quinta-feira, fevereiro 09, 2006

CASA DA LENHA

Image Hosted by ImageShack.us
Rapaz, disse-me o meu pai, vai ao chaveiro, pega na chave da casa da lenha, leva uma cesta e trás umas cavacas. A partir de hoje passa a ser Inverno nesta casa e todos os dias, a partir do sol-posto, quero o lume aceso debaixo da chaminé.

Peguei num candeeiro a petróleo com a chave na mão direita e lá fui a caminho da casa da lenha que não era utilizada desde o fim do último Inverno, quando o meu pai disse: a partir de hoje acabou o Inverno, encham com cavacas novas a casa da lenha e guardem a chave no chaveiro até ao próximo Inverno.

Não era fácil abrir a fechadura da porta da casa da lenha ao fim de todos aqueles meses sem ser utilizada, a chave de ferro era grande, a minha mão quase não era capaz de manipulá-la e depois havia o trinco mais a aldraba e por fim a lingueta e todos aqueles sons metálicos a fazerem de acompanhamento sonoro e que emprestavam solenidade à abertura de uma porta.

Image Hosted by ImageShack.us

Empurrei-a com alguma dificuldade porque alguém se tinha esquecido de varrer a casa como era de obrigação, levantei o candeeiro à altura da cabeça e dei tempo para que a luz, devagarinho, fosse desfazendo a escuridão e mostrasse os contornos do amontoado da lenha contra o branco das paredes caiadas, mais amareladas que brancas, convenhamos.

Finalmente, olhei para o chão e bem na minha frente, a uns três metros de distância, esperava-me um pequeno exército de ratinhos: eram ratinhos miniatura, com a cauda e tudo não teriam mais de três, quatro centímetros mas o que era estranho e ao mesmo tempo notável é que não se tratava de um amontoado de ratinhos, desordenados, cada um para seu lado não, era mesmo um exército.

À frente estava aquele que deveria ser o chefe, a cabecita com o focinho preto, bem levantada na minha direcção e os bigodes esticados à esquerda e à direita numa pose, toda ela, de desafio.

Atrás de si, em formação militar, um pequeno “esquadrão” de ratinhos, uns atrás dos outros, em filas ordenadas, compostas, guardando entre eles distancias muito idênticas e todos, à imagem do seu chefe, cabecitas erguidas, apontadas a mim com o mesmo ar desafiador e hostil não deixando qualquer dúvida de que não era ali bem recebido.

Não estavam ali por acaso, há muito que de certo me esperavam, algum dos mais velhos, daqueles que pela idade já não teriam forças para estar ali na primeira linha, os avisou que um dia, que ele não saberia bem qual seria, viria um humano remexer naquele espaço e levar-lhes as suas belas cavacas.

Naquele preciso momento, aguardando o desfecho da situação, escondidos entre as cavacas mais recônditas, estariam certamente os velhos e as ratitas com os seus filhotes e a avaliar pela determinação, ousadia e coragem dos seus defensores não estariam a tremer de medo mas antes orgulhosos e preparados para um eventual sacrifício.

Eu estava perplexo, não sabia o que pensar, talvez se saltasse para cima deles com as minhas botas de cano alto e desse saltos e mais saltos sairia com certeza vencedor mas algo me impediu que o fizesse… e se eles tivessem uma arma desconhecida, tipo “poção mágica do Obelix?”

Se assim fosse, explicar-se-ia tanta coragem e ousadia que roçavam a loucura e o suicídio. Defrontarem-me a mim, um humano e eles simples ratinhos tão pequeninos, umh!... só poderia ser com recurso a uma qualquer arma secreta.

Resolvi dar um passo na sua direcção, sim… eles ou eu, um de nós teria de fazer qualquer coisa, aquela situação de impasse não podia continuar.

Avancei, portanto, dei um passo, nem rápido nem lento mas sem hesitação, não podia demonstrar medo, a vantagem era toda minha, era essa a minha convicção, era isso que eu tinha de lhes dar a entender.

Eles fizerem um recuo que eu percebi que era estratégico, como eram muito pequeninos responderam ao meu passo com uma corridinha atrás sem alterarem entre si as posições e muito menos a atitude de hostilidade e desafio.

Depois, foi a minha vez de dar um passo atrás e eles, acto contínuo, uma corridinha em frente e tudo regressou à situação inicial.

Continuavam a olhar-me com seus olhos muito pequeninos mas que irradiavam a enorme força e convicção dos seus propósitos, não era um desafio qualquer, para eles era a conquista do seu espaço, do seu território, o tudo ou nada, a vida ou a morte.

O meu olhar é que já não era o mesmo, a surpresa e a perplexidade tinham desaparecido, tal como o natural instinto do mais forte em esmagar o mais fraco.

Caí em mim, esqueci as cavacas e percebi que estava perante a decisão suprema de um grupo que face ao seu direito à vida no seu espaço e no seu território tinha decidido morrer com honra lutando sem hipóteses de vencer porque eu seria um adversário imbatível, porque a tal arma secreta só existia na minha imaginação e serviria depois para tentar justificar aos olhos da minha consciência comprometida a morte de todos aqueles ratinhos estraçalhados debaixo das minhas botas de cano alto.

Virei-lhes as costas e regressei com a cesta vazia mas não sem antes ouvir atrás de mim a porta da casa da lenha a fechar-se com grande fragor.

Sentei-me ao pé do meu pai e ele olhou para a cesta e perguntou-me pelas cavacas da casa da lenha e eu não respondi logo…ao fim de algum tempo disse-lhe que já não tínhamos casa da lenha…ela pertencia por direito próprio a uma comunidade de heróicos ratinhos.

Image Hosted by ImageShack.us

Não sei o que o meu pai respondeu, nem sei se disse alguma coisa porque… entretanto acordei.

segunda-feira, fevereiro 06, 2006

Os cartoons da discórdia. Notas sobre a Liberdade

Image Hosted by ImageShack.us
Façamos o jogo do “faz de conta” como quando éramos jovens e percebíamos que as brincadeiras só eram verdadeiramente divertidas quando nos metíamos na pele de alguém, do género: eu sou o xerife, tu és o bandido e por aí fora…Quer isto dizer que o entendimento dos comportamentos de alguém que não era a nossa própria pessoa só era possível através de um esforço de abstracção em que se deixa ser quem se é para se ser outra pessoa.

Os grandes actores fazem isto tão bem nas suas representações que enquanto os vemos e ouvimos não nos passa sequer pela cabeça que eles não sejam exactamente as personagens que temos perante nós e por isso nos envolvemos com elas partilhando o mesmo mundo de emoções e sentimentos.

Image Hosted by ImageShack.us

Vem isto a propósito dos cartoons sobre o profeta Maomé.

Suponhamos, então, que em vez de sermos católicos, agnósticos ou ateus, somos, “faz de conta”, seguidores da religião do profeta Maomé, nascemos e vivemos num país do norte de África e como todos os nossos concidadãos, todos os dias, cinco vezes por dia, nos ajoelhamos virados na direcção de Meca e respeitosamente rezamos a Alá e todos os anos respeitamos escrupulosamente o 9º mês do calendário muçulmano, o mês do Ramadão, durante o qual entre o nascer e o pôr-do-sol, não se ingerem alimentos sólidos e finalmente, entre outras práticas religiosas, tentaremos ir, pelo menos uma vez na vida, rezar a Alá na cidade de Meca.

Entre outros preceitos e obrigações manda ainda o Corão que o profeta não possa ser figurado, desenhado, retratado, seja lá o que for.

Este exercício do “faz de conta”serviu para interiorizarmos melhor o comportamento, as reacções e a forma de sentir de um povo cuja cultura está toda ela profundamente impregnada por uma fé e preceitos religiosos num grau que não tem nenhuma comparação com o que acontece na cultura ocidental de que fazemos parte e este é um bom ponto de partida para uma reflexão sobre este problema.

Image Hosted by ImageShack.us

Os Muçulmanos são nossos vizinhos, temos com eles laços históricos de séculos e se devemos conhecer e compreender todos os povos e culturas e agora muito mais em época de globalização que dizer então dos nossos vizinhos tão próximos.

E falar de vizinhos é falar de relações de vizinhança e eu pergunto se há alguém de bom senso que não goste de se dar bem com o seu vizinho mais não seja por uma questão de harmonia e paz para as nossas próprias vidas.

Nós sabemos que neste momento há problemas graves no mundo que professa a religião de Maomé e não vale apenas referi-los aqui para esta reflexão mas é importante levar em linha de conta que nunca como agora forças radicais, fundamentalistas, procuram tirar partido do sentimento profundamente religioso comum a todo o povo muçulmano para o arrastar para soluções políticas de natureza teocrática de que tivemos exemplo no Afeganistão com o regime dos Talibãs e aquele que parece desenhar-se agora no Irão ou na Palestina com a ascensão ao poder do Hamas etc.

Há grupos de pessoas que querem liderar não um país mas todo o mundo árabe empunhando numa mão a espingarda e o chicote e na outra o Corão, o seu Corão e que nos consideram a nós e a todos os que não os sigam cegamente, como infiéis, inimigos do seu deus, gente a abater.

Acredito que seja uma guerra perdida para eles mas as acções terroristas já levadas a cabo um pouco por todo o lado, as matanças diárias no Iraque que de rotineiras até já deixaram de ser notícia, as ameaças do actual 1º Ministro do Irão, dizem bem que há um grau de perigosidade em toda esta situação que dispensa perfeitamente estas pequenas “ofertas” ao inimigo constituídas pelos cartoons.

É claro que não está em causa a nossa liberdade de expressão, o direito dos nossos criativos à sátira, ao humor e à crítica, que não existem temas tabus e que os directores dos jornais só devem ter como limites o que estiver estabelecido na lei e quem gosta, aprecia e bate palmas e outros ou não dizem nada ou protestam, manifestam-se, desfilam ordeiramente pelas ruas, agitam cartazes e gritam palavras de ordem.

Esta é a nossa sociedade, estes são nossos valores de hoje conquistados ao longo de muitos anos pelo contributo de muitos homens brilhantes pela sua inteligência e coragem e que nos permitem viver agora em liberdade, democracia e no primado do Estado de Direito.

Mas o que se passou com a história, triste, dos cartoons não é uma questão de direitos nem uma questão jurídica, é mais comezinho, ao nível do bom senso que aconselha que não se devem dar trunfos ao inimigo porque se pensarmos bem, a situação em que todos nós, mundo ocidental, vivemos, é uma situação de guerra, diferente das anteriores, mas de guerra.

A propósito deste assunto não pude deixar de me congratular com a leitura do texto do Miguel Sousa Tavares no Expresso que sob o título “ O CERCO”, naquele seu estilo frontal, aguerrido, quase que desabrido mas sincero e apaixonado que herdou do seu pai dizia a certa altura:

“…formei-me em direito mas tornei-me descrente da lei e da justiça das suas minudências, espertezas e falta de objectividade social e hoje acredito apenas em três fontes legítimas da lei: a natureza, a liberdade e o bom senso”.

Image Hosted by ImageShack.us

…de acordo, nesta história dos cartoons, só faltou o bom senso porque a natureza e a liberdade estiveram lá.
_________________________________________________

Image Hosted by ImageShack.us

  • Notas sobre a Liberdade:
    Pelos vistos todos apreciam e se afirmam defensores da liberdade como a seguir se pode constatar:

    -Os compradores dos meus automóveis são livres de escolherem a cor de que mais gostarem….desde que seja preta. (Henry Ford, 1921 )

    -As pessoas são livres de expressarem as suas ideias desde que…. eu goste delas. ( Hitler e Goebbls )

    - Se prometessem perdoar-me desta vez na condição de eu não voltar a dizer o que penso…dir-vos-ia: “ Homens de Atenas, devo obedecer aos deuses e não a vós”. ( Sócrates )

    - Detesto o que o senhor escreve mas daria a minha vida para tornar possível que continuasse a escrever…( Voltaire)

    -A liberdade de expressão é exactamente para as opiniões que se desprezam… (Noam Chomsky) filósofo.

    -O princípio do pensamento livre não significa pensamento livre para os que concordam connosco, mas liberdade para o pensamentos que detestamos…( Oliver Wendell Holmes ) Juiz do Supremo dos EUA.

    -Por que motivo deveria o governo alemão pedir desculpas se o que aconteceu foi apenas a manifestação da liberdade de expressão? (Wolfgang Schauble) Ministro do governo alemão a propósito dos cartoons.

    -Num Estado livre também as línguas devem ser livres…( Erasmo de Roterdão)

    Estamos na presença de dois grupos de pessoas representativas de pensamentos opostos e todas têm o direito à liberdade de expressarem o seu pensamento desde que aceitem o próprio jogo da liberdade…não sejamos ingénuos, a primeira obrigação que a liberdade impõe é a da sua própria defesa.

Site Meter