Memórias Futuras
Olhar o futuro pelo espelho retrovisor da história. Qual história? Que futuro?
sábado, abril 05, 2014
RITA LEE - BAILA COMIGO
Se Deus quiser ainda volto a ser índio, viver pelado pintado de verde num eterno Domingo...
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dois passados...
Nos meus tempos de rapaz, durante as férias de Verão na aldeia dos meus avós, na Concavada, nada me dava mais prazer e provocava maior excitação do que levantar-me de madrugada, ainda antes do nascer do sol, para ir à caça dos passarinhos ou à pesca no rio Tejo.
A ansiedade era tanta que quando o meu
velho amigo Adriano, mulateiro (tratava e trabalhava com a parelha de mulas) e
criado dos meus avós batia aos vidros da janela do meu quarto para me acordar, precisamente
na hora e minuto combinados, ele que nunca teve relógio... já eu estava
perfeitamente desperto aguardando que me chamasse.
Eu tinha por este homem uma grande
amizade e escondida admiração, a amizade devida aos homens simples e bons.
Lembro-me de pensar, na minha ingenuidade de jovenzinho que ainda era nesse
tempo, que se alguém havia de ir para o céu seria o Adriano. Chorei
sentidamente no seu funeral o que deve ter provocado a admiração da reduzida
assistência.
Por que chora ele? - Devem ter
pensado. Não lhe era nada, apenas neto do patrão… por que chora ele?
- Nunca
compreenderiam e eu próprio também não o saberia bem dizer mas ainda hoje, tantos anos volvidos, gosto
de pensar no meu amigo Adriano… e sei que estou sozinho nesses pensamentos como
o estava quando chorei no seu funeral.
Eu penso que há muito deixaram de haver
pessoas como o Adriano. Sabia muita coisa sobre as estrelas e o céu porque ele era o teto do seu quarto nas noites de verão
quando fazia bom tempo.
Nunca o ouvi expressar um desejo, nunca qui s nada para si mas manifestava-se agradecido
quando a minha avó, pela manhã, lhe dava um cálice de aguardente como mata bicho.
E lá ia eu, água passada pelos olhos a
fugir, sapatilhas nos pés, com toda aquela força e espontaneidade dos qui nze anos, caçar ou pescar como se dependesse daí
a minha sobrevivência…
Sei hoje, que da mesma forma que a minha
herança biológica está inscrita no meu ADN, também em qualquer “gavetinha”
recôndita do meu cérebro, estão guardadas memórias de comportamentos ancestrais
dos meus antepassados que viveram na Europa há cerca de 30.000 anos.
Em cada um de nós há um caçador que
descende do Homem de Cro-Magnon, nosso remoto avô, que ao longo de milhares de
anos tinha que se levantar cedo, talvez sem o meu entusiasmo da criança que eu fui, para
fazer as suas armadilhas, perseguir e caçar os animais que depois de mortos
transportava às costas para o acampamento onde as mulheres, crianças e velhos o
aguardavam.
Não duvido que o prestígio, a
importância, o status do meu “avô” Cro-Magnon, se media pelo tamanho e número
das peças de caça que transportava para a improvisada aldeia ou seja, pela sua
destreza e eficácia no abastecimento de carne ou talvez, melhor dizendo, pelo
papel de liderança e coragem demonstrada dentro do grupo que empreendia as
caçadas.
Essa eficácia traduzia-se em admiração
que fazia dele um homem desejado pelas mulheres e respeitado pelos outros e por
isso, lá estava eu, trinta mil anos depois, no regresso do rio, a “macaquear” o
meu “avô Cro-Magnon, percorrendo, orgulhoso, a aldeia com o peixe de meio qui lo (nas poucas vezes que o apanhava...), seguro
pelas guelras num convite implícito ao aplauso de todos aqueles com quem me
cruzava…
Mas antes de o levar para casa e como
“cereja que se põe em cima do bolo”, ia pesá-lo na balança da mercearia do Zé
Palmeiro, o mais convencido dos pescadores da aldeia que, roído de inveja, lá
dizia com um sorriso de despeito, o resultado da pesagem.
Na realidade, entre os Homens de Cro-Magnon
a alimentação não dependia tanto do resultado das caçadas como durante muito
tempo se pensou.
A análise laboratorial dos restos
encontrados nos locais onde viveram, indicam que quem mais contribuía para o
sustento do grupo eram as mulheres e as crianças que percorrendo os terrenos em
redor recolhiam frutos, raízes, tubérculos, ovos, que chegavam a representar,
nas zonas mais quentes, 80% da totalidade dos alimentos consumidos.
Na verdade, o meu “avô” Cro-Magnon me
desculpe mas, importante mesmo, nesses tempos, era a minha “avó”… isto não
obstante ele ser bem apessoado. A fronte, alta, não era sobrecarregada por
saliências supra-orbitrais, o queixo saliente e o occipital arredondado com um
volume encefálico de 1.500 cm3, em média, pouco superior ao dos europeus
actuais.
Tinha 174 cm de altura média que
só agora os europeus estarão a atingir e sendo bem parecido de feições, desde
que vestido, barbeado e de cabelinho cortado, ninguém o reconheceria ao passar
por ele no Chiado.
De resto, a sua indumentária também não
seria muito diferente da nossa, toda ela constituída por peles de animais
cortadas de forma a confeccionar botas, casacos e calças bem ajustadas ao corpo
graças às costuras que se tornaram possíveis devido ao uso das agulhas e dos
botões feitos de osso ou chifre.
E do ponto de vista intelectual ou
neurológico, se qui serem, teria
perfeitamente sido capaz de ir à lua se o contexto social lhe oferecesse as
condições certas.
Embora a sua esperança média de vida à
nascença fosse reduzida face à grande mortalidade pré-natal e infantil, às
infecções e aos múltiplos acidentes, os adolescentes e os adultos jovens eram
sãos, robustos, capazes de actividade física intensa como se pode deduzir pela
inserção dos músculos nos ossos e pelo estado das articulações próprias de quem
tinha uma alimentação rica, equilibrada e perfeitamente adaptada às suas
condições de vida.
Eram imunes à tuberculose, cancros,
osteoporose, artroses, osteomalacia, que é uma doença que se manifesta pelo
enfraquecimento e desmineralização dos ossos por falta de vitamina D e só
raramente apresentavam cáries.
O nosso “avô” Cro-Magnon tinha, como
grande caçador que era, os sentidos apurados e um grande poder de observação
sobre a natureza que o rodeava e saiu vitorioso na competição demográfica que
desenvolveu com o Homem de Neandertal que já se encontrava na Europa muitos
milénios antes de ele chegar.
Movimentava-se melhor no terreno, com
mais facilidade, formava grupos mais numerosos e menos isolados que lhe
permitiam trocas com mais facilidade.
Para além disso, pelos esqueletos
encontrados, verificou-se que havia, entre os homens de Cro-Magnon, duas vezes
menos jovens mortos do que entre os Neandertais.
Estes, atendendo ao seu carácter mais
sedentário, não se davam bem com as grandes deslocações que passaram a ser obrigados
a fazer atrás das manadas de mamíferos cada vez mais escassas. Durante essas
longas viagens os laços familiares enfraqueciam-se a fecundidade diminuía e a
mortalidade das crianças aumentava.
Inevitavelmente, esta competição só
poderia ser favorável ao nosso “avô” Cro-Magnon que, de acordo com estudos
efectuados pelo demógrafo Ezra Zubrow,
da Universidade de Buffalo, em função de uma capacidade de sobrevivência
superior em 1 a
2 por cento, bastam cerca de 30 gerações, ou seja, apenas um milénio para a
substituição completa de um grupo.
Na realidade, os Neandertais resistiram
mais tempo, talvez 10.000 anos, mas o resultado estava traçado. Alguns puderam
ser absorvidos por cruzamentos e mestiçagens sucessivas, os outros, cada vez
menos numerosos, recuaram diante do invasor enfraquecendo-se progressivamente.
Os seus últimos vestígios, datados de há
28.000 anos, foram encontrados numa gruta em Gibraltar, seu último refúgio sem
que tivessem encontrado forças ou vontade para atravessarem a pequena distância
que, nesse tempo, os separava do continente Africano de onde eram oriundos e do
qual tinham saído centenas de milhar de anos atrás.
O
nosso “avô” Cro-Magnon era um artista genial dominando perfeitamente as
técnicas de pintura, perspectiva, falsa perspectiva, relevo e da tradução do
movimento.
O testemunho artístico que nos deixou,
por exemplo, nas grutas de Lascaux, em França, consideradas a Capela Sistina da
Pré-História, quando foram visitadas por Pablo Picasso, mereceram-lhe o
seguinte comentário: “Nós não inventámos nada... está aqui
tudo!”
Esta forma de arte denominada Pinturas Rupestres
(pinturas ou gravuras na pedra) era executada, numa explicação mais moderna,
por xamãs, espécie de feiticeiros, que penetrariam nas grutas e em estado de
transe pintariam imagens das suas visões, uma espécie de “magia propiciatória”
para o sucesso das caçadas.
A arte expressa nestas figuras está ao
serviço de um mito, é todo o conhecimento que têm do mundo e que eles se
esforçam por inscrever na rocha, conhecimento, é certo, mas também as dúvidas,
os temores, as interrogações.
Com quem procuravam eles comunicar, que
harmonia pretendiam eles estabelecer ou restabelecer indo, assim, ao encontro
do sobrenatural e com que fim?
Mas essas magias não teriam sido
suficientes para o sucesso das caçadas se o nosso “avô” não se tivesse ele
apoiado em armas muito eficazes tais como o “propulsor” que decuplica a
potência das armas de arremesso e as próprias lanças cujas pontas de pedra ou
de osso eram fixadas solidamente à extremidade de paus de madeira rija
convertendo-os, assim, em dardos e lanças temíveis.
O homem de Cro-Magnon, nosso “avô”,
desenvolveu uma verdadeira cultura que vai muito para lá da tímida tomada de
consciência manifestada pelo homem de Neandertal.
O enterro dos mortos obedecia a
cerimoniais sistemáticos que variavam segundo as regiões mas que têm sempre
presente a preocupação de honrar o defunto e assegurar-lhe o melhor conforto
possível no além.
As sepulturas estão cheias de objectos e
de jóias de osso e marfim e os corpos vestidos com roupa ornamentada com
pérolas e polvilhados de ocre com armas dispostas ao lado como ornamentos.
As jóias e os adornos fabricados a
partir de dentes de carnívoro, vértebras de peixe, conchas, pulseiras cinzeladas
em marfim, figuras humanas ou de animais talhadas com muito realismo em chifres
de cervídeo, com a preocupação de criar beleza, mas também figuras ambíguas
cuja interpretação ainda hoje nos escapa.
Outras peças são mais explícitas como
aquelas estatuetas esculpidas em marfim ou pedra representando mulheres de
silhueta de grande ventre e seios a que os arqueólogos denominaram de Vénus,
muito comuns por toda a Europa até à Sibéria, e que são símbolos de
fertilidade, uma deusa mãe protectora ou talvez a imagem que o Cro-Magnon fazia
da antepassada do género humano, a Eva universal.
O estilo de vida característico do nosso
avô, não sendo nómada, obrigava-o no entanto, a nomadizar-se ao longo das
estações do ano apropriando-se de lugares privilegiados aos quais regressava
periodicamente.
Desta forma, há grupos que acabam por se
encontrar frequentemente, o que os leva a comunicar, a estabelecer relações
regulares, a colaborar de forma pontual e a praticarem trocas materiais e
culturais.
Mas a segunda Grande Revolução estava
para acontecer e o nosso “avô” Cro-Magnon iria ser, também ele, vítima das
alterações climáticas na Europa com o princípio do fim da era glacial, o
aumento das temperaturas e dos índices pluviométricos, o aparecimento em força
das florestas, o desaparecimento progressivo das savanas, das tundras e das
manadas de animais de grande porte.
De futuro, o homem iria domesticar as
ervas e alguns animais selvagens pondo ambos ao seu serviço e, ao fazê-lo,
passaria a ser escravo da terra e do trabalho monótono e repetitivo que ela
implica.
Daí, resultariam excedentes de alimento que mais
cedo ou mais tarde, iriam ser apropriados por uns em prejuízo de outros e a terra
que produzia esses alimentos deixaria de estar disponível e seria, também ela,
apropriada por uns, poucos, os “senhores” da terra e a multidão dos restantes,
seus servos.
A sociedade organizou-se, hierarqui zou-se, sofisticou-se.
Os xamãs tornaram-se sacerdotes e as
crenças e mitos evoluíram para religiões, primeiro de uma multiplicidade de
deuses e mais tarde, para simplificar, mas só aparentemente, de um só.
Estavam criados os ricos e os pobres, os
fracos e os poderosos, não em função das suas capacidades físicas, destreza ou
coragem, como no tempo do “avô” Cro-Magnon, mas principalmente, em função do
nascimento e do “ter” ou “não ter”.
Finalmente, apareceram as cidades e
delas brotaram as civilizações lideradas pelos grandes chefes políticos e militares
à frente dos seus enormes exércitos. As comunidades de carácter matriarcal deram
lugar, pela mudança de papel desempenhado pelo homem de caçador/colector em
soldado guerreiro, em sociedades patriarcais e machistas.
O nosso “avô” Cro-Magnon com a sua
destreza, força e coragem e o seu apurado sentido de observação e instinto de
caçador foi substituído por outro, com outras capacidades baseadas na
abstracção e racionalização.
A prática da agricultura e o consequente
sedentarismo, depois da descoberta da técnica que permitiu o domínio e o
controle do fogo que esteve na origem da primeira Grande Revolução da
humanidade, deu lugar à segunda Grande Revolução.
A primeira, fez-nos nascer como Homo
Sapiens, a segunda projectou-nos para um destino que a nós próprios, que
vivemos os dias de hoje, não podemos, com algum realismo, deixar de temer.
Creio que temos hoje mais razões para
nos atormentarmos e temermos o futuro do que tinha o nosso “avô” Cro-Magnon…
mas isto é só uma desconfiança minha…
…e se amanhã nos levantássemos de
madrugada, antes do nascer do sol, e fossemos fazer uma pescaria ao rio?...
Ou então, como diz a Rita Lee: - “Se Deus qui ser ainda volto a ser índio, viver pelado pintado
de verde num eterno Domingo…”
Fiz obra de valia, perdoem-me a vaidade... |
OS VELHOS
MARINHEIROS
Episódio nº 47
Escrevi-o para preencher uma lacuna e sanar uma injustiça: muito se escreve sobre os Presidentes da República, sobretudo enquanto eles estão no poder, elogios a granel.
Os Vice-Presidentes, porém, ficam no
esquecimento, a não ser que assumam o governo. Quem se lembra, de memória, da
relação completa dos Vice-Presidentes da República?
Quem se recorda, por exemplo, do nome do
Vice-Presidente durante o mandato de Prudente de Morais ou de Hermes da
Fonseca? Duvido que saibam. Basta isso para demonstrar a oportunidade do meu
livro.
Animou-me igualmente a árdua empreitada
o concurso na ocasião aberto pelo benemérito Instituto Histórico e Geográfico
para monografias históricas, modesto prémio em dinheiro e impressão do trabalho
seleccionado às expensas do Instituto.
Honrosa láurea a tentar-me, consegui
tempo graças à catarata e ao compadre, atirei-me aos vices. Fiz obra de valia,
perdoem-me a vaidade, onde o interessado encontra o nome completo, a filiação,
as datas e locais de nascimento e morte, colégios e faculdades frequentadas,
cargos exercidos, obras realizadas, os feitos consideráveis de cada um dos
Vice-Presidentes
Não esqueci nem mesmo as esposas e os
filhos e até alguns netos são citados. Deu-se a um trabalho desgraçado e um
renitente catarro devido à poeira da Biblioteca Estadual.
Pois bem: concorri ao prémio, certo de
abiscoitá-lo, e tive a decepção de vê-lo atribuído ao outro único concorrente,
o doutor Epaminondas Torres, com um trabalho sobre a Sabinada.
Mesmo em número de páginas dactilografadas sua
monografia é inferior à minha: quarenta magras laudas, metade exacta do meu
livro.
E por que lhe deram o prémio numa tão
flagrante injustiça? Vão saber imediatamente. Ofendido em meus brios, fui ao
Instituto e discuti com o senhor secretário. Ele olhou-me por baixo dos óculos,
respondeu-me:
- Quem é o senhor para vir aqui falar em injustiça? Não conhece por acaso o Dr.
Epaminondas Torres, não sabe que se trata de um dos nossos mais ilustres
advogados? Que títulos possui o senhor?
Estão vendo? Meu erro foi ter concorrido
contra um bacharel, um doutor. Que títulos possuía eu? Nenhum, a não ser alguns
sonetos publicados em cantos de página de jornais e revistas.
Engoli o insulto, tentei obter do
Instituto pelo menos a impressão do livro já que me haviam afanado o prémio.
Encontrei boa vontade, os nobres historiadores deviam estar com a consciência
doendo. Mas o director da Imprensa Oficial, onde deviam ser impressos os
volumes, o meu e o premiado, tapeou lindamente os velhinhos do Instituto,
jamais mandou os originais para a oficina, meses depois deixou o cargo e o novo
director nem qui s ouvir falar no
assunto.
Assim o trabalho do Dr. Epaminondas
nunca foi publicado, não podendo estabelecer-se a comparação com o meu, o que
me leva a crer ter havido, em todo esse assunto, sujeira grossa.
Quanto aos Vice-Presidentes da
República, editei o livro por minha conta, imprimindo-o na gráfica do Sr.
Zitelmann Oliva que me cobrou um preço absurdo mas facilitou-me o pagamento,
tendo eu assinado duplicatas.
Suei para pagar, mas saiu um volume bonitinho,
noventa e duas páginas de “úteis informações”, como sobre ele escreveu o
erudito autor da História da Bahia, Dr. Luiz Henrique Dias Tavares:
- “Caro confrade, acuso e agradeço o recebimento
de seu livro Vice-Presidentes da República, repositório de úteis informações.
Cordialmente, Luiz Henrique”.
sexta-feira, abril 04, 2014
Frank Sinatra - My Way
Quando levaram esta canção a Frank Sinatra ele disse depois de a ouvir: "esta é minha..."
Fernando Pessoa (Albero Caeiro, heterónimo) |
Sou um guardador de rebanhos
Sou um guardador de rebanhos.
O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.
Pensar numa flor é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o sentido.
Por isso quando num dia de calor
Me sinto triste de gozá-lo tanto,
E me deito ao comprido na erva,
E fecho os olhos quentes,
Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
Sei da verdade e sou feliz.
Uma
professora dava uma aula aos seus alunos sobre as diferenças entre os ricos e os
pobres.
A Júlia levanta o dedo:
- O meu pai tem tudo: televisão,
telescópio, DVD...
- Tudo bem, diz a professora, mas será que tem um
barco?
A Júlia reflecte e diz:
- Bem, não...
- Estás a ver,
é como eu disse, não podemos ter tudo.
- Professora, disse o Artur. O meu
pai tem tudo: ele tem TV, telescópio,
DVD, barco...
- Sim, responde a
professora, mas será que ele tem um avião particular?
Depois de
reflectir, Artur responde:
- Bem, não...
- Estão a ver que não se
pode ter tudo na vida. Disse a professora.
O Joãozinho levanta o dedo e diz:
- O meu
pai é que tem tudo!
- Então porquê? Pergunta a professora.
-
Porque no Sábado, quando a minha irmã lhe apresentou o namorado,
PORTISTA e PRETO, o meu pai disse:
-
ERA SÓ O QUE ME FALTAVA!
O tormento da falta de memória |
À Mesa do Café em
Santarém
- ou o tormento da falta de memória...
- Como está Srª Dª. Idalina?
- (em voz muito lenta e arrastada) - ... Vamos andando, vamos andando…
- ... É um espanto…
é um espanto… a minha memória não está bem… tomo tantos remédios mas não fazem
nada… o meu marido é com a vista… eu é com a memória…
- ... Já morreram
várias meninas precisamente com a minha idade… a minha idade…
- A minha filha
faz 88 anos no dia 5 de Abril…
- 48, Srª Dª Idalina.
- ... 88... no
dia 5 de Abril…
- Não pode, Srª
Dª Idalina. Se ela tivesse feito 88 era mais velha do que eu.
- ... 48, no
dia 5 de Abril… o meu neto e a minha nora querem que eu vá com eles uma semana
a Alijó… mas já não está lá ninguém… as meninas da minha idade já lá não estão…
- É assim, Srª
Dª Idalina, é a vida. Para que vai lá a senhora?
- … As meninas
da minha idade já lá não estão, a minha família também já lá não está, e eu às
vezes choro…
Pois esse analfabeto é bacharel em Direito... |
OS VELHOS
MARINHEIROS
Episódio Nº 46
Hoje há quem caçoe dos doutores, faça burla dos advogados, achando que anel de grau não prova competência. Já li numa gazeta artigo repleto de argumentos onde se provava, por a mais b, residirem nos bacharéis todos os males do Brasil.
É bem possível, também penso assim, mas
não discuto, respeito a liberdade de opinião. Sou capaz de jurar, no entanto,
que o autor do artigo é doutor em qualquer coisa ou oficial da activa, senão
onde iria buscar coragem para tais afirmações? Competir com um doutor é idiotice,
rematada loucura, sou prova disso.
Eis por que dou inteira razão ao
comandante (enquanto a versão de Chico Pacheco não ficar inteiramente provada
não lhe retiro o título, um historiador não pode ser precipitado): a causa de
sua melancolia parece-me das mais justas.
Mesmo rico e instalado na Vida, há de
ter sofrido humilhações e aborrecimentos por lhe faltar um doutor ou um major
no nome, por não ter curso universitário, mesmo desses feitos nas coxas, por
malandrins jamais vistos nas aulas como Otoniel Mendonça, o tal amigo do
Telêmaco Dórea, de cujas maledicências defendi, em boa hora, o eminente Dr.
Alberto Siqueira.
Pois esse analfabeto é bacharel em Direito. Durante
os anos de Faculdade trocou pernas na zona do baixo meretrício e falou mal da vida
alheia na porta da Livraria Civilização, na Rua Chile.
Os professores mal lhe viram as fuças com o
que, aliás, nada perderam os venerandos mestres. No entanto, repetindo
matérias, fazendo exames de segunda época, passando pela tangente, obteve o
canudo e, com ele armado, cavou em seguida emprego público (desses óptimos onde
não há nenhum trabalho a fazer), continuou na Rua Chile a falar mal da
humanidade.
Não chegava a uma hora diária o tempo
por ele dispensado ao serviço do Estado. Pois ainda assim pareceu-lhe demasiado
tempo, insinuou uma infiltração no ápice do pulmão esquerdo, deram-lhe, sem
pestanejar, licença para tratamento de saúde e em licença ele continua até
hoje, gordo e corado, a macular com sua presença a paisagem de Periperi.
Agora, a diferença: só porque não tenho
título de doutor, penei como cão sem dono, para obter uma licença de seis meses
na repartição, os médicos numa intransigência medonha, fazendo os maiores
elogios à minha vista, nunca tinham examinado olhos tão perfeitos.
Garantira-me um amigo que o golpe da
doença dos olhos pega sempre: os médicos, comovidos, assinam os papéis sem
discussões nem exames.
Conversa fiada, se a ele não examinaram
os olhos foi em consideração a seu diploma de dentista, uma espécie de doutor
de segunda classe mas ainda assim com suas vantagens.
Só escapei ao descobrir, casualmente,
ser um dos médicos sobrinho de um compadre meu. Joguei-lhe em cima o tio com um
pedido e o farsante desencavou cataratas graves a ameaçar-me de cegueira.
Deu-me seis meses e renovou. Pude assim
dedicar-me, à custa do Estado, à realização da minha obra sobre os
Vice-Presidentes da República.
Não sei se conhecem esse meu trabalho,
se não o leram vale a pena fazê-lo, digo--o sem falsa modéstia, obteve
aceitação e apreço...
Aliás, o caso desse livro vem provar
mais uma vez a importância de ser doutor.
quinta-feira, abril 03, 2014
Vinhas no Ribatejo |
Filhos
das
Extremas
Extremas
Numa vinha do
Ribatejo, as crianças brincavam por entre o emaranhado das cepas ainda por
podar e que por isso apresentavam aquele aspecto de desalinho e desmazelo a
fazer lembrar os palcos das batalhas do antigamente uma vez acabada a luta e
antes de retirados os corpos e os destroços que tinham algum valor.
A vindima também é
uma espécie de luta perdida pelas cepas que pretendem esconder entre as parras
o produto da sua criação perante o exército de homens e mulheres, mais elas que
eles, que as tomam de assalto, tesoura numa mão e balde na outra e que virando
e revirando as vides vão cortando os cachos que as parras procuram esconder
ciosamente.
Retirado o produto do
saque a vinha fica uns meses ao abandono e para se retemperar e esquecer da
afronta hiberna durante o Inverno que se aproxima e algumas vezes afunda as
mágoas nas águas das cheias do rio Tejo, quando este ainda tinha cheias.
Depois, a natureza
benigna que não é de ressentimentos, faz chegar a Primavera com as papoilas, os
mal-me-queres, as andorinhas e tudo acaba por esquecer entre os risos e as
corridas das crianças enquanto os pais se afadigam de volta das cepas cortando
e atando as vides junto aos “olhinhos” de onde hão-de brotar, lá para o fim do
Verão, mais cachos com uvas resplandecendo de cor.
Mas até lá, entre
outras coisas, há que combater o míldio e não há que se atrasar senão a praga
avança irremediavelmente e o que haveria de ser para os homens irá para “os
bichinhos”.
É a fase mais difícil
quando, a partir do início da Primavera, a doença começa a atacar. O Manuel e a
mulher assumem o papel de enfermeiros e todos os dias, bem cedo, lá os temos à
cabeceira do doente, mirando e remirando as folhas à procura daqueles
sinaizinhos brancos, indicadores da doença que depois passará também para os
cachos porque a descoberta precoce desses sinais, como em todas as doenças, é
decisiva para o êxito no combate à praga.
A mulher, especialmente vocacionada para as tarefas laboratoriais, prepara o remédio dissolvendo em água, no pequeno tanque que existe para esse efeito, a meio da propriedade, o produto que de todos quantos existem lhes parece ser o melhor para debelar a doença.
Depois, enche o
depósito do pulverizador, ajuda a colocá-lo nas costas do marido e o Manuel lá
vai, vinha fora, sem ter perdido o tino à última cepa que pulverizou quando
todas parecem exactamente iguais e retoma a tarefa procurando atingir com os
borrifos todas as folhas mesmo as menos acessíveis.
Atentemos nos seus
movimentos, reparemos na sua expressão e veremos nele, não o trabalhador
agrícola mas um especialista de saúde que põe em cada gesto a precisão de uma
técnica não aprendida na escola, antes uma herança do seu pai e que ele executa
com uma grande dose de amor.
Se não conseguirmos
ver estas pequenas diferenças do gesto e da expressão nunca compreenderemos
porque a ligação do homem à terra é tão diferente de todas as outras. Não é o
Manuel que é dono daquela terra, é ela que é dona dele.
Mas não é fácil a
vida destas famílias, as vinhas não têm dimensão suficiente para rentabilizar a
compra de máqui nas que tornariam os
trabalhos mais rápidos e por conseguinte mais baratos, para além de que uma
atitude muito individualista e desconfiada dos proprietários das terras, não
permite trabalhá-las em conjunto fazendo grande o que é pequeno.
Por isso, é sem
esperança que o Manuel olha para as extremas da sua vinha percebendo que
enquanto elas se mantiverem onde estão a sua vida não passará da cepa torta.
Do preço do vinho
também não há que esperar grande coisa. Se há anos de fartura, que até os há,
logo o seu valor cai por aí abaixo de tal forma que nos anos de escassez se
chega a ficar com mais dinheiro no fim da safra.
As grandes casas
agrícolas, essas é que se safam, com tantos hectares de vinha podem ter
tractores que lavram a terra e procedem à pulverização mecânica e nos anos de
fartura armazenam o vinho em grades depósitos que vendem mais tarde quando o
preço lhes convém.
O Manuel sabia que
era assim mas nada podia fazer. Os trabalhos da vinha sabia-os ele de olhos
fechados, a sua infância, tal como a do seu filho agora, tinha-a passado entre
as cepas daquela vinha, quem sabe mesmo senão teria sido concebido no meio
delas.
A vinha era a sua
segunda casa, à sombra da oliveira ao pé do tanque onde se faz a calda para as
“curas” tinha a mãe lhe dado de mamar e era lá, num berço improvisado, que ele
dormira as suas primeiras sestas de criança.
Estava fora de causa
vender ou arrendá-la. Que pensaria o pai lá no outro mundo, depois daquele
esforço que fizera anos antes de morrer para “armar” a vinha, renová-la com
castas novas, preencher as falhas das que entretanto tinham morrido e dar-lhe
todo aquele aspecto de propriedade dos ricos só que em ponto pequenino já se vê
e… o que pensaria ele próprio?
E o seu rapaz, como
haveria de se governar só com aquela vinha que mal dava para ele e para a
mulher? Lá teria que ir trabalhar para algum dos ricos da terra, que ele não
tinha problemas com o trabalho, era sossegado, tinha boas mãos e sempre
aprendera tudo com muita facilidade.
Tomara o patrão que
viesse a ficar com ele mas trabalhar na terra que é nossa é muito diferente, as
cepas é como se fossem o prolongamento da família e elas também percebem isso e
o rapaz já demonstrava o mesmo apego.
O Manuel nunca ouvira
falar na escola da família dos Habsburgos da Casa Imperial da Áustria. O
professor só lhe ensinara os Reis de Portugal e alguns, agora, ele já os
esquecera mas houve tempo em que os soubera a todos com as dinastias a que
pertenciam e tudo… mas dos Habsburgos, esses, nunca ouvira falar.
O mesmo já não diria
dos “filhos das extremas” embora fosse um assunto mais ou menos tabu lá na
aldeia, daqueles que eram falados em conversas surdas do…”cala-te boca”, e mais
pelas mulheres do que os homens que fugiam desse tema mas não deixavam de
pensar nele porque o assunto interessava a ambos por igual.
No entanto, era mais conversa de
travesseiro…que é também para isso que servem as mulheres.
A coisa era mais
notada por altura das bodas, quando os pais dos noivos eram donos de vinhas que
confrontavam as extremas umas com as outras e eram inevitáveis alguns sorrisos
e aquelas frases perdidas… «lá vamos ter mais filhos das extremas».
Claro que havia uma
intenção premeditada de aumentar o tamanho das propriedades pelo casamento dos
filhos, mesmo quando tinham relações próximas de parentesco. Não quer dizer que
os jovens não se gostassem, conheciam-se desde pequenos, brincaram em criança
nas extremas das vinhas que eram dos pais, enquanto eles trabalhavam, mais
tarde foram aos mesmos bailes e tudo sempre abençoado pela família.
Era tudo tão
intrincado que era difícil dizer onde acabava a verdade e começava a má-língua.
Eram zonas de fronteira tal como as extremas das vinhas.
O que eles tinham era
mais pudor que a família dos Habsburgos que nem sequer dava para disfarçar a
intenção dos casamentos entre parentes chegados mas o povo, por ignorância,
falava em maldição.
Muitas pessoas da tão distinta família, ao
longo de várias gerações, nasceram defeituosas com degenerescências faciais, o
famoso queixo dos Habsburgos, como resultado de uma desordem genética pelo
acumular de casamentos consanguíneos, dos quais, o mais célebre, terá sido
Carlos II de Espanha que morreu cedo e estéril pondo ali termo à dinastia à
qual se seguiu a dos Bourbons.
Contudo, com esta
astuta política de casamentos, concebida por Maximiliano, pouparam-se muitas
guerras, muitas vidas e muito sofrimento que de outra forma seriam inevitáveis
para manter e aumentar o poder desta família na Europa que, veja-se, começa
quando o Rei Rodolfo de Roma conqui stou
a Áustria em 1273 e só terminou em 1918 com a 1ª G.G. mundial.
Pelo meio governaram a Europa como Imperadores, Reis, Duques e Ar
Mas, destas coisas, o
Manuel e a mulher não sabiam nada e nesse dia à noite, deitados na cama, ele
cansado de um dia inteiro com o pulverizador às costas puxando para cima e para
baixo o manípulo, nem sei quantas milhares de vezes e ela derreada dos braços
de mexer a calda e carregar os pulverizadores, começaram a falar do filho:
- Oh homem, já
reparaste que o nosso rapaz parece agradado da filha dos nossos vizinhos,
aqueles que têm a vinha pegada com a nossa, com a extrema também a acabar
na vala grande onde está a figueira que dá os figos pingo de mel?
- Então e Oh mulher,
eu não sei onde fica a figueira e onde acaba a vinha do vizinho? - Mas a
rapariga ainda é nossa sobrinha…
- Oh!, é prima dele
em 2º grau, já se viram coisas bem piores e a vinha... olha que ainda é um bom
bocado maior que a nossa, não estará tão bem tratada, é verdade, mas isso é
porque o Hermenegildo não chega aos teus calcanhares e depois, também com
aquela doença que ele tem já não vai longe…
-E a rapariga,
gostará dele?
- Ora, vê-se mesmo
que és homem, nunca reparas em nada, deixa isso por minha conta e dorme que
amanhã é outro dia de canseira…
… Algures, na década
de sessenta, no seio de uma família da freguesia do Cartaxo, no coração do Ribatejo
deste Portugal que embora pequenino, também conheceu a política casamenteira concebida
pelo rei Maximiliano da Casa Imperial da Áustria.
No ponte de comando, apoiado no seu canhão.... |
OS VELHOS
MARINHEIROS
Episódio Nº 45
Em seu cavalo pampa, a fulgente espada na mão, os olhos ferozes, o Major Vasco Moscoso de Aragão era a própria imagem da guerra e da vitória.
Rápida seria sua carreira nos campos de
batalha, de heroísmo a heroísmo, de promoção a promoção, chegando a general em
alguns meses e várias batalhas, morrendo glorioso no fim da guerra, ao entrar em Buenos Aires em meio
ao fogo e à metralha, a bala perdida atingindo-o no peito.
Nem assim caía do seu cavalo pampa,
debruçava-se na sela, o peito roto, mas a vontade inflexível levando-o até o
Palácio do Governo. Seu nome transformado em legenda, aprendido pelas crianças
nas escolas.
Mas, como aquela guerra travava-se nos
campos e nos mares, sobretudo nos mares, o navio sob o comando do Almirante
Vasco Moscoso de Aragão, o mais jovem da Marinha de Guerra (começara
capitão-de-corveta ao iniciar-se o conflito bélico), rompia a barreira da Frota
Argentina e sozinho bombardeava Buenos Aires, silenciava os fortes da cidade
inimiga, entrava no porto a bordo de seu cruzador com a bandeira da jovem
República Brasileira a tremular
Na ponte de comando, apoiado a um
canhão, o almirante dava ordens: “Cada um em seu posto para morrer pelo
Brasil!”
Frase um pouco pessimista. Era melhor
modificá-la: “Cada um em seu posto, pronto para dar a vida pela vitória do
Brasil!” Assim estava melhor, mais vibrante.
Tomava do binóculo, examinava as
posições argentinas. Sua voz firme ordenava: “Fogo!” e os canhões cuspiam a
morte na orgulhosa cidade.
Botava a pique, um a um, em manobras
rápidas e jamais vistas de tão intrépidas, os buquês portenhos. Destruía os
fortes, rasgava as defesas e, entre a fumaça e o clarão dos incêndios, na torre
do seu navio entrava no porto conqui stado,
pondo fim à guerra, o Comandante Vasco Moscoso de Aragão.
A mulher movimentava-se na cama, abria
os olhos sonolentos, reconhecia o quarto e o leito, tivera a sorte de ser
escolhida na noite anterior, precisava agradá-lo, talvez até ele se enrabichasse.
Estendia os braços, a voz mole de sono e de dengue:
- Seu Aragãozinho . ..
Rompia e despedaçava o sonho, que é a
liberdade do homem, a que jamais pode ser domada, oprimida ou roubada, aquela
que é seu último e definitivo bem. Arrancava o Comandante Vasco Moscoso de
Aragão da torre do seu navio.
Onde volta a aparecer a besta do
narrador tentando impingir-nos um livro
Permitam-me interromper a narrativa das
aventuras do comandante, na versão de Chico Pacheco, destinada a tão graves
consequências em Periperi, para afirmar solenemente, plantado na viva
experiência, não ser nenhuma brincadeira essa questão de títulos e patentes.
Ainda hoje, quando os tempos mudaram,
uma coisa é um doutor ou um oficial, outra, muito diferente, é um infeliz sem
diploma.
Para os primeiros, todos os privilégios e regalias, para os demais a
dura lei. Até direito a prisão especial possuem os diplomados, sem falar nos
oficiais, presos no cassino do quartel, mera formalidade.