TIETA DO AGRESTEEPISÓDIO Nº 219ONDE O AUTOR, NÃO SATISFEITO COM A CRETINICE HABITUAL, EXIBE ESTULTA VAIDADE
Não resisto à emoção e interrompo o relato para perguntar: ouviram os senhores o que eu ouvi, naquela nobre língua? Áspera para os tímpanos delicados de Ângelo Bardi, habituados a la dolce vita, soa harmoniosa a meus ouvidos de autor inédito a lidar com acanhada humanidade de perdidos arraiais, de incultos sertanejos, duvidosos pescadores. Soa e ressoa como heróica clarinada, wagneriana, conclamando a conquista do mundo. Atrevo-me a pensar que um dos grandes da Europa, patrão de multinacional, herói de nosso tempo, desceu da grandeza onde habitualmente decide e comanda, para fazê-lo nas humildes páginas deste folhetim. Falou pouco, é verdade, mas ouviu com atenção. O pouco que falou foi definitivo, liquidou vacilações, esclareceu dúvidas.
Perdoem-me, necessito de desabafar: encontram-se em festa estas páginas, cumuladas de honra e eu me sinto realizado. Com personagem de tal grandeza, não há-de me faltar editor. Sobretudo se o grande herói ainda voltar, em outro capítulo, com seu soberbo cabelo cortado à escovinha e a magnífica luz dos olhos baços. Se acontecer, o editor será até capaz de pagar-me direitos autorais, não que eu os exija: contento-me com ver o volume nas vitrinas das livrarias. De coração ao alto, bandeiras despregadas, trombetas e clarins, eu o saúdo e aguardo em ânsia seu retorno.
Com esse único objectivo interrompi a narrativa: para comunicar aos senhores minha emoção, para que dela possam participar. Mas já que interrompi, aproveito o ensejo para responder a novas restrições assacadas contra este agora orgulhoso folhetim por meu colega e amigo Fúlvio D’Alembert.
Desta vez protesta ele contra ausência de Tieta, cuja figura anda desaparecida. Esqueço-me que seu nome figura no título, ocupando o alto da página; abandono regra comezinha da novelística ao abandoná-la. Personagem principal não pode ser relegada a segundo plano, ensina-me Fúlvio D’Alembert.
Da ausência de Tieta, não me cabe a culpa e, sim, a ela própria. Enquanto a discussão sobre a Brastânio pega fogo em Agreste, a cidade infestada de advogados, dona Carmosina recolhendo assinaturas em patético memorial às autoridades, protestando com vigor e pânico contra a instalação de uma fábrica de dióxido de titânio no município; quando o comandante Dário, contrariando arraigados hábitos de verão, abandona sua vilegiatura em Mangue Seco para colaborar com a agente dos Correios convencendo os indecisos, Tieta permanece na praia, bem do seu nome, entregue à devassidão. Palavra forte, sei, mas que outra empregar para caracterizar relações ilícitas de tia quarentona (quarenta e quatro, pouco falta para os cinquenta) com sobrinho de menor idade?
Osnar afirma que cidadão brasileiro alcança a maioridade sexual aos treze anos mas os discutíveis valores morais do troca-pernas não devem prevalecer sobre a moral corrente, cristã e ocidental – dizem-me, aliás, que os orientais, se por orientais entendemos socialistas, são extremamente puritanos, não admitindo tais libertinagens nem nas praias nem na literatura. Não tendo o que contar sobre Tieta, além do deboche, lúbrico e terno, voraz e lírico, permaneceu ela um tanto à parte mas nem por isso deixou seu nome ser citado pois, como constatou o Comandante, em todas as conversas pergunta-se qual a posição assumida por dona Antonieta Esteves Cantarelli no debate em torno da instalação da indústria de titânio. Mais uma vez o Comandante comprova a importância e do gesto de Tieta junto à vacilante maioria. Ao regressar a Mangue Seco, o bravo marujo pretende falar a sério com Tieta: venha assumir, minha boa amiga, seu posto de combate, chefiar a campanha, impedir o crime.
Aí ficam explicações e notícias, sirvam-se. Ah!, não me referi a um último (último mas não derradeiro) reparo de Fúlvio D’Alembert, crítico minucioso a quem nada escapa. Não perdoa o menor cochilo.
Reclama a propósito da descrição, páginas atrás, da chegada a Agreste do doutor Marcolino Pitombo. Reportando o bom conceito por ele expresso sobre a marinete de Jairo, escrevi que, atento ao som do rádio russo, o causídico elogiara a firmeza de carácter do aparelho. Sem esclarecer – aí o erro – o motivo do louvor. Que forte carácter é esse, do tal rádio, capaz de merecer gabo e admiração do ilustre advogado, um dos mais doutos personagens deste folhetim? Na opinião de Fúlvio D’Alembert, deixei o leitor no ar, desinformado.
Não seja por isso a reprimenda, aqui vai o esclarecimento. Tendo sabido que o rádio era de fabricação soviética, made in URSS, curiosa coincidência despertou a atenção do velho bacharel. Ao retransmitir músicas de países de terceiro mundo, latino americanas, brasileiras, sambas, tangos, boleros, rumbas, batuques, guarânias, o aparelho fazia-o com relativa limpidez e sonoridade. Tratando-se, porém, de melodias francesas, alemãs, italianas, inglesas, de nações desenvolvidas, o som piorava muito. Para tornar-se ininteligível, transformar-se em barulheira a doer nos ouvidos, intolerável estática, quando as estações de rádio obstinavam-se na difusão dos modernos rocks norte-americanos ou de qualquer som proveniente dos Estados Unidos.
Desterrado no sertão da Bahia, cruzando poeirento de crateras e pedregulhos, a serviço da derradeira marinete do universo, mantinha-se fiel aos rígidos princípios anti imperialistas. Demonstrando, inclusivé, se considerarmos a actual contingência política do mundo, acerbo sectarismo.
Mas que perfeição de som, que nitidez, que transparência quando uma estação de ilhéus difundiu, no programa Cantigas Inesquecíveis a canção intitulada Olhos Negros. Popular melodia russa – se não sabem, informo – tocou as entranhas do aparelho, recordando-lhe a nacionalidade, transportando-o de volta á romântica nostalgia das estepes. Mais límpido do que qualquer som estereofónico, o do rádio soviético, ressoando alto e puro no agreste serão da Bahia – indomável carácter.