António Boto
Poeta nascido na Concavada, terra da naturalidade do meu pai e dos meus avós, aldeia onde fui muito feliz na minha juventude e onde se encontram quase todas as minhas recordações da infância e à qual volto esporadicamente.
É claro que já não me cruzo com as mulheres vindas da fonte com a bilha à cabeça, nem com o t’i Margalho ou com o t’i Zé Menaia, que tinha sido maqueiro na 1ª G. G. Mundial, ou com a Sr.ª Maria, que tinha mãos especiais para fazer o queijo de ovelha e tantos outros que hoje, nas poucas vezes que lá vou, estou sempre à espera que me apareçam na volta de cada rua.
Não há volta a dar-lhe, a nossa terra é aquela onde passámos a nossa infância, onde fizemos as nossas descobertas, onde vivemos pela primeira vez os momentos importantes que hoje guardamos quase religiosamente e onde estavam todos aqueles que não mais conseguimos apagar da nossa memória.
Lembro-me bem da casa que era da família do António Boto e de uma senhora grande e forte que lá vivia e julgo, seria uma sua tia.
Custa-me dizer, mas a Concavada é hoje, para mim, uma terra de fantasmas, meio desabitada e com pouco movimento que em grande parte lhe foi roubado pela auto-estrada da Beira que passa, paralela, a norte, do outro lado rio Tejo.
Recordo, com saudade, o meu falecido irmão que na qualidade de Presidente da Junta de Freguesia da Concavada, no pós 25 de Abril, colocou no largo central da aldeia o busto do poeta.
António Boto nasceu em 1897 e faleceu em Março 1959, no Rio de Janeiro, na sequência de um atropelamento por um automóvel do governo, em extrema miséria e muito doente em resultado de uma sífilis que nunca quis tratar.
Ironicamente, ele que em toda a sua vida foi um homossexual assumido, morreu abraçado pela sua inconsolável mulher, de seu nome Carminda da Silva Rodrigues, que o chorava perdidamente.
Em 1942 foi demitido do seu emprego na Função Pública (escriturário de primeira classe no Arquivo Geral de Identificação) por “…não manter na Repartição a devida compostura, dirigindo galanteios e frases de sentido equívoco a um seu colega, denunciando tendências condenadas pela moral social.”
Ao ler o anúncio publicado no Diário do Governo, Boto ficou muito desmoralizado e comentou com ironia: “sou o único homossexual reconhecido no País…”
Era uma pessoa dotada de uma forte personalidade, de um grande narcisismo mas amigo do seu amigo que, no entanto, reagia muito mal a alguém que não simpatizasse com ele.
Tinha um sentido de humor sardónico, incisivo, uma mente e uma língua irreverente e perversa e era um conversador brilhante e inteligente.
Amigo pessoal e grande admirador de Fernando Pessoa, traduziu para o inglês, em 1930, as suas Canções.
Transcrevemos três Poemas onde fica bem expressa a sua qualidade poética:
À Memória de Fernando Pessoa
Se eu pudesse fazer com que viesses todos os dias, como antigamente,
Falar-me nessa lúcida visão –
Estranha, sensualíssima, mordente;
Se eu pudesse contar-te e tu me ouvisses,
Meu pobre, grande e genial artista
O que tem sido a vida – esta boémia
Coberta de farrapos e de estrelas,
Tristíssima, pedante e contrafeita,
Desde que estes meus olhos numa névoa
De lágrimas te viram num caixão;
Se eu pudesse, Fernando, e tu me ouvisses;
Voltávamos à mesma: tu, lá onde
Os astros e as divinas madrugadas
Noivam na luz eterna de um sorriso;
E eu, por aqui, vadio de esperança
Tirando o meu chapéu aos homens de juízo…
Isto por cá vai indo como dantes;
O mesmo arremelgado idiotismo
Nuns senhores que tu já conhecias
Autênticos patifes bem falantes…
E a mesma intriga: as horas, os minutos,
As noites sempre iguais, os mesmos dias,
Tudo igual! Acordando e adormecendo
Na mesma cor, no mesmo lado, sempre
O mesmo ar e em tudo a mesma posição
De condenados, hirtos, a viver
Sem estímulo, sem fé, sem convicção…
Poetas, escutai-me. Transformemos
A nossa natural angústia de pensar
Num cântico de sonho, e junto dele
Do camarada raro que lembrarmos,
Fiquemos uns momentos a cantar
Andava a Lua nos Céus
Andava a lua nos céus
Com o seu bando de estrelas
Na minha alcova
ardiam velas
Em candelabros de bronze.
Pelo chão em desalinho
Os veludos pareciam
Ondas de sangue e ondas de vinho
Ele, olhava-me cismando;
E eu,
Placidamente, fumava,
Vendo a lua branca
E nua que pelos céus caminhava
Aproximou-se; e em delírio
Procurou avidamente
E avidamente beijou
A minha boca de cravo
Que a beijar se recusou
Arrastou-me para ele,
E encostado ao meu ombro
Falou-me de um pajem louro
Que morrera de saudade
À beira mar, a cantar…
Olhei o céu!
Agora, a lua, fugia
Entre nuvens que tornavam
A linda noite sombria.
Deram-se as bocas num beijo,
Um beijo nervoso e lento…
O homem cede ao desejo
Como a nuvem cede ao vento
Vinha longe a madrugada.
Por fim,
Largando esse corpo
Que adormecera cansado
E que eu beijara, loucamente,
Sem sentir,
Bebia vinho, perdidamente,
Bebia vinho..., até cair.
Romântica
Rasgaram as névoas
Que há pouco embrulhavam
As margens lendárias do Rio Mondego;
As águas acordam
E ficam pasmadas
Reflectindo o azul da manhã radiante…
Sinto-me tão perto de tudo que é triste
Que os meus olhos sofrem
Com esta alegria - talvez provocante.
Coimbra, serena, mostra o seu contorno
Airosa e gentil – como fascinada, na luz
Que é mais viva, difusa, doirada…
Tudo nela canta no alto silêncio
Das coisas divinas que falam do amor;
Aqui, uma folha que tombou na aragem
Mais além, uma flor…
Altiva –
Guarda na história dos tempos
A lembrança diluída
Dos seus romances guerreiros
Mesclados de sonho.
E a paisagem nua
Mais lúcida e bela,
Recortada e linda
Nesta claridade… - o dia floresce,
Aumenta - e as águas,
Translúcidas, verdes
- São verdes agora!
Ganham movimento,
Têm vibração,
Murmuram,
E passam
- Como aquela voz que encheu de saudade
O meu coração.