Memórias Futuras
Olhar o futuro pelo espelho retrovisor da história. Qual história? Que futuro?
sábado, dezembro 19, 2015
António
Costa fez uma campanha suicida nas últimas eleições, primeiro a colar cartazes
parvos sobre um assunto sensível como o desemprego e depois a agitar um Estudo
Económico e pedindo aos eleitores que votassem nele porque era o único que
tinha um Estudo e o agitava para que ninguém duvidasse...
Ao
contrário, Passos fez a campanha certa, utilizando os argumentos certos num
momento que era difícil para si depois de tantos cortes e sacrifícios impostos.
Passos
ganhou com maioria relativa, inclusive, teve mais votos do que o partido
socialista mas, surpreendentemente, quem é hoje o 1º Ministro é Costa e não
Passos.
Então,
parece podermos concluir que enquanto um é bom nas campanhas, nas promessas e
nos argumentos, o outro é bom nas negociações e nos entendimentos, o que revela
que esta é a principal característica de um bom político em desfavor de um bom
vendedor.
Hoje,
a Assembleia da República, parece uma palete de cores porque, ao fim e ao cabo,
o que nós começamos a ver é que cada partido, esquecidas as birras, pouco
abonatórias da credibilidade, vota de acordo consigo próprio, as suas
ideologias, os seus programas.
Aconteceu,
naturalmente, na questão da adopção plena das crianças por casais homossexuais,
mas aconteceu igualmente com as votações sobre a proposta para reduzir para
metade a contribuição extraordinária de solidariedade em que o BE, PCP e PEV
chumbaram a proposta do PS enquanto o PSD e o CDS votaram a favor.
Já
quanto à sobretaxa do IRS, toda a esquerda afinou pelo mesmo diapasão e só o
PSD e o CDS se opuseram, tendo sido aprovada uma solução de carácter
progressivo pela qual BE e PCP se tinham batido nas negociações com o PS.
E
foi mais ou menos assim: os partidos da Extrema esquerda nuns casos alinharam
com o PS, noutros não e a direita deixou de parte as birrinhas e foi igual a si
própria, como deve ser e o Parlamento pareceu uma paleta de cores diferentes
reproduzindo aqui lo que é o país
politicamente, expresso pelo voto democrático.
Deixou
de se ver o voto em “manada” e amanhã, desfeita a PAF, teremos o CDS a votar
diferente do PSD.
É
preciso equi líbrios, as margens de
decisão de qualquer governo em Portugal é muito pequena por razões que todos
nós sabemos.
É
preciso lutar e tentar influenciar em Bruxelas para que as coisas em termos de
política europeia melhorem para os países do Sul, e foi isto que António Costa
sempre defendeu, disse e escreveu, em vez da subserviência a Shauble e a Merkel.
Por
isso, António Costa é o homem certo no lugar certo e independentemente de ele
conseguir, ou não, estes equi líbrios
difíceis com a extrema esquerda, durante mais ou menos tempo, ele está a moldar
o eleitorado e a conqui star votos
para o PS em próximas eleições.
Talvez, quem sabe, para o regresso a um quadro
democrático liderado por António Costa com a maioria de votos, mesmo que seja
só relativa, dada a sua grande capacidade negocial.
Tieta, a viúva alegre... |
Tieta do Agreste
(Jorge Amado)
EPISÓDIO Nº 35
Moreno, alto e forte, a suar saúde e inocência na batina. Se fosse
- Se o bicho papão qui ser me pegar,
grito por você. – Está tocada pelas atenções e gentilezas: - Tomaram tanto
incómodo por nossa causa.
- Demais. – A voz musical de Leonora, em tom menor, não se eleva nunca: - A
gente pode ficar as duas no mesmo quarto.
- Agora já está tudo determinado, é tarde – diz Tieta, por que diz?
A sombra de Lucas, na alcova.
Astério, Ricardo e Peto sem sapatos, conduzem malas e pacotes.
- Cuidado com essa caixa, Peto. É frágil. Aliás o melhor é eu entregar logo.
Antonieta toma o embrulho majestoso, coloca-o sobre a mesa da sala de jantar,
em torno à ansiosa curiosidade dos parentes:
- Uma lembrança para tua casa, Perpétua.
Experiente, Astério desfaz os nós do cordão, enrola-o, dobra o papel grosso,
ótimos, mesmo sujos serão úteis na loja. Cresce a ansiedade ante o vistoso
papel para presente, fita cor-de-rosa, larga, o laço formando uma flor.
- A fita você desata, Perpétua – Astério cede-lhe o lugar.
Contendo o alvoroço, Perpétua toma da ponta da fita, lê a etiqueta: LOJA DO
SENHOR JESUS – Objectos Religiosos à vista e a prazo.
Pague a sua devoção em
doze meses. Será, por acaso, aqui lo
com que há tanto tempo sonha, acalentado projecto de compra, encomenda a ser
feita na Baía?
Teria havido inspiração divina a comandar a escolha, iluminando
o pensamento de Tieta? Deus, por vezes, usa empedernidos pecadores como
instrumento para compensar os justos.
Puxa a fita, surge a caixa branca. Retira a tampa, entrega-a a Astério – de que
matéria é feita assim tão leve? Isopor, explica Antonieta ao cunhado. Uma
exclamação geral de admiração e aplauso.
Do peito em chamas de Perpétua escapa
um oh! de gozo profundo ao enxergar, na caixa de isopor, o objecto de seus
sonhos, apenas bem maior em tamanho e em boniteza, em virtude certamente.
Quanto maior, mais bonita e cara a imagem, mais santa e milagrosa. Deus
inspirara Antonieta: na caixa, alto-relevo em gesso, o Sagrado Coração de
Jesus. Nos cabelos, na face, nas mãos, nas vestes, no manto, todas as cores do
arco-íris.
Exposto ao rubro, amantíssimo coração, a chaga aberta. A gota de
sangue vermelha, descomunal rubi. Peça digna do altar-mor da Matriz de Aracajú.
Ajudada por Astério e Ricardo, com extremo cuidado, Perpétua retira a pesada
efígie – nem quadro nem escultura, tendo algo dos dois e sendo coisa nova,
jamais vista em Alegre, alto-relevo para ser pendurado em parede.
Nas costas, forte armação de arame; à parte, uma espécie de base de madeira
onde pousá-la. Até os pregos vieram, grandes, especiais, de aço cromado, coisa
de ver-se. Tieta respira:
- Felizmente chegou inteiro. Para você botar em sala de visitas, Perpétua.
- Ai, que coisa mais divina! Até tenho palpitações. Não sei como agradecer,
mana!
Perpétua beija a irmã na face, de leve e de longe. Assim beija os filhos e a
mão de Dom José, a do padre Mariano. Ao Major como teria beijado? Se lhe fosse
perguntado, Perpétua responderia que os casais unidos em santo matrimónio,
abençoados por Deus, têm direito ao convívio carnal. Direito e obrigação. Mas
certamente não diria que da lembrança daqueles beijos ela vive.
Peto alisa o isopor:
- Dá a caixa para mim, mãe?
- Está maluco? Largue essa caixa aí. Deixe também o papel e o cordão, Astério.
Posso precisar.
- Vou buscar o martelo, mãe? – Ricardo se oferece, segurando a peanha.
Não tem nenhum que se compare nem aqui ,
nem em Esplanada. O
de dona Aida e de seu Modesto, ao lado deste desaparece – vangloria-se
Perpétua.
- Irmã como essa é que não há igual no mundo. – Mesmo ao adular Zé Esteves é
bravio e virulento.
Para Perpétua não é hora de discutir qualidades e defeitos de Tieta, nem sequer
a maneira imprópria como conduz a viuvez.
O ouro paulista, a comenda papalina,
a imagem do Coração de Jesus fazem-na perfeita.
- Tem razão, Pai. Irmã generosa como Tieta não há.
Custa-lhe pronunciar as palavras mas o futuro dos filhos exige sacrifícios, o
Major os deixou aos seus cuidados.
Ao voltar, Ricardo não encontra a tia; preparam-se, ela e a moça, para o banho.
Os demais encontram-se na sala de visitas. Astério segura a peanha, Perpétua já
escolheu o lugar para a divina imagem: entre os retratos coloridos, ela de
noiva, o Major de farda – trabalho – trabalho de uma firma do Paraná, encomenda
logo feita após o casamento.
Ricardo encosta a escada na parede, empunha o
martelo. Não chegou ainda a uma conclusão sobre a santa com a qual a tia se
parece. Antes de vê-la, ele a imaginara Senhora Sant’Ana, a padroeira, a avó.
Da Senhora Sant’Ana não tem nada. Talvez Santa Rosa de Lima, Santa Rita de
Cássia? Elisa estende os pregos ao sobrinho. Aqui ,
Mãe, está bom?
De cima da escada Ricardo, enxerga a tia saindo da alcova, levando a toalha e a
saboneteira, o banheiro fica no qui ntal.
Morena, onde a longa cabeleira loura do desembarque?
Cabelos negros, crespos
anéis como os dos anjos na igreja do seminário. Pele trigueira, perna e coxa
aparecendo sob o negliché agitado pela brisa, Ricardo desvia os olhos.
Perpétua
fita a parede, talvez um pouco acima, aí está bem. Não vê a irmã
aproximando-se, a la vontê no robe rendado sobre os seios, vaporoso, preso
apenas por um cinto, esvoaçando na brisa da tarde a morrer nas barrancas do
rio.
Não vê ou não quer ver? Tieta olha e aprova, vai ficar bacana. Elisa,
babada com o santo e com o penhoar.
- Que amor esse robe!
Perpétua prefere não reparar:
- Vou falar com padre Mariano para vir entronizar no domingo, depois da missa.
Nem Santa Rita de Cássio, nem Santa Rosa de Lima, com que outra então no
flos-santório? A caminho do banho, as ancas balouçando, que santa será ela, a
tia de São Paulo?
No hipermercado, dois homens chocam com os respectivos carrinhos de compras.
Ambos se desculpam e um deles pergunta:
- O que é que está a fazer?
- Distraí-me à procura da minha mulher.
- Que coincidência, eu também.
- Como é a sua?
- Loira, alta, olhos azuis, pernas bem torneadas, seios salientes e lábios carnudos. E a sua?
- Que se lixe a minha, vamos procurar a sua!
(Domingos Amaral)
Episódio Nº 137
De súbito, distinguiu ao
longe nova nuvem de poeira. Vinha mais alguém pela estrada, a galope, mas os
muçulmanos não o viram, pois uma pequena curva da estrada tapava-lhes a visão.
Mem percebeu que na barcaça
já haviam avistado Ramiro. Pela mesma razão que os mouros não o haviam visto,
também o filho de Paio Soares não os topara e mal fizesse a curva a galope ia
chocar com eles.
Então, Mem decidiu arriscar.
Colocou uma flecha no arco e duas entre os dentes. Depois, deu um salto para o
chão, surpreendendo os sarracenos.
Aos pulos disparou a
primeira flecha e depois rebolou para a direita, ajoelhou-se e disparou a
segunda.
Os seus movimentos rápidos
confundiram os adversários e um deles foi atingido. Mas os outros dois
dispararam e falharam, e foi isso que salvou Mem, pois no momento em que os
mouros não tinham flechas nos arcos, Ramiro apareceu nas costas deles.
Num instante, este
compreendeu que tinha dois inimigos entre ele e a barcaça, e atirou uma flecha
uma flecha que acertou nas costas do primeiro adversário.
O segundo ficou atarantado
e, quando se virou para trás levou com o arco de Ramiro na cara e caiu
desamparado. Ao tentar levantar-se foi trespassado por uma flecha de Mem.
Correram os dois para o rio,
chamando a barcaça. Passado o perigo o barqueiro voltou a aproximar-se da
margem, e Mem e Ramiro embarcaram, aproveitando para levar também os cavalos
dos sarracenos.
Durante a travessia do
Mondego, Ramiro relatou a Gondomar o que se passara em Soure: os coelhos
desaparecidos, as suas desconfianças e depois o ataque dos mouros.
Infelizmente o Urso morrera,
o Santinho encontrava-se mal e o Peida Gordo estava ferido.
Olhando para Mem
acrescentou:
- São os homens de que haveis falado. Vi o
chefe deles, o tal Zhakaria.
Intrigado, o jovem almocreve
perguntou:
- Estava vestido de branco?
Ramiro diosse que não.
Tinha o manto azul-escuro
dos almorávidas.
Surpreendido, Gondomar qui s saber porque perguntava Mem se o mouro vinha de
branco.
Então, o almocreve contou a
todos o que se passara muitos anos antes, na margem oposta do Mondego, quando
seu pai fora degolado à sua frente por um enorme guerreiro muçulmano vestido de
branco.
Sabia que esse homem
perigoso estava de volta e que só podia ser morto por um califa ou por um rei.
Desconfiado, Gondomar
perguntou-lhe:
- Quem vos revelou tal coisa?
Mem alegou que o ouvira em
Santarém, mas Ramiro suspeitou que era mentira, embora não o tenha confrontado,
pois devia-lhe a vida.
Gondomar recordou então que,
na Terra Santa, ouvira ecos da seita de Alamut, onde um velho imã treinava
jovens na arte da guerra e os usava para se infiltrarem na corte dos sultões
inimigos.
Depois de matarem os seus
alvos, esses homens matavam-se também e nunca eram presos. A lenda dizia que se
vestiam sempre com uma túnica branca, usando apenas um cinto vermelho, e as
pessoas haviam começado a chamar-lhes haschischins ou assassins.
sexta-feira, dezembro 18, 2015
Tenho
direito a falar de José Mourinho. Todos os meses pago dez euros para o Canal de
televisão que me dá acesso à Liga Inglesa onde o vejo.
Claro
que vou continuar a pagar os dez euros porque embora a minha mulher sofra
muito, ela não abdica de ver o seu Benfica também naquele Canal e, sejamos
justos, o melhor futebol, de longe, é o inglês e eu gosto muito de ver o futebol
bem jogado.
O
meu pai, quando eu era miúdo, dizia-me: “quando vês uma bola até cegas...” e
era verdade.
Mais
tarde, substitui a bola de futebol pela de ténis mas aquela forma redondinha,
que era os meus encantos, manteve-se, agora mais pequenina e amarela.
Joguei
ténis até aos 70 anos e só parei porque a minha medula entrou em disfunção e,
por outro lado, o meu parceiro entrou em conflito com a coluna vertebral, mas
nunca esquecerei o prazer que me dava acariciar na mão aquela forma amarela e
redondinha, ligeiramente peluda, que me seduzia e desafiava como se a
raquete fosse a espada e ela o inimigo a quem eu batia.
No
fim, fazíamos as pazes e íamos para casa cansados mas felizes...
Eu
não sei se o José Mourinho é um bom treinador... seria preciso falar em privado
com jogadores treinados por ele e por outros para que se pronunciassem com base
em comparações.
Mas
olhando para o respectivo currículo, é forçoso reconhecer que só pode ser um
bom treinador e estou a pensar no seu trabalho dentro do campo, primeiro
escolhendo os jogadores, depois distribuindo-os, ensinando-lhes a táctica e a
estratégia para cada jogo, para cada adversário.
Mas
um treinador é mais do que um homem de táticas e de estratégias de jogo, é também,
e em igual medida, um condutor de homens, um aglutinador, um motivador de
personalidades, de egos de jogadores, todos eles já muito ricos que não estão
ali a arriscar o “pão de cada dia”, apenas o seu orgulho de jogador
profissional, o que não é pouco...
Jamais
me esquecerei das lágrimas escorrendo pela cara de Eusébio quando em 1966 saíu
do campo a chorar compulsivamente depois de ter perdido com a Inglaterra para o
Campeonato do Mundo.
E
como condutor de homens, José Mourinho trabalha no “fio da navalha”, e se eu
também já vi lágrimas sinceras de profunda amizade por parte de jogadores seus,
abraçando-o, comovidos, não tenho dúvidas que foram os jogadores, agora, que “lhe
fizeram a cama”.
A
pergunta que agora se pode fazer é: - De quem foi a culpa?... – Por que romperam
as hostilidades?... e ele, José Mourinho, está implicado nesta resposta.
Ela tem a ver com o tal “fio da navalha” porque foi evidente, na cena várias vezes repetida com a Drª Eva Carneiro, que os jogadores sentiram que a afronta feita à médica era-lhes dirigida porque ela saltou para o campo preocupada com o estado físico de um deles...
Ela tem a ver com o tal “fio da navalha” porque foi evidente, na cena várias vezes repetida com a Drª Eva Carneiro, que os jogadores sentiram que a afronta feita à médica era-lhes dirigida porque ela saltou para o campo preocupada com o estado físico de um deles...
... Talvez
José Mourinho tenha percebido o que ela não percebeu: que o jogador estava a
fazer fita e que aqueles segundos preciosos que perderam poderiam ser
aproveitados para a equi pa marcar um
golo na baliza do adversário... talvez... mas este foi um momento em que José Mourinho
vivendo em cima do “fio da navalha” com os jogadores da sua equi pa, tenha caído para o outro lado, para o lado
errado da navalha.
Tieta a viúva alegre... |
Tieta do Agreste
(Jorge Amado)
EPISÓDIO Nº 34
DE PORTAS E JANELAS E DO CORAÇÃO DE JESUS NA SALA DE VISITAS OU
OS PRIMEIROS MOMENTOS NO SEIO DA FAMÍLIA
Na es
- Chegámos – anuncia Perpétua – Vamos entrar.
- Tua casa? Esta? A que era do doutor e de dona Eufrosina?
– Surpreende-se
Antonieta. Nas cartas, Perpétua referia-se à nossa casinha adqui rida pelo Major antes do casamento, na praça
Desembargador Oliva – mas aqui é a
Praça da Matriz.
- O nome correcto é Praça Desembargador Oliva – esclarece dona Carmosina.
A casa do Doutor, a casa de Lucas. Antonieta veio preparada para enfrentar as
recordações mas os equívocos começaram logo ao desembarque, ao perceber o Velho
empunhando o bastão.
Nunca imaginara hospedar-se ali, na casa onde Lucas permanecera após a morte do
Doutor, estudando as possibilidades de clínica. Valeria a pena estabelecer-se?
Perpétua atribui a surpresa exclusivamente à dimensão da casa, sentimentos
opostos a possuem. Satisfação a deleitá-la, não é uma morte de fome, miserável
mendiga. Medo da reacção de Tieta que pode considerar abuso a ajuda mensal para
a criação dos filhos. Impõe-se uma explicação:
- Foi uma dádiva de Deus caída do céu. O Major pagou uma bagatela pela casa e
por tudo o que tinha dentro.
Os amigos se despedem com promessa de visita próxima:
- Vamos aparecer uma dessas noites – avisa o Comandante.
- Venham hoje de noite para conversar.
- Hoje, não, é dia da família.
- Dia de matar saudades… - acrescenta dona Laura, sorridente.
- Amanhã, então.
- Amanhã, sem falta.
Pelo gosto de Ascânio, voltaria nessa mesma noite, não basta à família o resto
da tarde? Além do mais Leonora é parente afim, encontra-se em Agreste pela
primeira vez, não tem saudades a matar, vai ficar à margem da conversa
familiar.
Pena ele não ter a cara dura de dona Carmosina:
- Pois eu venho é hoje mesmo, com Mãe. Quando saí ela me disse:
- Hoje de noite
vou a casa de Perpétua, visitar Tieta.
- Trouxe uma lembrancinha para ela, uma tolice. Por que não vêm jantar com a
gente? Posso convidar, Perpétua?
- A casa é sua. Graças a Deus, tem comida com fartura.
- Antes mesmo de tomar banho – preciso de um banho imediatamente, tenho poeira
até na alma, aliás precisamos as duas – Antonieta esclarece:
- Enquanto estivermos aqui , a
despesa da casa corre por minha conta.
Perpétua esboça um gesto de protesto, não chega a completá-lo, a ricaça corta
qualquer tentativa de discussão:
- Se não for assim pegamos nas malas e vamos para a pensão de Amorzinho.
- Nesse caso não discuto… - apressa-se Perpétua, liberta do peso maior. Resta o
menor: as despesas feitas para acolhê-las convenientemente, divididas entre
ela, Astério e o Velho.
Nem esse prejuízo terão, Antonieta completa:
- Começando pelo que gastaram para nos esperar.
- Ah! Essa não! – intromete-se Elisa: - Uma besteira, coisa à-toa. Fizemos uma
vaqui nha, coube um pouco a cada um.
- Tu fala como se fosse rica – Perpétua desmascara a irmã, não há coisa pior
que pobre metida a besta: - Se esquece que Astério teve de tomar dinheiro
emprestado para completar parte de vocês?
- Cala a boca mulher! – Elisa empalidece. Perpétua a humilha de propósito em
frente à irmã e à forasteira. Por que expor diante da enteada a pobreza do
casal?
- Perpétua tem razão, Elisa, minha filha. Se eu não pudesse está certo. Mas por
que hão-de fazer sacrifícios sem necessidade? Mais tarde Perpétua ou Astério me
diz quanto gastaram e pronto.
Enquanto fala, Antonieta aproxima-se, abraça Elisa, beija-a afectuosamente – há
entre elas, um ar de família, uma parecença no rosto e no jeito, só que a mais
moça não herdou a obstinação, a teimosia do velho Zé Esteves a marcar Perpétua
e Antonieta, aquela dureza de pedra, a audácia das cabras. Mas não herdou tão
pouco a resignação da mãe.
- Não tenha vergonha da pobreza, minha filha. Hoje possuo alguma coisa mas
enquanto fui pobre – eu comi o pão que o diabo amassou – nunca me fiz de rica.
Se fizesse quem ia me ajudar?
Nem bem conheci Filipe fui logo pedindo dinheiro emprestado a ele.
Acarinhada, tratada de filha, Elisa recupera as cores e o prejuízo:
- Pediu emprestado dinheiro ao noivo?
- Que noivo nem meio noivo, só depois é que veio o noivado. Quando fui
apresentada a ele, estava tesa. Um dia, com mais tempo, eu conto. Agora quero é
tomar banho. Queremos, não é Nora.
- Nora?
- É o apelido dela. Essa, eu criei. Veio para minha companhia menininha, o que
sabe, eu ensinei. Onde fica nosso quarto?
- O seu aqui , Tieta, é a alcova. O
de Leonora ali, aquele – aponta Perpétua – Cardo, Peto, levem as malas. Ajude
também Astério.
Por que Tieta não protestou, não pediu para ficar junto com a filha de criação,
como ensinam as boas maneiras? A janela da alcova abre sobre o Beco das
Três-marias, a porta, face a face com a do gabinete.
- Dorme alguém no gabinete?
- Ricardo.
- Eu, tia. Qualquer coisa que qui ser
de noite é só chamar.
(Domingos Amaral)
Episódio Nº 136
Por mais que não simpatize com ele, tenho de admitir que Ramiro era arguto. Logo ali suspeitou daqueles movimentos dos mouros. Zhakaria ia ficar em Soure quando não tinha tropas suficientes para se defender de um contra-ataque dos cristãos? Seria uma artimanha, para obrigar as tropas de Dona Teresa saírem de Coimbra, deixando-a desguarnecida?
Quarenta homens não tomavam
a cidade, mas podiam libertar três mulheres, se os não estivessem por lá. Com
este pensamento, Ramiro evitou a primeira tentativa de resgate das mouras, e
talvez por isso elas nunca gostaram dele.
Coimbra, Junho de 1126
A carroça de Mem já estava
em cima da barcaça, preparada para atravessar o Rio Mondego, quando o jovem
almocreve vê ao longe, na estrada que vinha de Soure, uma nuvem de poeira.
Distinguiu um primeiro
cavalo, apenas com um homem na sela, e depois viu mais dois, com dois homens
cada, um dos quais tombado.
Mem reconheceu os
companheiros de Ramiro e avisou Gondomar.
- Ordena ao barqueiro que
espere! Gritou este.
Ao olhar de novo para a
estrada, Mem viu aparecer cinco mouros que tentavam apanhar os homens da Ordem.
- Protegei-vos – disse a
Gondomar.
O velho do manto branco
colocou-se dentro da guarita da barcaça, e Mem gritou ao barqueiro que não
partisse, mas este queria fazê-lo, com receio de ser saqueado, e começou a
manobrar.
- Não posso arriscar esta
carga! – berrou.
Mem também não queria perder
a sua carroça, repleta de barris com alimentos e sacas com tecidos, que iria
vender em Coimbra. Se
os sarracenos o assaltassem, o seu prejuízo seria forte, mas também não podia
deixar aqueles cristãos em terra.
Não viu Ramiro em lado
nenhum e quando Gondomar lhe perguntou por ele, não soube responder. Só lá
vinham cinco cristãos, que estavam agora mais próximos, mas com os sarracenos à
ilharga.
Então, Mem decidiu saltar da
barcaça e correr vinte metros pela estrada. Levou consigo o arco e as flechas e
subiu a uma árvore.
O primeiro cavaleiro cristão
estava a chegar e Mem gritou-lhe dirigindo-o para a barcaça. O Rato continuou
na direcção do rio.
Pouco depois, apareceram os
outros dois cavalos, e Mem gritou que não parassem. Notou que um homem estava
inanimado e um outro, um gordo, que montava o mesmo cavalo, sangrava muito.
Passaram por ele e Mem fez
pontaria aos sarracenos que estariam agora a pouco mais de dez metros.
Disparando duas flechas
derrubou dois deles mas falhou a terceira tentativa. Os restantes três mouros
pararam os seus cavalos e recuaram.
Se ele descesse da árvore
seria presa fácil. Preocupado, viu que a barcaça se voltara a afastar, apesar
dos protestos de Gondomar, e que os três sarracenos sorriam, certos de que
seriam capazes de o matar.
quinta-feira, dezembro 17, 2015
O
Processo e a Substância
José
Sócrates, como político, é um predador, muito diferente de outros líderes do PS
como António Guterres ou António Costa. Com o seu estilo agressivo cultiva mais inimigos
do que adversários mas também tem os seus incondicionais.
Governou
o país durante seis anos, os últimos dois em minoria, o que lhe foi fatal pois,
falhadas as negociações do PEC 4, o país ficou sem suporte financeiro e
mergulhou rapidamente na banca-rota, troyka e na vitória fácil do desconhecido
Passos Coelho que ganhou com maioria absoluta.
Sócrates
foi-se embora, estudar para Paris e aqui
começa a sua verdadeira história.
Regressado
um ano depois, é preso ainda no aeroporto e conduzido à prisão de Évora por
suspeitas de corrupção, branqueamento de capitais e fraude fiscal.
Um
ano depois, esgotados os prazos de prisão preventiva, é devolvido à liberdade
sem que o Ministério Público ou o Juiz de Instrução do Processo, dada a
complexidade deste, tenham ainda formulado qualquer acusação.
A
TVI, de todos os canais de televisão em Portugal, o mais mediático à custa de
programas que apelam e satisfazem o
voyarismo dos espectadores, resolveu entrevistar Sócrates durante duas
horas em dois dias seguidos.
Sócrates,
combativo, atacou o Processo, vitimizou-se, queixou-se, atacou o Ministério
Público e o Juiz de instrução, secundado pelos seus advogados que defendem o arqui vamento do Processo com um pedido de desculpas ao
ex-primeiro ministro que pode decidir-se, até, por colocar uma acção contra o próprio
Estado.
Para
trás ficaram histórias de centenas de milhar de euros que circulavam dentro
de envelopes que lhe eram entregues em mão por “falta de confiança no sistema
financeiro” – disse ele - e que solicitava,
de forma codificada, chamando ao dinheiro “fotocópias” ou “aqui lo de que eu mais gosto” entre muitos outros
nomes.
De
substância, temos uma grande amizade, fraterna, de 40 anos, com um amigo de
infância com quem passa sempre férias e que por ser muito rico lhe enviava, a
título de empréstimo, todo o dinheiro que ele pedia.
Dá-se
a coincidência deste amigo, que é muito rico, ser empresário e um dos donos de
uma grande empresa de Construção Civil, bem sucedida na sua actividade, que era desenvolvida em
simultâneo ao período em que ele é 1º Ministro.
Estas
coincidências tornam-se suspeitas aos olhos do Ministério Público que tem
dificuldade em acreditar nesta amizade tão desinteressada de um amigo que
empresta sem contrapartidas, garantias, aparentemente sem controle – Sócrates
afirmou desconhecer quanto deve ao amigo -
dinheiro em quantias muito elevadas, centenas de milhar ou milhões,
fala-se, e por isso o MP investiga, que é esse o seu papel.
O
povo assiste, sorri e também desconfia, a maior parte até já o terá condenado.
Os políticos, todos os políticos, não têm boa fama embora haja apenas 17 presos
por corrupção e muitos destes serão apenas funcionários do Estado que se
aproveitaram do exercício das suas funções, e não propriamente políticos, o que mostra "o berbicacho" que é fazer prova em Tribunal deste tipo de crimes.
Eu
interrogo-me e questiono se toda esta história com tantos contornos, entre
estes dois amigos de infância, mesmo fraternos, teria ocorrido se José
Sócrates, um desses amigos, tivesse sido apenas Chefe de Secção ou mesmo, vá
lá, de Repartição de um qualquer Ministério?
Esta
questão não interessa para o Tribunal mas eu também não sou Juiz...