Memórias Futuras
Olhar o futuro pelo espelho retrovisor da história. Qual história? Que futuro?
sábado, março 27, 2010
A grande diferença reside nos aspectos culturais de um povo que cultiva o respeito pela sociedade a que pertence...
ATÉ QUE A MORTE NOS SEPARE...
DEPOIS DE MEIO SÉCULO DE MATRIMÓNIO ELE MORREU.
POUCO TEMPO DEPOIS TAMBÉM ELA SE FOI PARA O CÉU ...
No céu encontra o marido e corre rápidamente para ele e diz :
Queriiiiiidoooooo!!! Que bom encontrar-te !!!!
Ao que ele responde :
Não me lixes Cristina! O contrato foi muito claro :
ATÉ QUE A MORTE NOS SEPARE !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
POUCO TEMPO DEPOIS TAMBÉM ELA SE FOI PARA O CÉU ...
No céu encontra o marido e corre rápidamente para ele e diz :
Queriiiiiidoooooo!!! Que bom encontrar-te !!!!
Ao que ele responde :
Não me lixes Cristina! O contrato foi muito claro :
ATÉ QUE A MORTE NOS SEPARE !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
Pedra Filosofal
Eles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso,
como este ribeiro manso
em serenos sobressaltos,
como estes pinheiros altos
que em verde e oiro se agitam,
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.
eles não sabem que o sonho
é vinho, é espuma, é fermento,
bichinho álacre e sedento,
de focinho pontiagudo,
que fossa através de tudo
num perpétuo movimento.
Eles não sabem que o sonho
é tela, é cor, é pincel,
base, fuste, capitel,
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia,
máscara grega, magia,
que é retorta de alquimista,
mapa do mundo distante,
rosa-dos-ventos, Infante,
caravela quinhentista,
que é cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, passo de dança,
Colombina e Arlequim,
passarola voadora,
pára-raios, locomotiva,
barco de proa festiva,
alto-forno, geradora,
cisão do átomo, radar,
ultra-som, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.
Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida,
que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança.
In Movimento Perpétuo, 1956
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso,
como este ribeiro manso
em serenos sobressaltos,
como estes pinheiros altos
que em verde e oiro se agitam,
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.
eles não sabem que o sonho
é vinho, é espuma, é fermento,
bichinho álacre e sedento,
de focinho pontiagudo,
que fossa através de tudo
num perpétuo movimento.
Eles não sabem que o sonho
é tela, é cor, é pincel,
base, fuste, capitel,
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia,
máscara grega, magia,
que é retorta de alquimista,
mapa do mundo distante,
rosa-dos-ventos, Infante,
caravela quinhentista,
que é cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, passo de dança,
Colombina e Arlequim,
passarola voadora,
pára-raios, locomotiva,
barco de proa festiva,
alto-forno, geradora,
cisão do átomo, radar,
ultra-som, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.
Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida,
que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança.
In Movimento Perpétuo, 1956
Poema erótico de Drummond de Andrade
Satânico é meu pensamento a teu respeito, e ardente é o meu desejo de apertar-te em minha mão, numa sede de vingança incontestável pelo que me fizeste ontem.
A noite era quente e calma e eu estava em minha cama, quando, sorrateiramente, te aproximaste. Encostaste o teu corpo sem roupa no meu corpo nu, sem o mínimo pudor! Percebendo minha aparente indiferença, aconchegaste-te a mim e mordeste-me sem escrúpulos. Até nos mais íntimos lugares. Eu adormeci.
Hoje quando acordei, procurei-te numa ânsia ardente, mas em vão. Deixaste em meu corpo e no lençol provas irrefutáveis do que entre nós ocorreu durante a noite.
Esta noite recolho-me mais cedo, para na mesma cama te esperar. Quando chegares, quero te agarrar com avidez e força.Quero te apertar com todas as forças de minhas mãos. Só descansarei quando vir sair o sangue quente do teu corpo.
Só assim, livrar-me-ei de ti, mosquito Filho da Puta!
DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS
EPISÓDIO Nº 79
Sentadas dona Norma e dona Flor, fez-se um breve silêncio mas logo Dionísia o encheu com a sua voz macia. Desenvolveu-se para o lado do dia tão bonito, queixando-se de ainda não poder sair rua afora:
- Não sei ficar em casa quando a chuva lava a cara do dia e ele reluz novo em folha, todo faceiro…
Dona Norma também não; e assim foram as duas falando do sol e da chuva e das noites de luar em Itapoã, ou no Cabula, e nem se sabe como desembarcaram no Recife, onde habitava uma irmã de dona Norma, casada com um engenheiro pernambucano, e onde Dió residira alguns meses:
- Para mais de sete meses, fui atrás de um clandestino, um que me alumbrou a vista, um desatinado. Me largou por lá…
Onde não chegariam as duas, a que distantes portos, nesse diálogo sem compromisso nem consequência – a conversa pelo prazer da conversa – se dona Flor, ouvindo o carrilhão de uma Igreja do Terreiro a anunciar a hora do meio-dia, não se alarmasse, interrompendo a amável prática:
- Norminha, assim a gente vai demorar muito…
- Por mim não me atrapalha, é um prazer… - disse Dionísia.
Noutra ocasião a gente vem com mais tempo – prometeu dona Norma – Hoje a gente veio com um propósito…
- Estou ouvindo…
- Essa minha amiga, dona Flor, não tem filho nem pode ter. É coisa mesmo de conformação, enfim…
- Sei como é. Tem o oveiro virado, não é?
- Mais ou menos…
- Mas pode desvirar, Marildes, uma conhecida minha, desvirou.
- Com Flor não tem jeito, o médico já disse.
- Médico? – riu uma risada divertida, de pouco-caso – Médico só sabe dizer palavra bonita e ter caligrafia ruim. Se dona moça aí procurar Paizinho, ele dá jeito em dois tempos. Que é que acha, seu João?
João Alves apoiou:
- Paizinho? Faz uns passes na barriga dela, é filho todo o ano.
Dona Norma resolveu desconhecer o novo assunto, evitar o feiticeiro com toda a sua fama, sua reputação de babalaô. Pousara o olhar na criancinha adormecida. Não seria melhor, primeiro tirar a limpo, saber se era realmente filho de Vadinho? Pois tão escura assim, não parecia. Mas dona Flor precipitava a conversa, elevando a voz naquela obstinada decisão dos tímidos:
- Vim aqui para falar de um assunto sério, para lhe fazer uma proposta e ver se a gente chega a um acordo.
- Pois fale, dona moça, que do meu lado faço de meu melhor para lhe atender.
- O menino… - disse dona Flor e ficou sem saber como prosseguir.
Dona Norma retomou a palavra:
- Você teve o menino faz dias, não é?
Dionísia olhou o filho, sorriu numa alegre confirmação.
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS
EPISÓDIO Nº 79
Sentadas dona Norma e dona Flor, fez-se um breve silêncio mas logo Dionísia o encheu com a sua voz macia. Desenvolveu-se para o lado do dia tão bonito, queixando-se de ainda não poder sair rua afora:
- Não sei ficar em casa quando a chuva lava a cara do dia e ele reluz novo em folha, todo faceiro…
Dona Norma também não; e assim foram as duas falando do sol e da chuva e das noites de luar em Itapoã, ou no Cabula, e nem se sabe como desembarcaram no Recife, onde habitava uma irmã de dona Norma, casada com um engenheiro pernambucano, e onde Dió residira alguns meses:
- Para mais de sete meses, fui atrás de um clandestino, um que me alumbrou a vista, um desatinado. Me largou por lá…
Onde não chegariam as duas, a que distantes portos, nesse diálogo sem compromisso nem consequência – a conversa pelo prazer da conversa – se dona Flor, ouvindo o carrilhão de uma Igreja do Terreiro a anunciar a hora do meio-dia, não se alarmasse, interrompendo a amável prática:
- Norminha, assim a gente vai demorar muito…
- Por mim não me atrapalha, é um prazer… - disse Dionísia.
Noutra ocasião a gente vem com mais tempo – prometeu dona Norma – Hoje a gente veio com um propósito…
- Estou ouvindo…
- Essa minha amiga, dona Flor, não tem filho nem pode ter. É coisa mesmo de conformação, enfim…
- Sei como é. Tem o oveiro virado, não é?
- Mais ou menos…
- Mas pode desvirar, Marildes, uma conhecida minha, desvirou.
- Com Flor não tem jeito, o médico já disse.
- Médico? – riu uma risada divertida, de pouco-caso – Médico só sabe dizer palavra bonita e ter caligrafia ruim. Se dona moça aí procurar Paizinho, ele dá jeito em dois tempos. Que é que acha, seu João?
João Alves apoiou:
- Paizinho? Faz uns passes na barriga dela, é filho todo o ano.
Dona Norma resolveu desconhecer o novo assunto, evitar o feiticeiro com toda a sua fama, sua reputação de babalaô. Pousara o olhar na criancinha adormecida. Não seria melhor, primeiro tirar a limpo, saber se era realmente filho de Vadinho? Pois tão escura assim, não parecia. Mas dona Flor precipitava a conversa, elevando a voz naquela obstinada decisão dos tímidos:
- Vim aqui para falar de um assunto sério, para lhe fazer uma proposta e ver se a gente chega a um acordo.
- Pois fale, dona moça, que do meu lado faço de meu melhor para lhe atender.
- O menino… - disse dona Flor e ficou sem saber como prosseguir.
Dona Norma retomou a palavra:
- Você teve o menino faz dias, não é?
Dionísia olhou o filho, sorriu numa alegre confirmação.
sexta-feira, março 26, 2010
DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS
Palavras e frases confundiram-se nos andares, alguém cantava modinha de tristezas com uma pequena voz. Quando atingiram o patamar do terceiro piso, o cheiro de alfazema queimada em defumadores de barro os alcançou, anunciando a existência de criança nova. Desembocaram num corredor; ao fundo a porta do quarto da rapariga.
João Alves bateu com o nó dos dedos.
- Quem é? – perguntou uma voz morna e descansada.
- É de paz, Dió… Sou eu, João Alves e tem duas excelências comigo querendo falar com você. Eu conheço uma, é minha comadre, gente de bem, merecedora…
- Pois vão entrando e desculpando o desarranjo, nem tive tempo de arrumar o quarto…
Entraram atrás do negro. Na peça estreita, uma cama de casal, um armário capenga, um lavatório de ferro com bacia e balde de esmalte, um urinol ao pé do leito, tudo muito asseado. Na parede, um espelho partido e uma estampa do Senhor do Bonfim com fitas bentas penduradas. Uma janela abrindo sobre os fundos do sobrado, por ela penetravam a claridade e a modinha triste.
Reclinada nos travesseiros, meia coberta com um lençol, vestida com uma bata de rendas cujo decote lhe exibia os seios pejados, a mulata Dionísia de Oxóssi sorria cordial para as surpreendentes visitas. Na curva de seu braço, no calor de seu peito, o filho adormecido. Uma criança grande, de um moreno carregado. Sob uma cadeira, um defumador queimava alfazema, perfumando peças de roupa do recém-nascido colocadas sobre a palhinha do assento. Além da cadeira, dois caixões de querosene cobertos com papel de seda faziam a vez de tamboretes. No ângulo da parede ao fundo, o peji com as armas de Oxóssi, o arco e a flecha, o erukerê, uma estampa de São Jorge a matar o dragão, uma pedra verde fetiche talvez de Iemanjá, e um colar de contas azul turquesa.
- Seu João – ordenou a mulata com sua voz descansada – faça o favor, tire essas roupinhas da cadeira, ponha no armário, é para o neném mudar depois do banho. Dê a cadeira a essa moça… - apontava dona Norma, voltando-se depois para dona Flor, a explicar-lhe num sorriso: - a senhora, que é mais moderna, vai desculpando, tem mesmo de sentar no caixão.
Da cama, reclinada, presidia ela aos arranjos no quarto, a movimentação do engraxate a arrastar a cadeira e os caixões, tranquila e sorridente, nem sequer curiosa do motivo daquelas intempestivas visitas. Quem a visse assim, tão calma a ordenar, compreenderia por que o pintor Carybé a retratara vestida de rainha, num trono de afoxê.
Dona Norma, na dianteira do negro, arrebanhou camisola e fralda, pôs tudo no armário e, ao fazê-lo, dera balanço completo nos vestidos, nas blusas, nos sapatos e sandálias da mulata.
- Puxe um caixão para vosmicê também, seu João, e tome assento.
- Fico mesmo de pé, Dió, assim estou bem.
- Maneira certa de se conversar é na maciota e sentado, seu João, de pé e com pressa não ajuda o entendimento.
O negro, porém, preferiu encostar-se à janela, voltado para a manhã cada vez mais luminosa. Um resto de canção entrava quarto adentro, vinha morrer plangente na cama de Dionísia:
Nas cadeias de teu amor,
Escravizada serva,
Meu senhor!
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS
EPISÓDIO Nº 78
Palavras e frases confundiram-se nos andares, alguém cantava modinha de tristezas com uma pequena voz. Quando atingiram o patamar do terceiro piso, o cheiro de alfazema queimada em defumadores de barro os alcançou, anunciando a existência de criança nova. Desembocaram num corredor; ao fundo a porta do quarto da rapariga.
João Alves bateu com o nó dos dedos.
- Quem é? – perguntou uma voz morna e descansada.
- É de paz, Dió… Sou eu, João Alves e tem duas excelências comigo querendo falar com você. Eu conheço uma, é minha comadre, gente de bem, merecedora…
- Pois vão entrando e desculpando o desarranjo, nem tive tempo de arrumar o quarto…
Entraram atrás do negro. Na peça estreita, uma cama de casal, um armário capenga, um lavatório de ferro com bacia e balde de esmalte, um urinol ao pé do leito, tudo muito asseado. Na parede, um espelho partido e uma estampa do Senhor do Bonfim com fitas bentas penduradas. Uma janela abrindo sobre os fundos do sobrado, por ela penetravam a claridade e a modinha triste.
Reclinada nos travesseiros, meia coberta com um lençol, vestida com uma bata de rendas cujo decote lhe exibia os seios pejados, a mulata Dionísia de Oxóssi sorria cordial para as surpreendentes visitas. Na curva de seu braço, no calor de seu peito, o filho adormecido. Uma criança grande, de um moreno carregado. Sob uma cadeira, um defumador queimava alfazema, perfumando peças de roupa do recém-nascido colocadas sobre a palhinha do assento. Além da cadeira, dois caixões de querosene cobertos com papel de seda faziam a vez de tamboretes. No ângulo da parede ao fundo, o peji com as armas de Oxóssi, o arco e a flecha, o erukerê, uma estampa de São Jorge a matar o dragão, uma pedra verde fetiche talvez de Iemanjá, e um colar de contas azul turquesa.
- Seu João – ordenou a mulata com sua voz descansada – faça o favor, tire essas roupinhas da cadeira, ponha no armário, é para o neném mudar depois do banho. Dê a cadeira a essa moça… - apontava dona Norma, voltando-se depois para dona Flor, a explicar-lhe num sorriso: - a senhora, que é mais moderna, vai desculpando, tem mesmo de sentar no caixão.
Da cama, reclinada, presidia ela aos arranjos no quarto, a movimentação do engraxate a arrastar a cadeira e os caixões, tranquila e sorridente, nem sequer curiosa do motivo daquelas intempestivas visitas. Quem a visse assim, tão calma a ordenar, compreenderia por que o pintor Carybé a retratara vestida de rainha, num trono de afoxê.
Dona Norma, na dianteira do negro, arrebanhou camisola e fralda, pôs tudo no armário e, ao fazê-lo, dera balanço completo nos vestidos, nas blusas, nos sapatos e sandálias da mulata.
- Puxe um caixão para vosmicê também, seu João, e tome assento.
- Fico mesmo de pé, Dió, assim estou bem.
- Maneira certa de se conversar é na maciota e sentado, seu João, de pé e com pressa não ajuda o entendimento.
O negro, porém, preferiu encostar-se à janela, voltado para a manhã cada vez mais luminosa. Um resto de canção entrava quarto adentro, vinha morrer plangente na cama de Dionísia:
Nas cadeias de teu amor,
Escravizada serva,
Meu senhor!
quinta-feira, março 25, 2010
A Quanto obrigas…curiosidade!
Não se sabe como, mas um turco conseguiu pegar dinheiro emprestado de um Judeu. Acontece que o Turco nunca pagava nenhuma de suas dívidas e o judeu nunca deixava de receber o que lhe deviam.
O tempo passa, o turco enrolando e o Judeu atrás dele. Até que um dia eles se cruzaram no café de um alentejano e começaram uma discussão.
O turco encurralado não encontrou outra saída, pegou um revólver encostou na própria cabeça e disse:
- Eu posso ir para o inferno, mas não pago esta dívida! E puxou o gatilho, caindo morto no chão.
O judeu não quis deixar por menos, pegou o revólver do chão, encostou a sua cabeça e disse:
- Eu vou receber esta dívida, nem que seja no inferno! E puxou o gatilho, caindo morto no chão.
O alentejano, que observava tudo, pegou o revólver do chão, encostou na cabeça e disse:
- Pois eu não perco esta briga por nada!
Não se sabe como, mas um turco conseguiu pegar dinheiro emprestado de um Judeu. Acontece que o Turco nunca pagava nenhuma de suas dívidas e o judeu nunca deixava de receber o que lhe deviam.
O tempo passa, o turco enrolando e o Judeu atrás dele. Até que um dia eles se cruzaram no café de um alentejano e começaram uma discussão.
O turco encurralado não encontrou outra saída, pegou um revólver encostou na própria cabeça e disse:
- Eu posso ir para o inferno, mas não pago esta dívida! E puxou o gatilho, caindo morto no chão.
O judeu não quis deixar por menos, pegou o revólver do chão, encostou a sua cabeça e disse:
- Eu vou receber esta dívida, nem que seja no inferno! E puxou o gatilho, caindo morto no chão.
O alentejano, que observava tudo, pegou o revólver do chão, encostou na cabeça e disse:
- Pois eu não perco esta briga por nada!
DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS
EPISÓDIO Nº 77
Novamente João Alves a mediu com os olhos e com certo desprezo ante ignorância tão grande:
- Pois em trabalho de meretriz, que é o ofício dela, dona moça.
Dona Norma retomou o fio da conversa:
- E meu compadre se dá com ela, sabe onde ela mora?
- Pois não havia de me dar, comadre? Mora aqui rente, no Maciel.
Meu compadre vai nos levar lá, minha amiga quer conversar com ela, resolver um assunto…
João Alves mais uma vez considerou longamente dona Flor, coçava a cabeça como se encontrasse tudo aquilo suspeito e duvidoso:
-Por que ela não vai sozinha comadre? Eu mostro a casa…
- Meu compadre, seja cavalheiro. Vai largar duas senhoras nessas ruas, desacompanhadas? Passa um abusado, se mete com a gente…
Ninguém apelava inutilmente para o cavalheirismo de João Alves:
- Pois vou com vosmicês mas lhe garanto que ninguém ia tirar graça, aqui é tudo gente respeitosa…
Levantou-se, entregou a cadeira de engraxate ao cuidado dos netos, era um negro esguio e sólido, passado dos cinquenta, a carapinha começando a embranquecer; trazia um colar de orixá ao pescoço, contas vermelhas e brancas de Xangô, e apenas os olhos estriados denotavam a intimidade da cachaça.
Ao pôr-se de pé quis saber:
- Minha comadre dona Norma e que assunto é esse que a mocinha aqui – dizia mocinha numa voz de debique – quer tratar com Dió?
- Nada de ruim para ela, meu compadre…
Mesmo porque, se fosse de malvadeza, com todo o respeito que lhe sou devedor eu não ia junto, comadre… Também não adiantava porque o santo dela é forte – tocava o chão com a ponta dos dedos, saudando o orixá: - Oké Aro Oxóssi! Não tem despacho nem ebó que faça mal a ela, o feitiço vira contra quem manda fazer…
- Quando é que me leva a uma macumba, meu compadre? Tenho uma vontade danada de assistir a um candomblé… - essa era outra curiosidade antiga de dona Norma.
Assim praticando sobre encantados e terreiros-de-santo entraram pelo meretrício adentro. Por ser manhã de domingo – a farra de sábado estendendo-se pela madrugada – quase não havia movimento nas ruas. Apenas uma ou outra mulher sentada à porta ou debruçada à janela, mais para ver o dia claro do que para fretar homem. Um silêncio e um sossego, poder-se-ia dizer uma paz dominical; dona Norma sentiu-se lograda, precisava vir em hora de azáfama. Nessa manhã sonolenta, não fazia diferença de um bairro familiar. Também a casa de Dionísia era logo no começo do Maciel, apenas haviam cruzado os limites da zona.
Subiram as escadas de vacilantes degraus, um rato enorme passou por elas no escuro, em correria.
- Pois em trabalho de meretriz, que é o ofício dela, dona moça.
Dona Norma retomou o fio da conversa:
- E meu compadre se dá com ela, sabe onde ela mora?
- Pois não havia de me dar, comadre? Mora aqui rente, no Maciel.
Meu compadre vai nos levar lá, minha amiga quer conversar com ela, resolver um assunto…
João Alves mais uma vez considerou longamente dona Flor, coçava a cabeça como se encontrasse tudo aquilo suspeito e duvidoso:
-Por que ela não vai sozinha comadre? Eu mostro a casa…
- Meu compadre, seja cavalheiro. Vai largar duas senhoras nessas ruas, desacompanhadas? Passa um abusado, se mete com a gente…
Ninguém apelava inutilmente para o cavalheirismo de João Alves:
- Pois vou com vosmicês mas lhe garanto que ninguém ia tirar graça, aqui é tudo gente respeitosa…
Levantou-se, entregou a cadeira de engraxate ao cuidado dos netos, era um negro esguio e sólido, passado dos cinquenta, a carapinha começando a embranquecer; trazia um colar de orixá ao pescoço, contas vermelhas e brancas de Xangô, e apenas os olhos estriados denotavam a intimidade da cachaça.
Ao pôr-se de pé quis saber:
- Minha comadre dona Norma e que assunto é esse que a mocinha aqui – dizia mocinha numa voz de debique – quer tratar com Dió?
- Nada de ruim para ela, meu compadre…
Mesmo porque, se fosse de malvadeza, com todo o respeito que lhe sou devedor eu não ia junto, comadre… Também não adiantava porque o santo dela é forte – tocava o chão com a ponta dos dedos, saudando o orixá: - Oké Aro Oxóssi! Não tem despacho nem ebó que faça mal a ela, o feitiço vira contra quem manda fazer…
- Quando é que me leva a uma macumba, meu compadre? Tenho uma vontade danada de assistir a um candomblé… - essa era outra curiosidade antiga de dona Norma.
Assim praticando sobre encantados e terreiros-de-santo entraram pelo meretrício adentro. Por ser manhã de domingo – a farra de sábado estendendo-se pela madrugada – quase não havia movimento nas ruas. Apenas uma ou outra mulher sentada à porta ou debruçada à janela, mais para ver o dia claro do que para fretar homem. Um silêncio e um sossego, poder-se-ia dizer uma paz dominical; dona Norma sentiu-se lograda, precisava vir em hora de azáfama. Nessa manhã sonolenta, não fazia diferença de um bairro familiar. Também a casa de Dionísia era logo no começo do Maciel, apenas haviam cruzado os limites da zona.
Subiram as escadas de vacilantes degraus, um rato enorme passou por elas no escuro, em correria.
quarta-feira, março 24, 2010
COMPANHEIROS
E AMIGOS
E AMIGOS
Pela terceira vez consecutiva participei, no último sábado, no encontro anual da nossa Compª. de Caç. 388 e é o meu testemunho dessa reunião que mais uma vez aqui vos trago.
Como de costume, bebemos e comemos, trocámos abraços e cumprimentos, tirámos fotografias para juntarmos às outras que já lá temos no álbum e, em grupo, unidos, cantámos o hino do nosso Batalhão, sem dúvida o momento alto do nosso encontro. Os que conheciam a letra, a música e têm voz fizeram-se ouvir muito afinados, os outros, irmanados no mesmo espírito, escutaram em silêncio e respeitosamente como, de forma inevitável, acontece sempre nestas coisas dos hinos…ou acontecia.
Naqueles momentos, enquanto as vozes se fazem ouvir, sentimos como uma estranha corrente a ligar os nossos corpos. Não eram trinta e duas pessoas: era um corpo, um colectivo, irmanado por sentimentos radicados na mais importante das experiências das nossas vidas, passadas em comum, há muitos anos, em terras desconhecidas, lá em África, muito longe do nosso país natal.
É preciso recordar, fazer reviver essas lembranças é como remexer no ouro, de tão diferente que foi é como se tivesse sido outra vida. Tê-la vivido todos juntos constitui um património que é nosso, uma riqueza cujo valor sobressai nas notas do hino que cantámos.
Enquanto ele se fez ouvir, como por magia, recuamos no tempo e sem pensar, sentindo apenas, voamos até ao passado, ao interior de nós próprios… por momentos não sabemos bem onde estamos, se é que estamos, até que o hino acaba e o feitiço se desmancha.
Apenas nos faltou preencher uma lacuna e isso representou um falha de todos nós mas vamos preenchê-la para o ano com a colaboração do nosso estimável, incansável e competente Bento e que é, por direito próprio, o “dono do microfone”.
Quando ele entender melhor, antes ou depois da refeição, antes ou depois do hino, pedir-nos-á um minuto de silêncio durante o qual faremos um exercício colectivo trazendo ao nosso pensamento aqueles que embarcaram connosco e já não desembarcaram, vítimas daquela aventura, e também os outros, que tendo desembarcado, já não estão entre nós.
Depois de mortas as pessoas só podem viver na imaginação dos vivos e relativamente àqueles que lá ficaram nós temos especiais responsabilidades. Foram eles… poderiam ter sido alguns de nós. Quem sabe se não foram no nosso lugar? Dar-lhes vida na nossa imaginação, cada um recordando os que lhe eram mais próximos, é uma obrigação nossa, um direito que lhes assiste.
Eu sei que sempre o poderemos fazer em qualquer altura ou lugar, é evidente, mas eu refiro-me a um exercício colectivo num momento escolhido, especial, que nos leve a todos nós até eles. É diferente, tão diferente como um de nós cantar o hino sozinho lá em casa.
Vai-se para a guerra com um grupo de desconhecidos, vem-se de lá com um grupo de irmãos… avindos, desavindos, mais chegados ou afastados, mas irmãos… é um pouco isto que todos nós sentimos e nos leva a sair destes encontros reconfortados, felizes… estivemos com essa nossa outra família.
Lembram-se do filme “O Resgate do Soldado Ryan” de 1998, do Steven Spielberg com o Tom Hanks?
Nesse filme, ele conta a história da decisão tomada pelo Exército americano, durante a 2ª G.G., de fazer regressar ao solo pátrio um soldado, único sobrevivente de um grupo de irmãos já falecidos em combate para não correrem o risco de privarem os pais de todos os seus filhos. Encontrado, finalmente, o nosso homem recusa-se a regressar por entender que não podia abandonar os seus colegas de luta que eram agora os seus novos irmãos.
Ressalvadas todas as diferenças entre a 2ª G.G. Mundial e a nossa guerra, uma clássica, o outra subversiva, esta, que menos de 20 depois, nos levou até Angola, tem o essencial comum a todas as situações de guerra: uma experiência de vida em que um grupo de homens, unidos pela farda que envergam, procuram sobreviver em situações limite criando, entre eles, laços que se assemelham a uma segunda família e às vezes até mais forte, como no caso do soldado Ryan.
Diferentes em cada guerra serão as “trincheiras”, os cenários, as motivações, os contextos históricos, mas, em todas elas, os mesmos laços de irmandade entre os soldados que as protagonizam… esses, matêem-se.
Uma presença, uma ausência e uma referência:
A Presença:
- Encontrei-me, pela primeira vez, depois de 47 anos, com o nosso primeiro Comandante de Companhia, o “120”, que este ano compareceu ao almoço. Dos três que tivemos, pelo menos para mim e julgo que para a maior parte de nós, foi o Capitão que mais marcou… “No mato não sou capitão sou o 120! Se vocês me chamam capitão eles matam-me!”
…Inevitavelmente, ficou o “120”. Mas eu recordo-o também, perfeitamente, quando ele nos foi esperar ao Vera Cruz, no dia da nossa chegada, salvo erro, a 9 de Novembro de 1963.
Trajava a rigor um camuflado, não daqueles novinhos em folha saídos do Casão a cheirarem a maçarico mas dos outros, dos que cheiravam à guerra… Na cabeça, o inevitável quico, à cintura a faca de mato e duas granadas ofensivas, uma de cada lado, as calças apertavam no tornozelo onde começavam as botas da farda… e não é que tudo aquilo lhe ia a matar? Tivesse o Silvestre Stalone já inventado a figura do Rambo e esse, sim, seria a alcunha que lhe teria posto…com o devido respeito.
Depois de uma pequenina e inicial reacção, rapidamente ultrapassada, gostei sinceramente de o ver: impecável nos seus oitenta anos, desempenado, boa presença, fiel ao seu estilo que não perdeu.
A Presença:
- A presença, é de uma senhora, a única que não faltando aos nossos almoços anuais, partilhou igualmente da nossa aventura de Angola, no Cazombo, terra dos Luenas, no Alto Zambeze: a esposa do nosso Alferes Médico, Dr. Dória Nóbrega, Maria Irene, que por direito próprio também faz parte da irmandade. Bem-haja, todos os anos lá estaremos à espera de a encontrar.
A Ausência:
- A ausência foi do Quim “médico” por motivos de doença. “Força, Quim, não te esqueças que passei uma noite inteira à beira da tua cama, na fazenda Rainha Santa, a “vigiar” o teu vírus do paludismo… agora não podes faltar”.
A Referência:
- A referência é para o “Petrac” que muito recentemente ficou viúvo: “Força, amigo, no próximo ano quero ver-te dentro daquele teu sobretudo cor pele de camelo com o bonezinho a condizer... ficas uma beleza”.
Amigos e companheiros, chega por este ano. Em 2011 lá estaremos todos novamente… sobrevivemos à guerra, agora, é sobreviver à vida em cada ano que passa.
Joaquim Luís de Vasconcelos Paula de Matos
(Alf. Mil. de Inf. na disponibilidade dos seus quase 71 anos ou, se preferirem, acabadinho de descer convosco as escadas do Vera Cruz, atracado ao Cais da Rocha de Conde de Óbidos, saco às costas, … estão a fazer por estes dias 45 anos…)
Como de costume, bebemos e comemos, trocámos abraços e cumprimentos, tirámos fotografias para juntarmos às outras que já lá temos no álbum e, em grupo, unidos, cantámos o hino do nosso Batalhão, sem dúvida o momento alto do nosso encontro. Os que conheciam a letra, a música e têm voz fizeram-se ouvir muito afinados, os outros, irmanados no mesmo espírito, escutaram em silêncio e respeitosamente como, de forma inevitável, acontece sempre nestas coisas dos hinos…ou acontecia.
Naqueles momentos, enquanto as vozes se fazem ouvir, sentimos como uma estranha corrente a ligar os nossos corpos. Não eram trinta e duas pessoas: era um corpo, um colectivo, irmanado por sentimentos radicados na mais importante das experiências das nossas vidas, passadas em comum, há muitos anos, em terras desconhecidas, lá em África, muito longe do nosso país natal.
É preciso recordar, fazer reviver essas lembranças é como remexer no ouro, de tão diferente que foi é como se tivesse sido outra vida. Tê-la vivido todos juntos constitui um património que é nosso, uma riqueza cujo valor sobressai nas notas do hino que cantámos.
Enquanto ele se fez ouvir, como por magia, recuamos no tempo e sem pensar, sentindo apenas, voamos até ao passado, ao interior de nós próprios… por momentos não sabemos bem onde estamos, se é que estamos, até que o hino acaba e o feitiço se desmancha.
Apenas nos faltou preencher uma lacuna e isso representou um falha de todos nós mas vamos preenchê-la para o ano com a colaboração do nosso estimável, incansável e competente Bento e que é, por direito próprio, o “dono do microfone”.
Quando ele entender melhor, antes ou depois da refeição, antes ou depois do hino, pedir-nos-á um minuto de silêncio durante o qual faremos um exercício colectivo trazendo ao nosso pensamento aqueles que embarcaram connosco e já não desembarcaram, vítimas daquela aventura, e também os outros, que tendo desembarcado, já não estão entre nós.
Depois de mortas as pessoas só podem viver na imaginação dos vivos e relativamente àqueles que lá ficaram nós temos especiais responsabilidades. Foram eles… poderiam ter sido alguns de nós. Quem sabe se não foram no nosso lugar? Dar-lhes vida na nossa imaginação, cada um recordando os que lhe eram mais próximos, é uma obrigação nossa, um direito que lhes assiste.
Eu sei que sempre o poderemos fazer em qualquer altura ou lugar, é evidente, mas eu refiro-me a um exercício colectivo num momento escolhido, especial, que nos leve a todos nós até eles. É diferente, tão diferente como um de nós cantar o hino sozinho lá em casa.
Vai-se para a guerra com um grupo de desconhecidos, vem-se de lá com um grupo de irmãos… avindos, desavindos, mais chegados ou afastados, mas irmãos… é um pouco isto que todos nós sentimos e nos leva a sair destes encontros reconfortados, felizes… estivemos com essa nossa outra família.
Lembram-se do filme “O Resgate do Soldado Ryan” de 1998, do Steven Spielberg com o Tom Hanks?
Nesse filme, ele conta a história da decisão tomada pelo Exército americano, durante a 2ª G.G., de fazer regressar ao solo pátrio um soldado, único sobrevivente de um grupo de irmãos já falecidos em combate para não correrem o risco de privarem os pais de todos os seus filhos. Encontrado, finalmente, o nosso homem recusa-se a regressar por entender que não podia abandonar os seus colegas de luta que eram agora os seus novos irmãos.
Ressalvadas todas as diferenças entre a 2ª G.G. Mundial e a nossa guerra, uma clássica, o outra subversiva, esta, que menos de 20 depois, nos levou até Angola, tem o essencial comum a todas as situações de guerra: uma experiência de vida em que um grupo de homens, unidos pela farda que envergam, procuram sobreviver em situações limite criando, entre eles, laços que se assemelham a uma segunda família e às vezes até mais forte, como no caso do soldado Ryan.
Diferentes em cada guerra serão as “trincheiras”, os cenários, as motivações, os contextos históricos, mas, em todas elas, os mesmos laços de irmandade entre os soldados que as protagonizam… esses, matêem-se.
Uma presença, uma ausência e uma referência:
A Presença:
- Encontrei-me, pela primeira vez, depois de 47 anos, com o nosso primeiro Comandante de Companhia, o “120”, que este ano compareceu ao almoço. Dos três que tivemos, pelo menos para mim e julgo que para a maior parte de nós, foi o Capitão que mais marcou… “No mato não sou capitão sou o 120! Se vocês me chamam capitão eles matam-me!”
…Inevitavelmente, ficou o “120”. Mas eu recordo-o também, perfeitamente, quando ele nos foi esperar ao Vera Cruz, no dia da nossa chegada, salvo erro, a 9 de Novembro de 1963.
Trajava a rigor um camuflado, não daqueles novinhos em folha saídos do Casão a cheirarem a maçarico mas dos outros, dos que cheiravam à guerra… Na cabeça, o inevitável quico, à cintura a faca de mato e duas granadas ofensivas, uma de cada lado, as calças apertavam no tornozelo onde começavam as botas da farda… e não é que tudo aquilo lhe ia a matar? Tivesse o Silvestre Stalone já inventado a figura do Rambo e esse, sim, seria a alcunha que lhe teria posto…com o devido respeito.
Depois de uma pequenina e inicial reacção, rapidamente ultrapassada, gostei sinceramente de o ver: impecável nos seus oitenta anos, desempenado, boa presença, fiel ao seu estilo que não perdeu.
A Presença:
- A presença, é de uma senhora, a única que não faltando aos nossos almoços anuais, partilhou igualmente da nossa aventura de Angola, no Cazombo, terra dos Luenas, no Alto Zambeze: a esposa do nosso Alferes Médico, Dr. Dória Nóbrega, Maria Irene, que por direito próprio também faz parte da irmandade. Bem-haja, todos os anos lá estaremos à espera de a encontrar.
A Ausência:
- A ausência foi do Quim “médico” por motivos de doença. “Força, Quim, não te esqueças que passei uma noite inteira à beira da tua cama, na fazenda Rainha Santa, a “vigiar” o teu vírus do paludismo… agora não podes faltar”.
A Referência:
- A referência é para o “Petrac” que muito recentemente ficou viúvo: “Força, amigo, no próximo ano quero ver-te dentro daquele teu sobretudo cor pele de camelo com o bonezinho a condizer... ficas uma beleza”.
Amigos e companheiros, chega por este ano. Em 2011 lá estaremos todos novamente… sobrevivemos à guerra, agora, é sobreviver à vida em cada ano que passa.
Joaquim Luís de Vasconcelos Paula de Matos
(Alf. Mil. de Inf. na disponibilidade dos seus quase 71 anos ou, se preferirem, acabadinho de descer convosco as escadas do Vera Cruz, atracado ao Cais da Rocha de Conde de Óbidos, saco às costas, … estão a fazer por estes dias 45 anos…)
CANÇÕES ITALIANAS
EMÍLIO PERICOLI - QUANDO M'INNAMORO (1968)
Autores: R. Livraghi - M.Panzeri/ D. Pace
EMÍLIO PERICOLI - QUANDO M'INNAMORO (1968)
Autores: R. Livraghi - M.Panzeri/ D. Pace
DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS
No domingo ouviram missa na Igreja de São Francisco (dona Flor levara uma vela enfeitada de flores, promessa para tudo correr bem), depois atravessaram o terreiro e foram encontrar o negro João Alves em sua banca de engraxate, no passeio da Faculdade de Medicina. Estava cercado de crianças, e tanto o negrinho de carapinha, quanto os diversos mulatos mais escuros ou mais claros, assim como o loiro de cabelos de trigo, todos o tratavam de avô. Eram todos seus netos, aqueles meninos e os demais, soltos no dédalo de ruas entre o Terreiro de Jesus e a Baixa dos Sapateiros. O negro João Alves jamais tivera filhos nem com sua mulher nem com outras mas arranjava madrinhas para os seus netos, comida, roupas velhas e até cartas de abc. Vivia num porão ali perto, com seus resmungos, suas mandingas, sua aparente brabeza, suas má-criações, alguns dos netos, e o porão abria sobre um vale plantado de verde, de seu buraco o negro João Alves comandava as cores e a luz da Bahia.
- Oxente!, quem está aí, bons olhos lhe vejam, minha comadre dona Norma… e como vai seu Zé Sampaio? Diga a ele que vou aparecer na loja um dia para buscar uns sapatos para os meninos…
Os moleques cercavam as duas amigas, dona Norma viera preparada, em sua mão surgiu um saco de caramelos. João Alves soltou um assobio, alguns meninos apareceram correndo entre eles um cafuso de uns quatro ou cinco anos. O negro acariciou-lhe a cabeça:
- Peça a bênção à tua madrinha, sua coisa-ruim…
- Dona Norma deu-lhe a bênção e um níquel de dez tostões, enquanto o negro queria saber que bons ventos haviam trazido sua comadre até ali.
- Pois, meu compadre, é que tenho um favor a lhe pedir, coisa de muita delicadeza.
- Coisa delicada não é para as minhas mãos, sou meio rude como vosmicê sabe…
- Quero dizer: coisa reservada, para ficar em segredo.
Aí está certo que não sou linguarudo nem mexeriqueiro. Pode desatar a língua, comadre…
- O compadre conhece por aqui uma tal Dionísia? Não sei bem mas ouvi dizer que mora nessas redondezas.
- E vosmicê tem algum trato com ela?
- Eu propriamente não, meu compadre. É essa minha amiga que tem um assunto a ver com ela…
João Alves mediu dona Flor de alto a baixo.
- Ela tem um assunto a ver com Dionísia de Oxóssi?
- Capaz seja a mesma… Ouço dizer que é bonitona.
João Alves coçou a carapinha:
Bonitona? Me adisculpe, minha comadre, mas dobre a língua. Bonitona qualquer branca pode ser, mas mulata da competência de Dionísia tem poucas no mundo, acho que nem meia-dúzia e isso escarafunchando muito…
- Uma que teve filho recentemente…
- Pois então é ela mesmo, tá de menino novo, nem voltou ainda a trabalhar…
Pela primeira vez, dona Flor abriu a boca, querendo saber:
- Em que ela se ocupa?
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS
EPISÓDIO Nº 76
No domingo ouviram missa na Igreja de São Francisco (dona Flor levara uma vela enfeitada de flores, promessa para tudo correr bem), depois atravessaram o terreiro e foram encontrar o negro João Alves em sua banca de engraxate, no passeio da Faculdade de Medicina. Estava cercado de crianças, e tanto o negrinho de carapinha, quanto os diversos mulatos mais escuros ou mais claros, assim como o loiro de cabelos de trigo, todos o tratavam de avô. Eram todos seus netos, aqueles meninos e os demais, soltos no dédalo de ruas entre o Terreiro de Jesus e a Baixa dos Sapateiros. O negro João Alves jamais tivera filhos nem com sua mulher nem com outras mas arranjava madrinhas para os seus netos, comida, roupas velhas e até cartas de abc. Vivia num porão ali perto, com seus resmungos, suas mandingas, sua aparente brabeza, suas má-criações, alguns dos netos, e o porão abria sobre um vale plantado de verde, de seu buraco o negro João Alves comandava as cores e a luz da Bahia.
- Oxente!, quem está aí, bons olhos lhe vejam, minha comadre dona Norma… e como vai seu Zé Sampaio? Diga a ele que vou aparecer na loja um dia para buscar uns sapatos para os meninos…
Os moleques cercavam as duas amigas, dona Norma viera preparada, em sua mão surgiu um saco de caramelos. João Alves soltou um assobio, alguns meninos apareceram correndo entre eles um cafuso de uns quatro ou cinco anos. O negro acariciou-lhe a cabeça:
- Peça a bênção à tua madrinha, sua coisa-ruim…
- Dona Norma deu-lhe a bênção e um níquel de dez tostões, enquanto o negro queria saber que bons ventos haviam trazido sua comadre até ali.
- Pois, meu compadre, é que tenho um favor a lhe pedir, coisa de muita delicadeza.
- Coisa delicada não é para as minhas mãos, sou meio rude como vosmicê sabe…
- Quero dizer: coisa reservada, para ficar em segredo.
Aí está certo que não sou linguarudo nem mexeriqueiro. Pode desatar a língua, comadre…
- O compadre conhece por aqui uma tal Dionísia? Não sei bem mas ouvi dizer que mora nessas redondezas.
- E vosmicê tem algum trato com ela?
- Eu propriamente não, meu compadre. É essa minha amiga que tem um assunto a ver com ela…
João Alves mediu dona Flor de alto a baixo.
- Ela tem um assunto a ver com Dionísia de Oxóssi?
- Capaz seja a mesma… Ouço dizer que é bonitona.
João Alves coçou a carapinha:
Bonitona? Me adisculpe, minha comadre, mas dobre a língua. Bonitona qualquer branca pode ser, mas mulata da competência de Dionísia tem poucas no mundo, acho que nem meia-dúzia e isso escarafunchando muito…
- Uma que teve filho recentemente…
- Pois então é ela mesmo, tá de menino novo, nem voltou ainda a trabalhar…
Pela primeira vez, dona Flor abriu a boca, querendo saber:
- Em que ela se ocupa?
terça-feira, março 23, 2010
A bela do bairro
Ela era muito bonita e benza-a Deus
muito puta que era sempre à espera
dos pagantes à janela do rés-do-chão
mas eu teso e pior que isso néscio desses amores
tenho o quê? quinze anos
tenho o quê uns olhos com que a vejo
que se debruçava mostrando os peitos
que a amei como se ama unicamente
uma vez um colo branco e até as jóias
que ela punha eram luzentes semelhando estrelas
eu bato o passeio à hora certa e amo-a
de cabelo solto e tudo não parece
senão o céu afinal um pechisbeque
ainda agora as minhas narinas fremem
turva-se o coração desmantelado
amando-a amei-a tanto e sem vergonha
oh pecar assim de jaquetão sport e um cigarro
nos queixos a admiração que eu fazia
entre a malta não é para esquecer nem lá ao fundo
como então puxo as abas da farpela
lentamente caminho para ela
a chuva cai miúda
e benza-a Deus que bonita e que puta
e que desvelos a gente
gastava em frente do amor
Ela era muito bonita e benza-a Deus
muito puta que era sempre à espera
dos pagantes à janela do rés-do-chão
mas eu teso e pior que isso néscio desses amores
tenho o quê? quinze anos
tenho o quê uns olhos com que a vejo
que se debruçava mostrando os peitos
que a amei como se ama unicamente
uma vez um colo branco e até as jóias
que ela punha eram luzentes semelhando estrelas
eu bato o passeio à hora certa e amo-a
de cabelo solto e tudo não parece
senão o céu afinal um pechisbeque
ainda agora as minhas narinas fremem
turva-se o coração desmantelado
amando-a amei-a tanto e sem vergonha
oh pecar assim de jaquetão sport e um cigarro
nos queixos a admiração que eu fazia
entre a malta não é para esquecer nem lá ao fundo
como então puxo as abas da farpela
lentamente caminho para ela
a chuva cai miúda
e benza-a Deus que bonita e que puta
e que desvelos a gente
gastava em frente do amor
Fernando de Assis Pacheco (1937- 1995 )
DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS
Que culpa tinha o menino, que pecado cometera? Por que deixar pobre criança, sangue de Vadinho, seu marido, exposta a uma vida de privações, subalimentada, crescendo na fome e no vício, rato dos esgotos do Pelourinho, sem direito à educação e aos bens da vida? E, ao demais, não temia dona Flor – e com razão – ficasse Vadinho preso à mãe da criança para estar junto do filho, do seu filho? Se ela, dona Flor o fosse buscar e o tomasse para criar como filho seu, que prova de amor mais convincente? Aquela criança, nascida de outra, seria o elo a ligar para sempre Vadinho e Flor, sem mais nenhum receio e ameaça.
E quem sabe, quem sabe, minha prezada, com esse filho em casa, crescendo e educando-se sadio e lindo no carinho de dona Flor, sendo para Vadinho, permanente alegria mas também permanente responsabilidade, quem sabe não mudaria o malandro o seu modo de vida, largando de vez o jogo e a estroinice, tomando jeito e vergonha? Era bem possível, sobravam exemplos.
Sobravam, sim, apoiou dona Norma, entusiasta, “eta gringa danada de sabida!” Dona Norma imediatamente criara nomes e endereços. Quem mais viciado no jogo e na cachaça do que o doutor Cícero Araújo, um de Santo Amaro da Purificação? A pobre esposa, dona Pequena, sofria as penas do inferno. Um dia ela pegou barriga e nem o menino nascera, já doutor Cícero virara o cidadão mais exemplar. E seu Manuel Lima, doido por uma rapariga… Bem… esse, em verdade, não precisara de filho, endireitara com o casamento, marido mais correcto não existia…
Dona Gisa dava o conceito da charada: aquele filho, no qual dona Flor enxergava ameaça tão violenta à estabilidade do seu lar, poderia se transformar, num passe de mágica, em sua segurança, na garantia de seu amor, e, de quebra, ainda era capaz de regenerar Vadinho. Uma pena, aliás, pensou dona Gisa; regenerado, Vadinho ia perder todo o interesse, aquele suspeito mistério, aquela graça dissoluta.
Abriram-se os olhos de dona Flor, entendeu. Iluminou-se de alegria, atirando-se nos braços da amiga, a agradecer. Traçaram demorados planos, detalhe por detalhe. Não era fácil, muito pelo contrário. Não fosse o apoio de dona Norma, talvez dona Flor não tivesse reunido suficiente coragem para se dirigir à zona das mulheres perdidas, às ruas do “baixo meretrício” tão amedrontadoramente citadas nas crónicas policiais das gazetas, para se tocar, feita uma doida, em busca de tal Dionísia e lhe exigir o filho recém-nascido, tomá-lo em definitivo, levá-lo para sempre, com escritura pública, estabelecida em cartório, com firmas reconhecidas e testemunhas idóneas. Dona Norma, solícita e fraternal, prontificou-se a acompanhá-la e a animou. Curiosa também, deve-se dizer; há muito desejava a oportunidade para espiar uma rua de prostituição, a morada das marafonas, sua vida sórdida. Nunca encontrara antes pretexto válido para a proibida excursão.
Como deixar a pobre Flor aventurar-se sozinha naqueles ameaçadores labirintos? – perguntou Elsa a Zé Sampaio, quando o marido, no assombro da notícia, ainda a tentara dissuadir.
- Não sou mocinha tola, sou mulher de maior e de respeito, ninguém vai se atrever a tirar prosa comigo – e revelava os amadurecidos planos a Zé Sampaio vencido, incapaz de resistir ao ímpeto vital da esposa: - A gente vai Domingo de manhã. Vou como se fosse visitar o meu afilhado, o neto de João Alves. Depois peço a João que acompanhe a gente à casa da fulana. E João, você sabe, é mestre de capoeira…
E assim o fizeram.
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS
EPISÓDIO Nº 75
Que culpa tinha o menino, que pecado cometera? Por que deixar pobre criança, sangue de Vadinho, seu marido, exposta a uma vida de privações, subalimentada, crescendo na fome e no vício, rato dos esgotos do Pelourinho, sem direito à educação e aos bens da vida? E, ao demais, não temia dona Flor – e com razão – ficasse Vadinho preso à mãe da criança para estar junto do filho, do seu filho? Se ela, dona Flor o fosse buscar e o tomasse para criar como filho seu, que prova de amor mais convincente? Aquela criança, nascida de outra, seria o elo a ligar para sempre Vadinho e Flor, sem mais nenhum receio e ameaça.
E quem sabe, quem sabe, minha prezada, com esse filho em casa, crescendo e educando-se sadio e lindo no carinho de dona Flor, sendo para Vadinho, permanente alegria mas também permanente responsabilidade, quem sabe não mudaria o malandro o seu modo de vida, largando de vez o jogo e a estroinice, tomando jeito e vergonha? Era bem possível, sobravam exemplos.
Sobravam, sim, apoiou dona Norma, entusiasta, “eta gringa danada de sabida!” Dona Norma imediatamente criara nomes e endereços. Quem mais viciado no jogo e na cachaça do que o doutor Cícero Araújo, um de Santo Amaro da Purificação? A pobre esposa, dona Pequena, sofria as penas do inferno. Um dia ela pegou barriga e nem o menino nascera, já doutor Cícero virara o cidadão mais exemplar. E seu Manuel Lima, doido por uma rapariga… Bem… esse, em verdade, não precisara de filho, endireitara com o casamento, marido mais correcto não existia…
Dona Gisa dava o conceito da charada: aquele filho, no qual dona Flor enxergava ameaça tão violenta à estabilidade do seu lar, poderia se transformar, num passe de mágica, em sua segurança, na garantia de seu amor, e, de quebra, ainda era capaz de regenerar Vadinho. Uma pena, aliás, pensou dona Gisa; regenerado, Vadinho ia perder todo o interesse, aquele suspeito mistério, aquela graça dissoluta.
Abriram-se os olhos de dona Flor, entendeu. Iluminou-se de alegria, atirando-se nos braços da amiga, a agradecer. Traçaram demorados planos, detalhe por detalhe. Não era fácil, muito pelo contrário. Não fosse o apoio de dona Norma, talvez dona Flor não tivesse reunido suficiente coragem para se dirigir à zona das mulheres perdidas, às ruas do “baixo meretrício” tão amedrontadoramente citadas nas crónicas policiais das gazetas, para se tocar, feita uma doida, em busca de tal Dionísia e lhe exigir o filho recém-nascido, tomá-lo em definitivo, levá-lo para sempre, com escritura pública, estabelecida em cartório, com firmas reconhecidas e testemunhas idóneas. Dona Norma, solícita e fraternal, prontificou-se a acompanhá-la e a animou. Curiosa também, deve-se dizer; há muito desejava a oportunidade para espiar uma rua de prostituição, a morada das marafonas, sua vida sórdida. Nunca encontrara antes pretexto válido para a proibida excursão.
Como deixar a pobre Flor aventurar-se sozinha naqueles ameaçadores labirintos? – perguntou Elsa a Zé Sampaio, quando o marido, no assombro da notícia, ainda a tentara dissuadir.
- Não sou mocinha tola, sou mulher de maior e de respeito, ninguém vai se atrever a tirar prosa comigo – e revelava os amadurecidos planos a Zé Sampaio vencido, incapaz de resistir ao ímpeto vital da esposa: - A gente vai Domingo de manhã. Vou como se fosse visitar o meu afilhado, o neto de João Alves. Depois peço a João que acompanhe a gente à casa da fulana. E João, você sabe, é mestre de capoeira…
E assim o fizeram.
segunda-feira, março 22, 2010
MÚSICAS ITALIANAS
Um amigo facultou-me um site com 996 músicas italianas. Melodias que já não se ouvem há décadas e, no entanto, são espantosamemente belas, cantadas por vozes que nos despertam saudades. Como não podia deixar de ser, partilhá-las-ei com todo o gosto, com os leitores da Dona Flor e Seus Dois Maridos.
Poema do Fecho Éclair
Filipe II tinha um colar de oiro,
tinha um colar de oiro com pedras rubis.
Cingia a cintura com cinto de coiro,
com fivela de oiro,
olho de perdiz.
.
Comia num prato
de prata lavrada
girafa trufada,
rissóis de serpente.
O copo era um gomo
que em flor desabrocha,
de cristal de rocha
do mais transparente.
.
Andava nas salas
forradas de Arrás,
com panos por cima,
pela frente e por trás.
Tapetes flamengos,
Combates de galos,
alões e podengos,
falcões e cavalos.
.
Dormia na cama
de prata maciça
com dossel de lhama
de franja roliça.
Na mesa do canto
vermelho damasco,
e a tíbia de um santo
guardada num frasco.
.
Foi dono da Terra
foi senhor do Mundo,
nada lhe faltava
Filipe Segundo.
.
Tinha oiro e prata,
pedras nunca vistas,
safiras, topázios,
rubis, ametistas.
Tinha tudo, tudo,
sem peso nem conta,
bragas de veludo,
peliças de lontra.
Um homem tão grande
tem tudo o que quer.
.
O que ele não tinha
era um fecho éclair.
(António Gedeão - Poeta português - 1906-1997)
Filipe II tinha um colar de oiro,
tinha um colar de oiro com pedras rubis.
Cingia a cintura com cinto de coiro,
com fivela de oiro,
olho de perdiz.
.
Comia num prato
de prata lavrada
girafa trufada,
rissóis de serpente.
O copo era um gomo
que em flor desabrocha,
de cristal de rocha
do mais transparente.
.
Andava nas salas
forradas de Arrás,
com panos por cima,
pela frente e por trás.
Tapetes flamengos,
Combates de galos,
alões e podengos,
falcões e cavalos.
.
Dormia na cama
de prata maciça
com dossel de lhama
de franja roliça.
Na mesa do canto
vermelho damasco,
e a tíbia de um santo
guardada num frasco.
.
Foi dono da Terra
foi senhor do Mundo,
nada lhe faltava
Filipe Segundo.
.
Tinha oiro e prata,
pedras nunca vistas,
safiras, topázios,
rubis, ametistas.
Tinha tudo, tudo,
sem peso nem conta,
bragas de veludo,
peliças de lontra.
Um homem tão grande
tem tudo o que quer.
.
O que ele não tinha
era um fecho éclair.
(António Gedeão - Poeta português - 1906-1997)
Poeta, professor e historiador da ciência portuguesa. António Gedeão, pseudónimo de Rómulo de Carvalho, concluiu, no Porto, o curso de Ciências Físico-Químicas, exercendo depois a actividade de docente.
DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS
Dona Flor estremeceu. Viera para levar uma daquelas crianças, uma recém-nascida, para assim garantir-se contra ela e sua mãe. Mas, vendo os meninos soltos na Praça do Terreiro, seu coração se encheu de piedade, de um sentimento nobre e puro; naquela hora, se pudesse, adoptaria todos eles, não apenas o filho de Vadinho. Aliás, o filho de Vadinho não precisava dela para escapar àquela vida. Vadinho não o abandonaria jamais, não era de sua natureza largar uma criança ao desamparo, quanto mais rebento seu, nascido de seu sangue. Em vez de negar a paternidade, ele a proclamaria, dela fazendo praça, encantado e orgulhoso.
Sempre o soubera dona Flor, de ciência certa, de um saber sem dúvidas, apesar dos silêncios e das reticências do marido: um filho para Vadinho seria um dos maiores acontecimentos, a verdadeira sorte grande, a parada sem exemplo, o estouro da banca. Por isso ela tanto se afligira com a notícia trazida por dona Dinorá. Era o perigo maior, a temida ameaça. Afinal, Vadinho já lhe pertencia tão pouco; dominado pelo jogo e pela boémia, que sobras lhe restariam se um filho se erguesse entre eles, a chamá-lo de um beco esconso, de um canto de rua, do leito de uma vagabunda? Esse filho que ela não lhe dera.
Ao ter a notícia ficou desesperada, num padecimento tão grande a ponto da própria dona Norma perder a cabeça. De ordinário tão executiva, encontrando solução para todos os inúmeros problemas que lhe propunham a cada momento, ela também não atinava com a saída nem acerto, confusa e aflita.
- E se dissesse a ele que está grávida? – nada de melhor lhe ocorrera que essa pobre mentira.
- De que adianta? Vai terminar descobrindo, é pior…
Foi dona Gisa quem encontrou a decifração para a charada, recurso não só honroso como prático, proposta capaz de resolver tudo e muito mais, quem sabe? A gringa era uma retada nesses assuntos de psicologia e outras metafísicas, até o professor Epaminondas Souza Pinto tirava-lhe o chapéu, “mulher de muita erudição”e o professor Epaminondas Souza Pinto não era um qualquer, jamais errara na colocação de um só pronome e ditava (gratuitamente) regras gramaticais no semanário de Paulo Nacif, folha de pouca circulação mas próspera em anúncios.
Quando puseram dona Gisa a par dos acontecimentos – dona flor em agonia, dona Norma perdida – ela logo os destrinçou e instruiu as amigas em seu português arrevesado. Se Vadinho tanto desejava um filho, a ponto de ir fazê-lo na rua, em mulher dama, pois era dona Flor estéril, não podendo conceber; se esse filho nascido de outra podia levar Vadinho embora para sempre – então só cabia a dona flor um recurso para garantir o marido e o lar: trazer para casa esse filho bastardo de Vadinho e fazer-se mãe dele, criando-o como se o houvesse parido.
E por que não? Por que gritava assim dona Flor, praguejando igual a uma norte-americana milionária – a comparação era de dona Gisa, espantada ante a reacção da vizinha – jurando que isso jamais, jamais o filho da outra, da cachorra, da puta sem vergonha? Por que esse escândalo, se uma das coisas mais admiráveis do Brasil era, segundo a opinião da gringa, a capacidade de compreender e conviver? Tão comum mulheres casadas criarem filhos espúrios dos maridos, ela mesmo conhecia alguns casos, tanto entre gente pobre como entre gente rica. Ali junto, na rua, dona Abigail não criava a filha do esposo com uma sujeita e não o fazia com o mesmo terno amor reservado aos quatro filhos de seu ventre? Uma beleza, e que beleza! Por essas coisas dona Gisa gostava do Brasil e se naturalizara brasileira.
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS
EPISÓDIO Nº 74
Dona Flor estremeceu. Viera para levar uma daquelas crianças, uma recém-nascida, para assim garantir-se contra ela e sua mãe. Mas, vendo os meninos soltos na Praça do Terreiro, seu coração se encheu de piedade, de um sentimento nobre e puro; naquela hora, se pudesse, adoptaria todos eles, não apenas o filho de Vadinho. Aliás, o filho de Vadinho não precisava dela para escapar àquela vida. Vadinho não o abandonaria jamais, não era de sua natureza largar uma criança ao desamparo, quanto mais rebento seu, nascido de seu sangue. Em vez de negar a paternidade, ele a proclamaria, dela fazendo praça, encantado e orgulhoso.
Sempre o soubera dona Flor, de ciência certa, de um saber sem dúvidas, apesar dos silêncios e das reticências do marido: um filho para Vadinho seria um dos maiores acontecimentos, a verdadeira sorte grande, a parada sem exemplo, o estouro da banca. Por isso ela tanto se afligira com a notícia trazida por dona Dinorá. Era o perigo maior, a temida ameaça. Afinal, Vadinho já lhe pertencia tão pouco; dominado pelo jogo e pela boémia, que sobras lhe restariam se um filho se erguesse entre eles, a chamá-lo de um beco esconso, de um canto de rua, do leito de uma vagabunda? Esse filho que ela não lhe dera.
Ao ter a notícia ficou desesperada, num padecimento tão grande a ponto da própria dona Norma perder a cabeça. De ordinário tão executiva, encontrando solução para todos os inúmeros problemas que lhe propunham a cada momento, ela também não atinava com a saída nem acerto, confusa e aflita.
- E se dissesse a ele que está grávida? – nada de melhor lhe ocorrera que essa pobre mentira.
- De que adianta? Vai terminar descobrindo, é pior…
Foi dona Gisa quem encontrou a decifração para a charada, recurso não só honroso como prático, proposta capaz de resolver tudo e muito mais, quem sabe? A gringa era uma retada nesses assuntos de psicologia e outras metafísicas, até o professor Epaminondas Souza Pinto tirava-lhe o chapéu, “mulher de muita erudição”e o professor Epaminondas Souza Pinto não era um qualquer, jamais errara na colocação de um só pronome e ditava (gratuitamente) regras gramaticais no semanário de Paulo Nacif, folha de pouca circulação mas próspera em anúncios.
Quando puseram dona Gisa a par dos acontecimentos – dona flor em agonia, dona Norma perdida – ela logo os destrinçou e instruiu as amigas em seu português arrevesado. Se Vadinho tanto desejava um filho, a ponto de ir fazê-lo na rua, em mulher dama, pois era dona Flor estéril, não podendo conceber; se esse filho nascido de outra podia levar Vadinho embora para sempre – então só cabia a dona flor um recurso para garantir o marido e o lar: trazer para casa esse filho bastardo de Vadinho e fazer-se mãe dele, criando-o como se o houvesse parido.
E por que não? Por que gritava assim dona Flor, praguejando igual a uma norte-americana milionária – a comparação era de dona Gisa, espantada ante a reacção da vizinha – jurando que isso jamais, jamais o filho da outra, da cachorra, da puta sem vergonha? Por que esse escândalo, se uma das coisas mais admiráveis do Brasil era, segundo a opinião da gringa, a capacidade de compreender e conviver? Tão comum mulheres casadas criarem filhos espúrios dos maridos, ela mesmo conhecia alguns casos, tanto entre gente pobre como entre gente rica. Ali junto, na rua, dona Abigail não criava a filha do esposo com uma sujeita e não o fazia com o mesmo terno amor reservado aos quatro filhos de seu ventre? Uma beleza, e que beleza! Por essas coisas dona Gisa gostava do Brasil e se naturalizara brasileira.