Labutara nas noites inquietas,
a adivinhar devassidões quando se esforçava por enxergar no sonho castas
imagens, vidas santas, alegrias puras.
Antes de perder-se por completo ali, em Mangue Seco, esteve à
beira do pecado todas as noites, ora adormecido, ora acordado, e se jamais o
completou foi por não saber como fazê-lo.
Mal terminava as orações e cerrava os
olhos, ainda com o nome de Deus nos lábios e o pensamento na salvação da alma,
e já o amaldiçoado enchia a rede de seios e coxas, de bundas e pêlos, a tia
inteira e nua.
Nem os rogos, nem as preces, nem as promessas, nem as fugas.
Transtornado, abrira o livro santo na página da fuga para o Egipto, conselho de Deus.
Montou no burro e se tocou no
rastro do padre Mariano para a Rocinha em vez de tomar a lancha para Mangue
Seco onde poderia vê-la quase desnuda na praia, acompanhá-la mar adentro,
salvando-a de morte certa quando a arrebentação da barra a estivesse afogando.
Heróico, lutaria contra as vagas, tomando-a finalmente nos braços, trazendo
para a praia o corpo inerte apertado de encontra o peito.
Montado no burro, fugira da tentação. De que adiantara? Durante todo o
percurso para a Rocinha ele a teve nos braços, apertada contra o peito, no
trote do animal. Ao roçar o cabeçote da sela, comprimira entre as coxas as
ancas da tia.
Débeis forças, vontade fraca, armas frágeis para enfrentar o poder e as
tramas do Cão. Para tentá-lo na beira do rio, Belzebu utilizara Peto; para
enviá-lo a Mangue Seco, por mais incrível possa parecer, servira-se da mãe,
devota e rígida.
Ele deveria ter-se oposto, discutindo, alegando a hora tardia,
fingindo-se doente. Não o fez. A mãe não precisou de repetir a ordem: saíra
correndo em busca de Pirica para contratar o barco.
Compreendeu que o Tinhoso
escolhera Mangue Seco para local do crime e não obstante para ali partira de
livre vontade. Durante a travessia dava pressa a Pirica apesar de saber que se
de lá desembarcasse, estaria perdido.
Assim aconteceu: em
Mangue Seco o Cão o derrotara e possuíra.
Os dedos rumam para o queixo, deixando na boca um gosto de polpa
fresca. As palavras, arrancadas do estômago, cortam o pulmão estranguladas:
- Estou condenado e levo a tia comigo para o fogo do inferno.
Sou ruim demais, me perdi e arrastei a tia.
A mão se espalma, toda ela fogo, vinda do queixo para o pescoço. Na
hora do pecado, até as labaredas são deleite, ninguém sente as dores das
queimaduras. Mas outro é o forno do inferno, outro e eterno.
- Me leve, sim, cabrito. Novinho como os que eu carregava ao colo.
Viúva honesta, ele a fizera renegar o recato e a virtude da cativa
condição, manchar a memória do marido, enlouquecer a ponto de dizer coisas
assim, sem pé nem cabeça, murmurar frases sem nexo, aberta em riso de
contentamento, não se dando conta do mal praticado, indiferente ao castigo.
Ele fora o único culpado mas a condenação atingia os dois, sobre a
cabeça da tia cairá igualmente a cólera de deus. Sobre as duas almas que não
souberam resistir aos corpos vis, à carne podre. Ele, o único culpado.
A tia
lhe dissera que fosse embora, se quisesse,
apontava para baixo dos cômoros, ele não quis,
preferiu ficar. Consciente de que, se ficasse, iria desrespeitá-la, ofender a
Deus, prevaricar, entregando-se de vez a Satanás, servindo-lhe de agente na
degradação da alma da viúva, responsável por sua perdição.
- Quem me dera morrer.
- Nos meus braços.
A mão desce dos ombros para o peito. Ai, tia, não. Não vê que o demónio
está solto, sobrevoa dunas e mar, morcego imenso a tapar a lua, a impor a noite
negra e fria?
O tentador está ali, presente, como sempre esteve desde o momento
em que a tia surgira na porta da marinete de Jairo. Fora ele, o demónio, que
falara pela boca de Osnar comparando-a a uma fruta madura, sumarenta.
Naquela
hora começara o combate, lá mesmo perdido. Perdido a cada momento mais, nos
passos nocturnos soando no corredor, nas rendas esvoaçantes do negligê, no biquini minúsculo, na minúscula camisola, nas mãos
untadas de creme, nas palavras truncadas do padre-nosso, nos sonhos prenhes de
desejo quando a tinha nua junto de si, na rede e não sabia o que fazer.
Agora
sabe e por isso pagará durante a eternidade. Pagarão os dois, o culpado e a
vítima, ele e a tia. Quem sabe, Deus é justo, terá piedade da tia e lhe
reduzirá a pena a um tempo de purgatório.
Por mais longo que seja, ainda que
estenda por milhões de anos, é tempo e não eternidade, tem limite e fim. Um dia
a sentença termina, liberta-se o condenado, mas as penas do inferno, essas não
acabam jamais. Nunca jamais, repete a cada segundo o relógio do inferno. Assim
contava Cosme ao falar do castigo eterno.
- Deus é bom e sábio, terá piedade, sabe que a tia não teve culpa.
Cresce o riso alegre e inconsciente, a mão desce pelo peito agoniado.
- Não diga tia, diga Tieta.
A mão no peito sufocado de vergonha, de remorso, roto de medo; como
fitar a face de Deus na hora do juízo final? A mão acalma o pesadelo,
transforma os sentimentos, desata o nó, rompe a treva, mas não apaga as
fogueiras da ira celeste pois toda ela, palma, punho e dedos, é brasa ardida,
calor divino.
Divino? Assim Satanás engana e condena os homens. Esse calor
divino se transformará em dor insuportável nas profundas do inferno, consumindo
lenta e eternamente os pecadores.
- Só eu tenho culpa, Deus há-de perdoar-lhe, tia.
- Tia, não. Tieta, sua Tieta.
Como não percebera a voz de Deus na voz da tia apontando-lhe a descida,
o caminho certo, o sendeiro a conduzi-lo à salvação, ao sacerdócio, ao paraíso?
Paraíso? Qual deles? A mão conduz ao paraíso: ainda há pouco ele
enxergara a beleza, a doçura do céu em cada detalhe do corpo exposto ao luar.
A
mão brinca com os cabelos nascendo no peito jovem e másculo. O Major
orgulhava-se do tronco cabeludo, peito e costas, prova de macheza. Um macho, o
pai. O filho, castrado pelo voto feito pela promessa da mãe, impedido. Mas o
demónio o levara a levantar-se contra a lei, despertara-lhe a carne morta,
pervertendo-o.
Fizera do mancebo casto, que desconhecia desejos e maus
pensamentos, macho impuro sem controle sobre o corpo e a alma, um bode.
Não apenas: utilizara-o para conquistar
a tia, perdê-la, condená-la.
- O purgatório dura uns tempos e acaba, tia. A culpa é minha; Deus é
justo, não mandará a tia para o inferno.
- Cabrito tolo, sou cabra velha. Me chame de cabra, minha cabra.
Jamais, mesmo se quisesse,
nem sequer na hora do pecado, quando a cabeça não pensa e a boca geme e grita.
Cabra dissera Osnar, voz do demónio, quando a vira deslumbrante na porta da
marinete de Jairo, acrescentando indecente comentário sobre a fartura do ubre,
o Imundo. E ele? Onde mergulhara a cabeça, pousara os lábios, onde, desvairado,
mordeu?
- Me perdoe, tia. Jure que me perdoa.
- Diga Tieta.
Na barriga de músculos rijos navegam os dedos em descoberta. O dedo
mínimo enfia-se no umbigo, faz cócegas, a brasa cresce em labareda, consumindo
o pecado, cobrindo o crime, acendendo o luar:
- Quero lhe dizer, tia…
- Tieta.
- Quero lhe dizer que mesmo tendo de pagar durante a eternidade no fogo
do inferno, ainda assim…
- Diga, meu cabrito…
- … ainda assim, não me arrependo. E se o castigo pudesse ser pior,
mesmo assim…
- Diga…
- … mesmo assim eu queria…
Onde a mão? A chama queima da ponta dos pés à ponta dos cabelos, percorre
o corpo, a testa lateja, abre-se a boca, cresce o Cão.
- Queria o que, cabrito? Me diga…
- Estar aqui com a tia.
- Tieta.
A mão procura, encontra, apalpa, empunha. Desmedido Demónio.
- Tieta, não me arrependo, ai não, Tieta!
- Diga cabra, meu cabrito.
Onde estão as trevas e o inferno e o temor de Deus? Sob o luar, o
paraíso se abre para o Cão, estreita porta de mel e rosa negra. Vale o inferno
e muito mais. Vem, meu cabrito! Ai, cabra, minha cabra, sou bode inteiro, em fogo me consumo.