Episódio Nº 173
O doutor lhe trazia livros e revistas, passavam horas e horas em amena cavaqueira no jardim. Na cidade os curiosos perguntavam-se a troco de que o doutor, cidadão de tanta responsabilidade e tantos afazeres, perdia tempo em Estância a falar bobagens com mestre Nascimento Filho, a encher de mimos amásia tabaroa.
Quando, porém, a conversa girava sobre a política nacional, só faltando atracarem-se o rábula e o médico na apreciação de valores partidários, em fuxicos eleitorais, o doutor contentava-se em ouvir, indiferente. Para ele, política era ofício torpe, próprio para gente de baixa qualidade, de mesquinhos apetites e espinhaço mole, sempre às ordens e ao serviço dos homens realmente poderosos, dos legítimos senhores do país. Esses, sim, mandavam e desmandavam, cada um em seu pedaço, em sua capitania hereditária; ele, por exemplo, em Cajazeiras do Norte, onde ninguém movia palha sem antes lhe pedir consentimento. Tinha asco da política e desconfiança dos políticos: olho neles, são profissionais da falsidade.
Pegavam fogo as discussões sobre religião, assunto apaixonante, matéria inesgotável. Tendo bebido um pouco Lulu Santos afirmava-se anarquista, discípulo sergipano de Kropotkine, não passando de anticlerical ao velho estilo, responsabilizando a sotaina do padre Vinícius pelo atraso do mundo, inimigo quase pessoal do Padre Eterno.
A polémica, permanente entre ele e o padre, ainda jovem e exaltado, dono de certa erudição e argumentador de fôlego, acabava envolvendo João Nascimento Filho a dizer versos de Guerra Junqueiro, sob os aplausos do rábula. O doutor, sorvendo devagar o bom vinho, se divertia com a troca de razões, objecções e desaforos.
Atenta, Tereza acompanhava o debate buscando elucidar-se, sendo levada ora por um ora por outro, ao sabor das frases, redondas e graves as do reverendo, cínicas e divertidas as do rábula, boca de pragas e blasfémias. O padre terminava elevando as mãos ao céus e rogando a Deus perdão para aqueles impenitentes pecadores que, em vez de lhe darem graças por jantar tão divino e pelos vinhos da vinha do Senhor, pronunciavam impropérios e blasfémias pondo em dúvida a própria existência de Deus! Neste poço de pecado, dizia, só se salvam a comida, a bebida e a dona da casa, uma santa – os demais uns ímpios.
Ímpios, no plural pelos versos recordados por mestre nascimento Filho e por certas frases do doutor, a afirmar que tudo começa e termina na matéria, sendo os deuses e as religiões fruto do medo dos homens e mais nada.
Na noite em que pronunciou aquela frase, após o jantar e discussão feroz, o doutor, na vista de Tereza, dirigiu-se ao padre:
- Padre, o senhor vai-me quebrar um galho. O padre Cirilo, de Cajazeiras, anda ruim das juntas, entrevado de reumatismo, mal pode atender à cidade nas festas de Sant’Ana, não aguenta ir celebrar missa na usina, como de hábito todos os anos. Não quer vir o senhor?
- Com muito gosto, doutor.
- Mando-lhe buscar no sábado, o reverendo celebra Domingo pela manhã na casa-grande, baptiza a meninada, casa os noivos e os ajuntados, almoça com a gente, se quiser fica para o baile em casa de Raimundo Alicate, fandango de dar gosto, se não quiser eu mando-lhe trazer aqui. (clik na imagem e aumente)