
Todas as religiões assentam numa fé, numa crença em um Deus, é da natureza humana: o homem é um animal crente, a sua sobrevivência, em parte, ter-se-á devido a essa capacidade de acreditar que, inicialmente, não terá sido em Deus nenhum mas tão somente nos avisos, advertências, proibições, orientações e ensinamentos que recebiam nos primeiros anos de vida, dos seus progenitores e restantes membros do grupo mais velhos.
Todos aqueles que não “acreditaram” e não seguiram esses conselhos e orientações, ao longo de gerações, não sobreviveram a tempo de procriarem. A vida estava reservada para os crentes, os outros ficaram pelo caminho.
As religiões foram o passo seguinte, ditando comportamentos, dizendo o que estava bem e estava mal, estruturando as sociedades através dos poderes que as pessoas que constituíam as cúpulas dessas religiões acumulavam e sempre na defesa desses mesmos poderes e interesses.
O percurso tem sido longo, hoje, esses dignitários já não se fazem respeitar, amar e temer pelos seus seguidores como deuses na terra mas, apesar desse caminho, em grande parte desbravado com a alavanca indispensável da ciência, estamos ainda longe de nos subtrair aos perigos das religiões como bem sentimos pela atitude dos grupos fundamentalistas ou radicais islamitas, cristãos ou judeus.
Tarde e a más horas, o Papa Bento XVI deu agora uma ajuda na eliminação de um desses riscos que, no meu curtíssimo tempo de vida no espaço deses dois mil anos, custou a morte e o sofrimento a milhões de contemporâneos meus.
segunda-feira, março 07, 2011
VAMOS SORRIR…
- Doutor, quando era solteira tive que abortar várias vezes. Agora, que sou casada não consigo engravidar.
- O seu caso, minha senhora, é muito comum: simplesmente não se reproduz em cativeiro…
- Doutor, tenho tendências suicidas. O que devo fazer?
- Em primeiro lugar paga a consulta.
- Doutor, sou a mulher do Zé, o que sofreu o acidente. Como é que ele está?
- Bem, da cintura para baixo ele não teve sequer um arranhão.
- Que bom, doutor, e da cintura para cima?
- Não sei, essa parte ainda não trouxeram.
Após a cirurgia:
- Doutor, entendo que vistam de branco mas para quê essa luz tão forte?
- Meu filho, eu sou o São Pedro.
No psiquiatra:
- Doutor, tenho o complexo de que sou feia.
- Qual complexo, qual quê… tem toda a razão.
Doutor, vim aqui para que o senhor me retire os dentes.
- Mas minha senhora, eu não sou dentista, sou gastroenterologista… e a senhora não tem dentes nenhuns.
- É claro, engoli-os todos.
Não vai chegar para o bico do Joventino, ah! e nem para o de Rosalvo, o capitão, finalmente acaba de contar e recontar o conto e quinhentos mil-réis , muito dinheiro, dona Filipa.
- Pegue o cobre, conte de novo se quiser enquanto faço o vale. Arranca uma folha de pequeno caderno de notas, com um lápis rabisca a cifra, assina – assinatura complicada da qual muito se orgulha.
Tome o vale para as compras no armazém. Pode comprara de uma vez ou ir tirando aos poucos. Cem mil-réis, nem mais um tostão.
Rosalvo levanta a vista para o dinheiro. Filipa dobra as cédulas, envolve-as no papel onde o capitão garatujou a ordem, guarda o pacotinho no cós da saia. Estende a mão, Justiniano Duarte da Rosa pergunta:
- O quê?
- O anel, vosmicê disse que ia dar o anel.
- Disse que ia dar à moça, é o dote dela, - Riu: Justiniano Duarte Rosa não deixa ninguém ao desamparo.
- Guardo comigo, capitão, moça dessa idade não sabe o valor das coisas, perde, larga em qualquer lugar. Guardo para ela. É minha sobrinha. Não tem pai nem mãe.
O capitão fitou a mulher à sua frente, cigana terrível.
- Entrou no acordo, capitão, não foi mesmo?
Trouxera o anel para dar à menina, para ganhar-lhe a simpatia, não tem valor nenhum, vidro de cor, dourado latão. Retira-o do dedo, ouro falso, falsa esmeralda, vistosa pedra verde. Afinal já não tem motivos para agradar à menina, pagou o preço combinado, é o dono.
Filipa limpa a pedra na barra do vestido, coloca o anel no dedo, admira-o contra o sol, satisfeita. De nada no mundo gosta tanto como de colares, pulseiras, anéis. Todas as míseras sobras de dinheiro, gasta-as em quinquilharias nos mascates.
O capitão Justo estira as pernas, levanta-se, tilinta em seu pescoço o colar de argolas de ouro, chocalho de virgens. Amanhã uma nova argola, de ouro dezoito.
- Agora chame a moça, vou embora.
6
Ainda no embevecimento do anel, Filipa elevou a voz:
- Tereza! Tereza! Depressa.
Vieram a menina e o cachorro, permaneceram na porta à espera:
- Chamou, tia?
Ah! se Rosalvo não estivesse acorrentado ao chão, se uma centelha se lhe acendesse no coração e o pusesse de pé, amo e senhor como deve ser um marido, de pé diante de Filipa! Rosalvo tranca a boca, prende no peito pragas e maldições a sufocá-lo. Filipa, peste ruim, mulher sem coração, sem entranhas, mãe desnaturada! Um dia tu vai pagar tamanho pecado, Filipa; Deus há de pedir contas, não se vende uma sobrinha órfã, uma filha de criação, nossa filha, Filipa, vendida igual a um bicho, tu é uma peste, peste ruim.
INFORMAÇÕES ADICIONAIS
JESUS NO TALMUD - UM PROFESSOR
O Judaísmo começou a tomar forma cerca de cinco séculos antes de Jesus, mas foi criado e desenvolvido séculos depois do Templo de Jerusalém ter sido destruído e depois, também, de se ter terminado o Talmud.
O Talmud é o texto central do judeísmo rabínico e só perde em importância para a Bíblia hebraica. Ele recolhe a interpretação, especialmente os comentários da Torá (cinco primeiros livros da Bíblia, o Pentateuco) de professores e rabinos de diferentes escolas a partir do século II AC ao século V DC e durante a diáspora judaica.
Para conhecer o Judaísmo não é suficiente conhecer a Bíblia como muitos cristãos acreditam. É essencial saber o Talmude, a lei judaica oral.
No Talmud fala-se de Jesus como um professor que criou sua própria escola e teve discípulos. O Talmud foi censurado pela igreja cristã em 1123, retirando tudo o que lá estava dito sobre Jesus. Por isso, os judeus de hoje não encontram, nas edições actuais do Talmud tais referências e poucos sabem que o Talmud via em Jesus um personagem positivo.
Não está entre os judeus que rejeitam Jesus, o grande cientista Albert Einstein, que escreveu nas suas reflexões:
- “Na moral poderosa da tradição do povo judeu é claro que "servir a Deus" é o mesmo que "servir os seres vivos." E esse é o tema da luta dos melhores filhos do povo judeu, especialmente os profetas e Jesus... Em Jesus há uma doutrina capaz de curar a humanidade de todos os males sociais”.
domingo, março 06, 2011
HOJE É DOMINGO
"… ah!, abençoado descanso que nunca mais chegas..." - O trabalho feito castigo, herança da nossa cultura ancestral judaico-cristã, (parece que nos portámos mal no paraíso...) persegue-nos, só nos dá tréguas ao Domingo.
Eu também respeito essas tréguas: ao Domingo não há história da Tereza, nem Entrevistas Ficcionadas com Jesus ou as respectivas Informações Adicionais.
Não gosto de ser desmancha-prazeres ou de armar em diferente. Descansar ao Domingo, afinal, é quebrar a rotina dos dias de trabalho mas, como acontece invariavelmente de sete em sete dias, acaba também por ser outra rotina.
Tal como vos dizia, meus amigos, tudo na vida são rotinas na vã tentativa de iludir o tempo… o tempo da nossa vida.
E cá estou eu, a tomar o pequeno-almoço no Café do costume, de jornal à frente, alheado das conversas que me rodeiam… sim, é verdade, a leitura do jornal tornou-se num vício para mim. Aprecio o contacto com o papel, o seu cheiro, gosto de o desfolhar.
Notícias, opiniões, comentários, mesmo as que já são conhecidas, têm que ser confirmadas na leitura dos jornais. Neste aspecto, o computador veio tarde para mim que comecei a comprar o jornal atirando para o passeio, onde eles estavam alinhados ao lado uns dos outros, uma moeda de escudo.
Percebo como estou velho… lembro-me de ter vivido demasiadas coisas que pertencem a um passado recuado, direi mesmo que algumas já são história: a independência de Moçambique, em 25 de Junho de 1975, na cidade da Beira, a guerra colonial de Angola nos seus primórdios, em fins de 1962, e mais recuado ainda, sem possibilidade de me lembrar, a Rua José Patrocínio, no Poço do Bispo, onde nasci, num prédio com terraço, revestido a azulejos verdes que, se ainda estiver de pé, está em ruínas, não me terá sobrevivido…
Sorriu interiormente quando pego no saco do ténis e vou jogar com o meu amigo Carlos como se o tempo e os anos não tivessem passado. Que diriam os velhos da aldeia dos meus avós paternos, tios e parentes em boa parte, pelo menos no tratamento: o Ti Zé, o Ti Manel, a Ti Maria, todos “tios”e “tias”?
Uma coisa é certa, era impossível alguém morrer sem que a aldeia não o soubesse na hora… a aldeia era grande família!
Sim, podia não haver abastança, em alguns casos haveria mesmo fome, não sei, a comida então era pouca e não daria para encher completamente a barriga de muitos deles, mas não viviam a humilhação dos caixotes de lixo nem corriam o risco de serem ignorados, esquecidos, e se não tinham um Centro de Saúde para se juntarem esperando a consulta do médico, as mulheres tinham a fonte onde se sentavam, primeiro à espera de vez para encherem o cântaro, ou simplesmente para porem a conversa em dia, consoante a disponibilidade do tempo para as tarefas da casa, e quando já não eram horas de encontro na fonte sentavam-se em pequenas cadeirinhas de verga, no pial da porta, a apanhar o fresco do fim da tarde e a conversar com as vizinhas que passavam.
Os homens, esses, entretinham-se nas hortas ou trabalhavam para algum patrão à jorna, se havia trabalho, e quando o sol ameaçava finalmente pôr-se naqueles intermináveis dias de verão, juntavam-se em frente das tabernas que funcionavam também como pequenas mercearias, conversando e esfumaçando os seus cigarros de tabaco de Onça Superior enrolados em folhas de papel Zig-Zag.
Essa aldeia dos meus avós já não existe. A auto-estrada da Beira, que lhe passa ao lado, do outro lado do rio, roubou-lhe grande parte do trânsito que a atravessava e desferiu-lhe o golpe de misericórdia.
"Malditas" auto-estradas… não bastava já o êxodo para as cidades, foi também necessário retalhar o país, isolando as terras, as pequenas localidades, retirando-lhes importância, humilhando-as?
Bom Domingo para todos.