Quantas vidas cabem numa vida
A minha primeira vida teve a duração dos caracóis com os quais a minha mãe teve a paciência de ornamentar a minha cabeça de criança e que um dia, lá para os meus quatro anos, decidiu cortá-los porque aos cinco entrei para a escola e não poderia frequentá-la disfarçado de Luís XIV em tamanho pequenino.
Mas à data, aqueles caracóis que ainda hoje guardo dentro de uma caixinha forrada de cetim e que por circunstâncias várias não acompanharam a minha mãe no seu caixão como era seu desejo em vida, constituíram, pela ingenuidade própria da minha tenra idade, o marco da minha primeira vida expresso no meu próprio desabafo:
-Oh mamã, e no tempo em que eu era "menina"?
Nos primeiros anos da década de 40 os filhos dos meninos ricos tratavam as mães por mamã enquanto que os dos pobres chamavam-lhes simplesmente mãe talvez porque as posses não davam para mais e eu, que desde sempre embirrei com privilégios de ricos ou do que quer que fosse, desagradava-me aquela diferença de tratamento, deixava-me embaraçado e no entanto, pela vida fora, nunca consegui tratar a minha mãe que não fosse por mamã.
É certo, privilégio, mesmo quando inofensivo custa a perder, pegam-se às pessoas como coisa ruim, infernizam a vida quando não concordamos com eles mas causam-nos nostalgia quando os perdemos e talvez por isso há quem lute para os manter.
Há 60 anos atrás a riqueza, regra geral, estava associada a um certo estatuto social, era uma questão de família, eram “os bem nascidos,” que não só herdavam bens mas também educação, “maneiras” como então se chamava e que os distinguiriam dos pobres pela vida fora e mesmo quando deixavam de ter dinheiro passavam à categoria de ricos falidos que podendo ser, na prática, a mesma coisa que pobre, na teoria não o era.
Sessenta anos passados encontramo-nos na fase da “macaqueação”em que o objectivo é imitar as pessoas de sucesso seja lá isso o que for. O dinheiro passou a ser moeda corrente que toda a gente mais ou menos tem e as “maneiras” foram substituídas por tiques, formas de vestir, de estar e de falar que fazem lembrar alguém com quem se quer fazer parecer… mas voltemos ao assunto inicial.
Depois de ter começado por ser “menina”muitas outras vidas foram acontecendo na minha vida, preenchida por dois divórcios, três casamentos, uma separação, uma guerra em África e a vida repartida por oito casas e dois continentes, quando era pressuposto que tudo se tivesse resumido, e era essa a minha vocação de pessoa pacata e profundamente sedentária e ciosa do seu “buraco”, pela expressão mais simples comum a tantas pessoas da minha geração: uma mulher, um casamento, uma casa, um trabalho e uma única vida dentro da própria vida.
Sim, porque ninguém pense que depois de uma qualquer destas coisas acontecer a vida continua a ser a mesma coisa que era dantes porque não é, nós próprios, pela necessidade de adaptação e readaptação a novos cenários e a novas pessoas, vamo-nos alterando para além do que seria normal.
Dos dois divórcios o que mais me marcou foi o dos meus pais, e o rapazinho que saiu dessa experiência já não era o mesmo daquele que a iniciou e essa foi a minha segunda vida, de todas a mais dolorosa. Porque nos divórcios dos pais os autores do enredo e os actores principais são eles enquanto os filhos se limitam a papéis secundários arrastados e envolvidos numa história que só é deles porque estavam ali, como as vítimas dos acidentes rodoviários em que o peão é colhido porque estava no sítio errado à hora errada, e quando recobra os sentidos está no hospital sem saber bem como lá foi parar.
Nada marca tanto os jovens como as injustiças e a pior de todas elas é a destruição da sua família quando os pais continuam vivos e os motivos se desenrolam em surdina sem que eles os compreendam e alguém lhos explique porque há cinquenta anos atrás não se falava de certas coisas aos filhos que sentiam o telhado desabar em cima da cabeça sem perceberem porque lhes acontecia isso a eles e não aos outros meninos.
E afinal, esta segunda vida terá sido apenas a primeira a sério antes de uma série delas não previsíveis, não desejadas mas que foram acontecendo ao ritmo das pancadas de um castigo por uma certa sobranceria com que aos vinte anos olhamos a vida convencidos de que, tal como os domadores das feras, brandimos o chicote e ela se submete à nossa vontade.
A natureza humana é tão rica quanto diversa e para aqueles que procuram a aventura, as vidas atrás de vidas não são mais que a sua própria vida porque foi assim que a desejaram e é “saltando” de umas para as outras que a vida para eles vai ganhando uma trajectória que dá sentido à própria vida mas não era essa a minha natureza.
Agora, nesta vida em que me encontro e que espero, seja a última, tal como esperava das anteriores, sinto-me um pouco como os turistas da Agencia Abreu que compraram um pacote que em oito dias os levou a ver dez cidades diferentes convencidos que fizeram a melhor opção e depois, concluída a viagem e feita a inevitável retrospectiva, percebem que ver tanta coisa em tão pouco tempo só serviu para meter confusão na cabeça.
Temos, assim, que o número de vidas que cabem dentro de uma vida depende da natureza de cada um, da forma mais intensa, ligeira ou superficial com que se vivem, das marcas que elas nos vão deixando, se correspondem a uma estratégia de vida ou se pelo contrário foram uma inevitabilidade ou ainda, por outras palavras, se foram desejadas ou impostas pela própria vida.
A sensação que fica ao fim de todas estas vidas é que a vida não se comanda, é-se comandado, fazendo lembrar aqueles cavaleiros desajeitados que incapazes de impor a sua vontade ao animal lá vão, umas vezes a passo outras a trote e a galope guinando para a esquerda outras vezes para a direita até que um dia o cavalo farta-se do cavaleiro dá um pinote e espeta com ele de cangalhas no meio do chão… é o fim da viagem.
Porque não há uma escola que ensine uma pessoa a viver como há as escolas de equitação que ensinam a andar de cavalo por onde o cavaleiro quer, ao ritmo que quer e sem correr o risco de cair de calhostras?
Talvez porque a única escola que ensine a viver é a própria escola da vida em que entramos no dia em que nascemos, e relativamente a ensinamentos o único de que eu verdadeiramente me lembro foi quando o meu pai me dizia numa espécie de advertência para o futuro: “quem em boa cama fizer nela se há-de deitar”.
O ensinamento é bom, de fácil compreensão mas continua a deixar-nos à mercê dos caprichos da vida que não controlamos, que não dependem de nós a menos que fosse possível passar toda a vida a filosofar sobre a própria vida encarando-a como um laboratório em que tudo o que acontece são apenas testes laboratoriais cujos resultados se vão anotando num caderninho que fica como legado de quem simplesmente não viveu para poder observar a vida.
Mas dificilmente alguém abdica da vida, ela é um atrevimento ao qual ninguém resiste, quando se nasce é para se viver e não para se observar a vida como se ela não nos dissesse respeito mas, sinceramente, furtarmo-nos aos caprichos da vida não vejo outra maneira que não seja reduzi-la a um simples laboratório em que os tais caprichos seriam apenas matéria de estudo vividos e sentidos apenas como isso.
Mas à data, aqueles caracóis que ainda hoje guardo dentro de uma caixinha forrada de cetim e que por circunstâncias várias não acompanharam a minha mãe no seu caixão como era seu desejo em vida, constituíram, pela ingenuidade própria da minha tenra idade, o marco da minha primeira vida expresso no meu próprio desabafo:
-Oh mamã, e no tempo em que eu era "menina"?
Nos primeiros anos da década de 40 os filhos dos meninos ricos tratavam as mães por mamã enquanto que os dos pobres chamavam-lhes simplesmente mãe talvez porque as posses não davam para mais e eu, que desde sempre embirrei com privilégios de ricos ou do que quer que fosse, desagradava-me aquela diferença de tratamento, deixava-me embaraçado e no entanto, pela vida fora, nunca consegui tratar a minha mãe que não fosse por mamã.
É certo, privilégio, mesmo quando inofensivo custa a perder, pegam-se às pessoas como coisa ruim, infernizam a vida quando não concordamos com eles mas causam-nos nostalgia quando os perdemos e talvez por isso há quem lute para os manter.
Há 60 anos atrás a riqueza, regra geral, estava associada a um certo estatuto social, era uma questão de família, eram “os bem nascidos,” que não só herdavam bens mas também educação, “maneiras” como então se chamava e que os distinguiriam dos pobres pela vida fora e mesmo quando deixavam de ter dinheiro passavam à categoria de ricos falidos que podendo ser, na prática, a mesma coisa que pobre, na teoria não o era.
Sessenta anos passados encontramo-nos na fase da “macaqueação”em que o objectivo é imitar as pessoas de sucesso seja lá isso o que for. O dinheiro passou a ser moeda corrente que toda a gente mais ou menos tem e as “maneiras” foram substituídas por tiques, formas de vestir, de estar e de falar que fazem lembrar alguém com quem se quer fazer parecer… mas voltemos ao assunto inicial.
Depois de ter começado por ser “menina”muitas outras vidas foram acontecendo na minha vida, preenchida por dois divórcios, três casamentos, uma separação, uma guerra em África e a vida repartida por oito casas e dois continentes, quando era pressuposto que tudo se tivesse resumido, e era essa a minha vocação de pessoa pacata e profundamente sedentária e ciosa do seu “buraco”, pela expressão mais simples comum a tantas pessoas da minha geração: uma mulher, um casamento, uma casa, um trabalho e uma única vida dentro da própria vida.
Sim, porque ninguém pense que depois de uma qualquer destas coisas acontecer a vida continua a ser a mesma coisa que era dantes porque não é, nós próprios, pela necessidade de adaptação e readaptação a novos cenários e a novas pessoas, vamo-nos alterando para além do que seria normal.
Dos dois divórcios o que mais me marcou foi o dos meus pais, e o rapazinho que saiu dessa experiência já não era o mesmo daquele que a iniciou e essa foi a minha segunda vida, de todas a mais dolorosa. Porque nos divórcios dos pais os autores do enredo e os actores principais são eles enquanto os filhos se limitam a papéis secundários arrastados e envolvidos numa história que só é deles porque estavam ali, como as vítimas dos acidentes rodoviários em que o peão é colhido porque estava no sítio errado à hora errada, e quando recobra os sentidos está no hospital sem saber bem como lá foi parar.
Nada marca tanto os jovens como as injustiças e a pior de todas elas é a destruição da sua família quando os pais continuam vivos e os motivos se desenrolam em surdina sem que eles os compreendam e alguém lhos explique porque há cinquenta anos atrás não se falava de certas coisas aos filhos que sentiam o telhado desabar em cima da cabeça sem perceberem porque lhes acontecia isso a eles e não aos outros meninos.
E afinal, esta segunda vida terá sido apenas a primeira a sério antes de uma série delas não previsíveis, não desejadas mas que foram acontecendo ao ritmo das pancadas de um castigo por uma certa sobranceria com que aos vinte anos olhamos a vida convencidos de que, tal como os domadores das feras, brandimos o chicote e ela se submete à nossa vontade.
A natureza humana é tão rica quanto diversa e para aqueles que procuram a aventura, as vidas atrás de vidas não são mais que a sua própria vida porque foi assim que a desejaram e é “saltando” de umas para as outras que a vida para eles vai ganhando uma trajectória que dá sentido à própria vida mas não era essa a minha natureza.
Agora, nesta vida em que me encontro e que espero, seja a última, tal como esperava das anteriores, sinto-me um pouco como os turistas da Agencia Abreu que compraram um pacote que em oito dias os levou a ver dez cidades diferentes convencidos que fizeram a melhor opção e depois, concluída a viagem e feita a inevitável retrospectiva, percebem que ver tanta coisa em tão pouco tempo só serviu para meter confusão na cabeça.
Temos, assim, que o número de vidas que cabem dentro de uma vida depende da natureza de cada um, da forma mais intensa, ligeira ou superficial com que se vivem, das marcas que elas nos vão deixando, se correspondem a uma estratégia de vida ou se pelo contrário foram uma inevitabilidade ou ainda, por outras palavras, se foram desejadas ou impostas pela própria vida.
A sensação que fica ao fim de todas estas vidas é que a vida não se comanda, é-se comandado, fazendo lembrar aqueles cavaleiros desajeitados que incapazes de impor a sua vontade ao animal lá vão, umas vezes a passo outras a trote e a galope guinando para a esquerda outras vezes para a direita até que um dia o cavalo farta-se do cavaleiro dá um pinote e espeta com ele de cangalhas no meio do chão… é o fim da viagem.
Porque não há uma escola que ensine uma pessoa a viver como há as escolas de equitação que ensinam a andar de cavalo por onde o cavaleiro quer, ao ritmo que quer e sem correr o risco de cair de calhostras?
Talvez porque a única escola que ensine a viver é a própria escola da vida em que entramos no dia em que nascemos, e relativamente a ensinamentos o único de que eu verdadeiramente me lembro foi quando o meu pai me dizia numa espécie de advertência para o futuro: “quem em boa cama fizer nela se há-de deitar”.
O ensinamento é bom, de fácil compreensão mas continua a deixar-nos à mercê dos caprichos da vida que não controlamos, que não dependem de nós a menos que fosse possível passar toda a vida a filosofar sobre a própria vida encarando-a como um laboratório em que tudo o que acontece são apenas testes laboratoriais cujos resultados se vão anotando num caderninho que fica como legado de quem simplesmente não viveu para poder observar a vida.
Mas dificilmente alguém abdica da vida, ela é um atrevimento ao qual ninguém resiste, quando se nasce é para se viver e não para se observar a vida como se ela não nos dissesse respeito mas, sinceramente, furtarmo-nos aos caprichos da vida não vejo outra maneira que não seja reduzi-la a um simples laboratório em que os tais caprichos seriam apenas matéria de estudo vividos e sentidos apenas como isso.
E ensinamentos à posterori, será que os tirei? Talvez, mas jamais os divulgarei a menos que me deixem viver outra vez.