Memórias Futuras
Olhar o futuro pelo espelho retrovisor da história. Qual história? Que futuro?
sábado, dezembro 26, 2015
Tieta, no regresso a Agreste |
TIETA DO AGRESTE
(Jorge Amado)
EPISÓDIO Nº40
De shorte, à mostra as longas pernas, as modeladas coxas, a
blusa amarrada sob os seios, o umbigo de fora (ai, esses costumes de S. Paulo,
os meninos vão perder a virgindade dos olhos! Perpétua toca com os dedos as
contas do terço no bolso da saia), Leonora sorri, acalma Tieta:
- Vamos à praia noutro dia, Mãezinha. Dona Perpétua tem razão, a missa é mais importante.
– sorri para Perpétua – Mãezinha veio falando em Mangue Seco a viagem
toda. Mas a missa é sagrada.
Muito bem, assim fala uma boa filha, mesmo sendo paulista, pouco atenta ao
rigor do luto, aos prolongados ritos da morte, obrigatórios e rígidos em Agreste.
- Tem razão, Nora. Continuo cabeçuda como uma cabra velha. Quando quero uma
coisa não vejo nada à minha frente.
Iremos a Mangue Seco no outro fim-de-semana.
Conduzidas por Ricardo – vista a batina, acompanhe sua tia – foram à tarde
conhecer a casa de Elisa. Barraco de pobre, mana, caro só o aluguel. Caro? Se
fosse em São Paulo …
Lá, para começar, só os multimilionários moram em casas, os demais vivem
atulhados em apartamentos ou apodrecem em cortiços, sardinhas em lata.
Doce de araçá, raramente se faz, delicioso!
Licor de jenipapo. O que eu vou engordar, meu Deus! Gulosa, de volta aos
sabores da infância, Tieta repete a dose.
Na rua, encontram Ascânio Trindade. Por acaso ou de propósito, deixou ele a
Prefeitura às moscas? Querem ir aonde? Tem um passeio bonito: ali adiante o rio
se alarga e forma pequena bacia, reduto das lavadeiras, lugar lindo, chama-se
Bacia de Catarina, nome certamente posto, por um literato, antepassado de
Barbozinha.
Ou por ele mesmo noutra encarnação. Hoje não, tem de visitar dona a
Agência dos Correios, prometeram a Carmosina. Vão ao Aerópago? Ao quê?
Aerópago, é o apelido de Giovani Guimarães, um jornalista da capital, botou na
Agência dos Correios quando esteve em Agreste: ali se reúnem os sábios. Gozado!
Leonora aberta em riso, cristal a romper-se nas ruas de Agreste.
Breve parada na porta do cinema para dizer boa tarde ao árabe Chalita – ainda
se lembra de mim? Quem pode te esquecer, Tieta? Sorvete de Mangaba, Leonora não
conhece, vai ver o que é bom.
Hoje é de graça: o árabe se cobra lavando a vista
em Tieta e na moça. Regala-se com a visão de mil e uma noites, sob o
transparente tecido dos modelos, iluminados por um raio de sol.
Combinação
anágua? Isso não se usa mais, peças de museu. Sutiã? Para quê, se os seios são firmes,
não precisam de armação de entretela a sustentá-los? Calçola? Minúsculo tapa
sexo e basta. Viva a civilização e voltem sempre, suplica o árabe progressista.
Nas janelas, solteironas e mocinhas debruçam-se para enxergar melhor,
observando cada passo, cada gesto, comentando os trajes.
Você tinha coragem de
usar? Eu? Acho que não. Pois eu teria se mamãe deixasse. Tieta trouxe para
Elisa uma mini-saia mas ela ainda não se atreveu a estrear.
Alvoroço na bar, a
matilha nas portas, brechando. Até seu Manuel larga o balcão, também é filho de
Deus. Leonora acha graça em tudo, soltos, o riso e os cabelos; Ascânio recolhe
pela rua pedaços de cristal, recorda um verso ouvido não sabe: loira como um
trigal maduro. Fica sabendo do adiamento da visita a Mangue Seco e é convidado
para a missa pela alma do Comendador. Tieta deixa-o à vontade:
- Se não qui ser, não vá. Essa
história de missa de finado, só por obrigação. Aliás, Filipe tinha horror a
tudo o que cheirasse a morte, defunto, cemitério, missa do sétimo dia. Pelo meu
gosto ia a Mangue Seco. Mas Perpétua faz questão, paciência.
Ascânio não aprova nem desaprova, nessas divergências de opiniões entre as
irmãs não dá palpite, mas quanto a ir à missa, isso com certeza:
- No próximo sábado? Comparecerei, sem falta. Já estarei de volta.
- Vai viajar? – surpreende-se Leonora.
- Para onde? – interessa-se Tieta.
- Vou a Paulo Afonso tratar do problema da luz. Estão colocando luz da
Hidrelétrica nos municípios de toda essa zona do Estado, só deixaram de fora
três cidades, uma delas é Agreste, uma discriminação sem justificativa, no meu
entender.
Estou vendo se consigo que voltem atrás e nosso município entre na
relação dos beneficiados. Mandei ofícios para meio mundo, sem resultado. Alguns
nem tiveram resposta. Decidi falar pessoalmente com o director da usina. Numa
conversa cara a cara, quem sabe eu o convenço e deito abaixo essa injustiça.
- Vai demorar? – a pergunta de Leonora é um pedido: não demore, volte logo
estou à espera. Assim dizem os olhos.
- Não, só dois dias. Pego a marinete amanhã, amanhã mesmo me toco de Esplanada
para Paulo Afonso. Fico lá o dia de depois de amanhã, qui nta-feira
estou de volta. Talvez com uma boa notícia para Agreste.
Gosto de gente decidida como você – apoia Tieta: - Vá, brigue e convença o
homem, traga essa luz que Agreste bem precisa.
- Vai conseguir! – exalta-se Leonora: - Vou ficar torcendo.
- Se eu já estava disposto a brigar, agora nem se fala.
Sente-se Ascânio armado cavaleiro andante, partindo para o campo de luta sob a
inspiração da sua Dulcineia.
Ao voltar vitorioso, tendo convencido os frios e
distantes directores e técnicos da importância histórica e das possibilidades
turísticas de Agreste, difícil tarefa, árdua batalha, colocará aos pés de
Leonora o troféu conqui stado: a
refulgente luz da Hidroelétrica em substituição da bruxuleante iluminação actual
devido ao motor instalado por seu avô Francisco Trindade, quando intendente, no
tempo do onça.
Leonço, ex-soldado da Polícia Militar, ex-jagunço, actualmente paisano e capenga
– um tiro casual na zona, há vários anos – funcionário municipal, pau para toda
a obra, de faxineiro a moço de recados, de guardião a jardineiro, surge na esqui na, arrastando a perna: reclamam a presença de
Ascânio na Prefeitura.
- Me desculpem, preciso de ir, sei de que se trata. Até logo.
- Até qui nta, não é? Fico esperando
– diz Leonora, os doces olhos.
- Quinta, sim. Mas, se me permitem, passo hoje à noite por casa de dona
Perpétua para me despedir.
- Não precisa de pedir licença, venha sempre que qui ser
– convida Tieta.
- Venha mesmo. Sem falta – reforça a moça.
Na esqui na da Praça, Ascânio
volta-se, Leonora levanta a mão, acena, ele responde. Tieta se diverte:
- Já conqui stou a Prefeitura, hei,
cabrita? Rapaz simpático.
- Um amor… - resume Nora, a voz de enleio.
(Domingos Amaral)
Episódio Nº 141
Ricobayo, Pentecostes, Junho de 1126
À medida que a tarde caía, o ambiente ia ficando mais pesado na enorme tenda que Afonso VII mandara erguer à entrada da povoação de Ricobayo.
Desde as primeiras horas da
manhã que o novo rei recebia nobres galegos, leoneses e castelhanos. Os Trava,
com o pai, Pedro Froilaz à cabeça, haviam-lhe já beijado a mão, mas o encontro
com Dona Teresa fora adiado devido às ausências relevantes de Afonso Henriques
e dos senhores de Toronho e Celanova.
Foi já ao final da tarde que
o monarca coroado há poucas semanas mandou finalmente entrar a comitiva
portucalense, onde marcava presença o novo Mordono-Mor, Paio Soares e à qual se
haviam juntado Fernão Peres de Trava e seu irmão Bermudo.
Nervosa e pálida, Dona
Teresa beijou o sobrinho na mão e depois foi sentar-se num banco, enquanto o
Mordomo e os Trava se mantinham de pé, à frente do rei de Leão, Castela e
Galiza.
Aos vinte e um anos, Afonso
VII, parecia banhado em autoridade natural e carisma. Sagaz, falador mas
decidido, era também um homem vaidoso e apresentava uma riquíssima dalmática
roxa, que o cobria dos ombros aos pés, transportando na cabeça a magnífica
coroa do seu avô Afonso VI, incrustada de safiras, rubis e pérolas.
Da última vez que Dona
Teresa o vira, o sobrinho não usava barba, mas agora deixara-a crescer,
influenciado pelas novas modas, importadas de Bizâncio. Ouvi-o dizer:
- Segundo sei, tendes
pretensões a apresentar.
A custo, dominada por um
estranho mal estar, Dona Teresa amparou-se a Fernão Peres. Relembrou as antigas
decisões de seu pai, Afonso VI, e lá acabou por afirmar, de forma não muito
convicta, que se julgava no direito de ser rainha da Galiza, pois tinha sido
prejudicada em Toledo, e considerava ser aquele o momento da recompensa.
Durante anos governara com
mestria o Condado de Portucalense, rechaçara dois ataques do califa Ali
Yusuf a Coimbra e provera a união entre as
famílias do Norte e do Sul da velha Galécia, como os Romanos lhe chamavam,
consolidando a sua ligação à mais importante casa da região, com o matrimónio
entre a sua filha mais velha, Urraca Henriques e Bermudo de Trava.
Ao ouvi-la falar nesse
casamento o rei não evitou um sorriso jocoso mas nada disse. Dona Teresa
prosseguiu aludindo reconhecer a autoridade régia de Afonso VII, bem como a sua
vontade de, tal como o avô, ser coroado imperador de Hispânia.
Porém, ao fazê-lo, devia
permitir que ela ascendesse a rainha da Galiza.
No final deste longo
monólogo, o novo rei perguntou-lhe:
- Quantas horas terei de esperar por meu primo
Afonso Henriques?
Dona Teresa empalideceu um
pouco mais. E Gomes Nunes também se recusou a vir? E o pai da minha amiga
Teresa Celanova, sabeis dele? – questionou o rei.
Paio Soares deu um audaz
passo em frente e atreveu-se a dizer:
- Meu rei, sou Mordomo-Mor
de Dona Teresa e casei-me com Chamoa Gomes, filha de Gomes Nunes. A minha
esposa já está grávida e sua irmã Maria Gomes também vai casar-se também vai
casar-se em breve.
Com tantos afazeres gomes
Nunes viu-se obrigado a permanecer em Tui, enviando-me como seu representante,
pois sou seu genro.
O rei mirou-o demoradamente
e depois abanou a cabeça.
É ele que me tem de prestar
vassalagem, não vós. Pelo menos enquanto for vivo.
Paio Soares engoliu em seco,
perante a ameaça velada de Afonso VII, e nesse momento Dona Teresa sacudiu-se
com um súbito e inesperado voto, levando a mão à boca.
Fernão Peres olhou-a,
alarmado, mas o rei com um vislumbre de malícia na voz, perguntou:
- Estais de esperanças,
minha tia? Na vossa idade é uma ousadia!
sexta-feira, dezembro 25, 2015
quinta-feira, dezembro 24, 2015
e a Esperança
Se eu fosse remetido para a condição de “sem abrigo” não morreria
de fome ou de frio. Morreria de desgosto por não ter uma casa, um espaço meu,
pequeno ou grande, simples ou luxuoso, mas um espaço meu em que me sentisse
rei.
Em 1977, eu não era um “sem abrigo”, tinha regressado ao meu
trabalho de funcionário do Estado e reposto a minha dignidade nesse aspecto
que, bem vistas as coisas, é de todos o mais importante, depois da segurança
pessoal das nossas vidas contra a possibilidade de comportamentos arbitrários
das autoridades que senti antes de regressar ao meu país, como refugiado das
colónias.
Vivia, então, numa situação de favor em casa de uns parentes, em
quarto interior que, de tão pequeno, o aparelho de TV, ao tempo a preto e
branco, tinha de ficar ao fundo, aos pés da cama.
Não tinha recursos financeiros e o meu ordenado dava apenas para
uma pequena renda de uma casa que, na altura, não existiam.
A revolução dos Cravos do 25 de Abril, pouco depois seguida da
avalanche de vagas de retornados, foram uma surpresa, o país não estava à
espera nem preparado, exaurido por uma guerra que não tinha fim.
Não havia casas. Simplesmente, não havia casas para abrigar
centenas de milhar de famílias chegadas em cima umas das outras.
Eu, finalmente, por intermédio de um conhecido, arranjei uma que
me foi disponibilizada por ele, que entretanto, ia para Lisboa.
O preço estava nos limites do meu ordenado, ainda me lembro, cinco
mil escudos mensais.
Desculpem maçar-vos com estas recordações mas foi neste ponto que
surgiu a raiva, num dia do ano de 1977, quando me disseram que a casa só me
seria entregue se eu passasse cinquenta mil escudos, por baixo da mesa, a não sei
quem, provavelmente, o dono da própria casa.
Nessa noite, eu não dormi por causa da raiva que sentia e a minha
cabeça não parava a tentar forjar uma solução e a minha imaginação, cavalgando
o sentimento da raiva, dispersava-se por todo lado até que parou nas Cooperativas de Habitação Económica de que tinha ouvido falar mas das quais não
sabia muito.
- E se eu, em vez de uma casa arranjasse dezenas, centenas delas,
quem sabe?...
Os governos de então faziam o que podiam para ajudar as pessoas,
trabalhava na área social e sabia disso.
As Cooperativas de Habitação Económica, isso sabia eu, podiam obter ajudas financeiras para a construção de casas, num processo em estreita colaboração com as Câmaras Municipais e a dinâmica de grupos de pessoas num processo que era moroso e complexo mas... possível.
As Cooperativas de Habitação Económica, isso sabia eu, podiam obter ajudas financeiras para a construção de casas, num processo em estreita colaboração com as Câmaras Municipais e a dinâmica de grupos de pessoas num processo que era moroso e complexo mas... possível.
Tanto bastou para que, no outro dia, impulsionado pela raiva,
saísse de manhã, direito à Câmara Municipal de Santarém, pedir uma audiência ao
Presidente.
A partir daqui , a
raiva, que nunca me abandonou deu um espaço à esperança e à determinação: nada
ficaria por fazer, prometi a mim próprio, levaria tudo à frente... era uma
espécie de esperança raivosa, uma vingança contra o egoísmo dos outros, que me
fez ranger os dentes e pôr em cada gesto e palavras minhas, toda a convicção,
toda a minha força interior para que ninguém tivesse dúvidas do objectivo que
queria alcançar.
A história do percurso da minha Cooperativa de Habitação
Económica “Lar Sacalabitano, levou vários anos e prestou-se a um folhetim que
terminou bem no dia em que eu próprio entreguei 96 chaves de outras tantas casas
a outras tantas famílias, que não a mim, porque ao fim desses anos já tinha arrendado uma casa para mim.
Foram as dezenas... as centenas viriam em anos seguintes, numa 2ª e
3ª fases, chegando às centenas, mais de 400 apartamentos, numa zona nobre da
cidade de Santarém, Av. Bernardo Santareno, do lado direito, de quem desce,
antes de chegar ao edifício do novo Hospital.
Foi o maior programa de Habitação Social do Distrito de Santarém e
talvez de todas as cidades do interior do país e que teve contra si, primeiro o
cept icismo, depois, a inveja, a intriga,
as armadilhas, um pouqui nho de tudo
mas que começou e acabou sem interrupções, sem escândalos, nem falências, porque, como terá dito um técnico do Fundo de Fomento de Habitação
que acompanhou todo o processo, teve à sua frente o Dr. Paula de Matos.
Reconheço o meu orgulho e a minha vaidade quando passo de carro na
rua, ao longo daquele bairro, espaçoso, com zonas para as crianças e espaço
para lojas que lhes dão vida.
O que esse técnico e todos os técnicos nunca souberam, é que foi
tudo fruto de uma noite de raiva...
Celebremos, então, a Noite da Família, com uma voz que mergulha na infância dos mais velhos: Bing Crosby.
Tieta tem que papar missas.... |
TIETA DO AGRESTE
(Jorge Amado)
EPISÓDIO Nº 39
ONDE PERPÈTUA, CUNHADA ATENTA, CUIDA DA
ALMA DO COMENDADOR ENQUANTO TIETA E LEONORA, EM ELEGANTES MODELOS
TRANSPARENTES , EMPOLGAM O BURGO E ASCÂNIO TRINDADE EXPLICA O
PROBLEMA DA LUZ ELÉTRICA
Pela manhã, durante o café gordo – inhame, aipim, fruta-pão, banana
cozida, cuscuz de puba mandado por dona Milú; como manter a linha e não
engordar?
- Perpétua comunica os horários da missa pela alma do Comendador e da
entronização, a missa no sábado às oito horas, a entronização no Domingo, às
onze.
Antonieta se alarma; se não contiver a irmã mais velha passará a
temporada de férias na igreja, adeus projectos de praias, de passeios.
- Isso não tem importância, quanto mais melhor para a alma dele. Como é que a gente ia ficar se não mandasse celebrar nem uma missa? Eu, Elisa, o Velho? O que o povo havia de dizer? Um comendador do Papa, um nobre da igreja, ainda hoje padre Mariano repetiu: temos de cuidar da alma dele.
Fez uma carrada
de elogios a você. Por causa do hostiário.
- Você já esteve com o padre, hoje? A que horas?
- Não perco a missa das seis. Nem eu nem Ricardo, quando está aqui . É ele quem ajuda.
Ricardo aproveita e pergunta se pode tirar a batina, botar o calção, ir ao rio, experimentar o molinete. Antonieta adianta-se:
- Pode, sim, meu filho. Vá brincar. E só volte na hora do almoço.
- Obrigado, tia – Sai rápido antes que a mãe proteste.
- Uma graça, esse teu filho estudante de padre, ainda não me acostumei. De dia de batina, de noite de camisolão. Tamanho homem, Perpétua! Vou comprar um par de pijamas para ele.
Vai começar a usar quando for para o seminário. Fiz uma promessa à Senhora de Sant’Ana: se, um dia, Deus me desse um filho, ele seria padre, Ricardo foi o primeiro, pusemos o nome do avô, do pai do Major. Gosta de estudar, tem temor a Deus, estou contente com ele.
Tieta volta ao assunto da missa:
- Que droga, eu tinha pensado passar o fim-de-semanaem Mangue Seco , mostrar a
praia a Leonora, ver se escolho um terreno para comprar. Ia combinar hoje com o
Comandante, ele nos convidou quando chegámos.
Eu também vou tia. – De calção, segurando os pés de pato e a máscara de mergulhador, Peto espera o irmão.
Este sábado não vai dar jeito. Você não pode faltar na missa. Nem na entronização, foi você quem me deu o Sagrado Coração. Já pensou? São coisas santas mais importantes do que praia e banho de mar – força Perpétua.
Antonieta controla-se, engole o mau humor. Também que ideia a sua, vir carregada de troféus religiosos, ela que nunca fora de missa e sacristia!
- Você já esteve com o padre, hoje? A que horas?
- Não perco a missa das seis. Nem eu nem Ricardo, quando está a
Ricardo aproveita e pergunta se pode tirar a batina, botar o calção, ir ao rio, experimentar o molinete. Antonieta adianta-se:
- Pode, sim, meu filho. Vá brincar. E só volte na hora do almoço.
- Obrigado, tia – Sai rápido antes que a mãe proteste.
- Uma graça, esse teu filho estudante de padre, ainda não me acostumei. De dia de batina, de noite de camisolão. Tamanho homem, Perpétua! Vou comprar um par de pijamas para ele.
Vai começar a usar quando for para o seminário. Fiz uma promessa à Senhora de Sant’Ana: se, um dia, Deus me desse um filho, ele seria padre, Ricardo foi o primeiro, pusemos o nome do avô, do pai do Major. Gosta de estudar, tem temor a Deus, estou contente com ele.
Tieta volta ao assunto da missa:
- Que droga, eu tinha pensado passar o fim-de-semana
Eu também vou tia. – De calção, segurando os pés de pato e a máscara de mergulhador, Peto espera o irmão.
Este sábado não vai dar jeito. Você não pode faltar na missa. Nem na entronização, foi você quem me deu o Sagrado Coração. Já pensou? São coisas santas mais importantes do que praia e banho de mar – força Perpétua.
Antonieta controla-se, engole o mau humor. Também que ideia a sua, vir carregada de troféus religiosos, ela que nunca fora de missa e sacristia!
Culpa
de Carmosina: Perpétua tem uma Santa Ceia na sala de jantar, se você trouxer um
Coração de Jesus para a sala de visitas, a beata vai ficar maluca de contente.
Não esqueça uma lembrança para a Matriz, padre Mariano só faltou lhe canonizar
no sermão em que fez o seu epitáfio. Foi atrás dos conselhos de Carmô, o resultado
é esse: um porre de igreja. Chegou sonhando com a praia de Mangue Seco, merda!
Engole também o palavrão.
Um
ladrão desavergonhado foi roubar um cabrito às 4 H da madrugada.
Os donos, quando se aperceberam do roubo, seguiram as pegadas do
ladrão até ao local e bateram à porta: "Truz, truz. Dá licença?"?
O
ladrão responde: - Quem é?... mas então, quem vem incomodar a esta hora?
-
Viemos buscar os nosso cabrito...
- Os
cabrito não está aí fora??
-
Está.
-
Então leva só. Está me incomodar porquê??.... !!!!!!
Quando fui roubar os cabrito no vossa
casa, eu te acordei ?!!!!!.............
(Domingos Amaral)
Episódio Nº 140
Naquele instante, Afonso
Henriques pareceu-me um gigante, um ser do outro mundo, um rei das ancestrais
histórias da cavalaria visigótica, um herói magnífico bafejado pela sorte de
Deus.
Em silêncio, com o coração
emocionado, escutei a sua voz e ela era forte, profunda e serena.
Em nome de Deus e do
apóstolo Santiago, eu, Afonso Henriques, filho do conde Henrique e da condessa
Dona Teresa e neto de D. Afonso, imperador da Hispânia, armo-me cavaleiro pela
graça de Jesus Cristo e de Nossa Senhora, neste santo dia de Pentecostes.
O príncipe mantivera a
espada ao alto, em frente da sua cara, e depois tocou no seu ombro esquerdo e
no direito. De seguida ajoelhou em frente à imagem de Jesus Cristo e rezou de
novo, sempre com a espada levantada.
Quando terminou, colocou-a
na bainha, levantou-se e virou-se para trás.
O primeiro a aproximar-se
dele foi Paio Mendes, arcebispo de Braga que o abraçou fortemente, os olhos a
brilharem de crença no futuro.
Depois, meu tio Ermígio
Moniz, calmo e silencioso, abraçou também o meu melhor amigo que lhe agradeceu
o quanto aprendera com ele.
Seguiu-se meu pai, comovido,
que ao envolvê-lo murmurou:
- Que honra, meu filho.
Meu pai tinha os olhos
marejados de lágrimas e a sua voz tremia ligeiramente quando acrescentou:
- Dórdia gostaria muito de
vos ver neste dia.
Na cara do meu amigo
príncipe nasceu um sorriso infantil e surpreendido, também ele sentindo
saudades daquela mulher que todos nós sempre amáramos.
Nesse momento ajoelhei à
frente dele, mas Afonso Henriques deu-me a mão e obrigou-me a levantar.
- Nenhum amigo se ajoelha à
minha frente, Lourenço Viegas.
Lembro-me de lhe ter dito:
- Obrigado meu príncipe.
Ele corrigiu-me de imediato:
- Afonso Henriques é o meu nome, e para os
meus irmãos sê-lo-à sempre!
Embora soubesse que tudo
tinha mudado nas nossas vidas concordei com um sorriso e depois dei um passo
atrás.
Então Gonçalo ficou frente
ao príncipe. Atrapalhado, perguntou:
- E eu tenho de ajoelhar?
Nós rimo-nos e Afonso
Henriques abriu-lhe os braços.
Sois como meu irmão.
Gonçalo abraçou-o, mas
continuava envergonhado, via-se que não estava à vontade com estas
manifestações, por isso deu dois passos para trás, olhou para mim e perguntou:
- E agora, vamos jantar?
A sorrir começamos a dirigir
à saída, mas antes o príncipe entregou a meu pai a espada do conde Henrique e
disse-lhe:
- Um dia podereis devolver-ma.
Saímos da catedral e
juntámo-nos à pequena comitiva que tinha vindo connosco. Vários
cavaleiros-vilões olharam para Afonso Henriques, intrigados por o verem de
armadura, e aos poucos a notícia foi correndo e todos o vieram saudar.
Depois para evitarmos
cruzarmo-nos com Afonso VII ou com Dona Teresa partimos pela estrada de
Salamanca. Quando Zamora ficara já para trás, Afonso Henriques acercou-se de
mim e de Gonçalo. Sem o capacete, a armadura e o escudo parecia o nosso amigo
de sempre
Decidi viver em Guimarães –
informou.
Olhou para Gonçalo e
perguntou:
- Podeis mudar-vos para lá?
- Claro, desde que possa levar umas
soldadeiras...
Depois, olhou para mim.
- A Maria quer viver em
Lamego ou em Tui?
Suspirei e sugeri:
- Iremos para Guimarães. Ela quer que eu fique
junto de vós.
O príncipe aprovou e
acrescentou:
- Assim vou sabendo novidades de Chamoa.
Ao ouvi-lo, Gonçalo
resmungou:
- Essa também, tanta
coisa... e casou sem pestanejar!
Cinco semanas depois da
Páscoa, Paio Soares e Chamoa Gomes tinham casado na Maia, na presença de Dona
Teresa, mas não do príncipe, que regressara a Guimarães depois da frustrada a
tentativa para rapt ar a sua amada.
Ligeiramente irritado com o
comentário crítico do amigo, Afonso Henriques declarou:
- Não digas mal dela à minha frente.
Permanecia enamorado e
disse-nos:
- Gostava tanto que ela me tivesse visto hoje.
quarta-feira, dezembro 23, 2015
A Caixa de Pandora |
A Esperança
e a Raiva
Se a
esperança for o motor de arranque de um carro a gasóleo, hoje em dia muito
idênticos aos de gasolina, a raiva funciona como um propulsor de um carro de
corrida... saem disparados.
Qual
de vós não se sentiu já impulsionado por cada um destes dois motores de
arranque?
Vivemos
com esperança, ela faz-nos acreditar, motiva-nos para o dia de amanhã, leva-nos
a pensar que tu vai correr bem... “pelo menos tenho essa esperança”... dizem
umas pessoas, enquanto que outras, ao contrário, desabafam: ... já não
acredito, perdi toda a esperança...”
Mas
não se perde, porque o sol nasce todos os dias, a vida renasce e renova-se com
ele e a esperança, a pouco e pouco, regressa.
Assim,
a esperança acompanha-nos por toda a vida, quase que diria que faz parte dela
mas a raiva, não.
Em
um dia da minha vida, estávamos em 1977, passei da esperança à raiva e nessa
noite, ela, a raiva, não me deixou dormir.
De
manhã saltei da cama como que impulsionado por uma mola porque a raiva é assim,
uma explosão de energia, quer acção, não aceita a expectativa, não nos deixa
ficar na estação à espera da camioneta, metemo-nos a caminho se houver caminho
a percorrer.
Em
1977, mais de meio milhão de portugueses tinham regressado de Angola e
Moçambique, a maior parte sem nada ou quase nada como eu, por exemplo, meti-me
no avião com a roupa que tinha no corpo e deixei para trás a minha casa, com a
mesa do pequeno almoço ainda posta, o meu local de trabalho e o automóvel que entreguei
a um amigo no estacionamento do aeroporto.
Não,
isto não tem nada a ver com a minha raiva, apenas com o contexto: em determinados momentos da vida, certas pessoas, não devem estar em certos locais, e foi isso
que aconteceu com os portugueses em Angola, Moçambique e comigo.
As independências
foram um desses momentos. Caixas de Pandora que se abriram e libertaram, em
primeiro lugar, as coisas boas, os festejos, os abraços, a esperança...
Mas a Caixa
oferecida a Pandora pelos deuses, tinha segundas intenções ou não viesse ela
dos deuses, e guardou para o fim, o que tinha reservado lá no fundo para
libertar: as coisas más, como as guerras, a morte, a destruição, a dor.
Os portugueses foram
apanhados neste turbilhão porque estavam lá. Foi injusto, mas é assim: são as
vicissitudes da história dos povos.
Não apela à raiva e
os que cederam a ela arrependeram-se, mas antes à compreensão do homem e dos seus
impulsos como grupos humanos, neste caso, impedidos de trilhar o seu próprio
caminho durante muitos anos.
As forças que então
se libertaram são difíceis de controlar e aqueles momentos, para angolanos e
moçambicanos, foram sentidos como de oportunidades, que o eram, de facto, mas
que dificilmente, seriam aproveitados da forma certa.
O meu momento de
raiva havia de chegar posteriormente, nas terras do meu país, na cidade conqui stada por Afonso Henriques, Santarém, também ela
lotada de retornados vivendo, acumulados, em casa de familiares em situações de
grande tensão, porque, naturalmente, não havia habitações que chegassem para
tantas famílias desembarcadas assim de rompante.
Mas amanhã, falo-vos
do meu momento de raiva...
Sua benção, minha tia... |
Tieta do Agreste
(Jorge Amado)
EPISÓDIO Nº38
DO CAMISOLÃO, DA CAMISOLINHA, DO JARRO COM ÁGUA E DA ORAÇÃO
Pagara a promessa ainda no seminário, na semana dos exames, após receber carta de Perpétua com as novidades: a tia gozando saúde e os projectos de viagem. Morte houvera mas do Comendador, antes assim. Durante sete noites, Ricardo macerara os joelhos sobre grãos de milho, obtidos na despensa, e ad
A vida é um alforge de surpresas, afirma Dom José nos sermões dominicais,
sobra-lhe razão. Ricardo ficou abobado quando viu tia Antonieta na porta da
marinete, de anciã e avó não tinha nada. Nem parecia viúva, não pusera luto.
Cabeleira loura, saindo do turbante, rolando nos ombros, o corpo apertado na
blusa vermelha, na calça jean, a despertar exclamações. Não apenas o brado, o
viva de Bafo de Bode, indecência! Ricardo ouvira igualmente o comentário de
Osnar, em voz baixa, destinado a Aminthas:
- Que pedaço de mulher ela virou! Que ubre! Cabrona! –
Elevava a voz:
- Uma fruta madura, Capitão Astério, parabéns pela cunhada.
- Osnar distribuía
patentes militares pelos amigos. Seu Manuel era Almirante. Dona Carmosina,
Coronela da Artilharia Pesada.
Engraçado: não ficara nem desiludido nem frustrado com a brusca mudança da
imagem concebida - surpreende-se Ricardo a pensar enquanto retira a batina,
veste o camisolão, ajoelha-se para recitar as orações e bendizer o Senhor que
fizera a tia adivinhar o presente desejado.
Escondera a vara de pesca para
impedir que fosse Peto o primeiro a usá-la, o irmão não tem o menor respeito
pela propriedade alheia, um anarqui sta.
Reza a Salve-Rainha pela saúde da tia, merecedora.
Estende-se na rede. Da alcova, a luz acesa ilumina o corredor em frente ao
gabinete, a tia Antonieta fora ao banheiro. Em lugar de uma velhinha, de uma
avó, uma verdadeira tia, alegre, flamante – e ele a imaginara mais idosa do que
a mãe.
Um absurdo. Ricardo a ouvira dizer a idade a Barbozinha: quarenta e
quatro, meu poeta. Aqui não posso
esconder, todos sabem. Fazem vinte e seis anos que fui embora, acabara de
completar dezoito anos. Em
São Paulo confesso trinta e cinco, pareço mais?
A mãe, ele sabe, diminui a idade. Devota e exigente, não admite mentiras e, no
entanto, na hora de revelar a idade… A verdadeira está na certidão de
casamento, trancada ali na escrivaninha junto com as escrituras das casas, a
patente do pai, a caderneta militar, os louvores nas ordens de serviço.
A tia
não precisa de negar porque é bonita. Bonita não é bem o termo, Ricardo procura
a palavra certa: bonitona. Nela tudo é grande e vistoso. Com que santa se
parece? Com nenhuma das conhecidas, nem Santa Rita de Cássia, nem Santa Rosa de
Lima. Tia Elisa quando melancólica, recorda Santa Maria Madalena. A mãe sempre
de luto é Santa Helena com traje negro de viúva e véu de cinzas.
Mas a força a desprender-se da tia, qual delas a possui?
Apenas chegou e
imediatamente passou a comandar. Por ser rica e generosa, sim, certamente mas
não só por isso. Há algo mais, indefinível, a impressionar Ricardo, a impor-se,
não sabe explicar o que seja. Ele a enxerga cercada por um raio luminoso, como
certos santos. Santa? Pela bondade, pela grandeza de alma, mas ela exibe outros
atributos, carnais.
Humanos, não carnais, palavra maldita, os pecados carnais, pagos com as chamas
do inferno durante a eternidade.
Passos no corredor, é a tia de volta do banheiro. A precedê-la chega o perfume,
o mesmo dos envelopes, desprendendo-se a cada passo, anunciando-lhe a presença
próxima. Ainda bem que o padre confessor lhe disse não haver pecado em perfume
de velha tia. Velha? Madura.
Fruta madura fora a expressão usada por Osnar para classificá-la. Na hora
confusa do desembarque, Cardo achara todo o palavreado de boas-vindas uma falta
de respeito.
Mas agora, ao ouvir os passos da tia, ao sentir-lhe o perfume, a
comparação com uma fruta madura, rica de sumo, na plenitude da força,
parece-lhe correcta, não vê desrespeito, despropósito, pecado. Desrespeito
compará-la com as cabras, isso sim. Osnar não tem salvação.
Antonieta conduz o jarro esmaltado cheio de água. Nas sombras do corredor pisa
a ponta do robe longo, tropeça, vacila, vai cair. Ricardo corre a tempo de
sustê-la e tomar do jarro, levando-o para a alcova.
- Obrigado meu bem. – Com um sorriso gaiato, mede o sobrinho, enorme no
camisolão de dormir: - Você ainda dorme de camisolão?
- No começo do ano, vou passar para a divisão dos maiores e dormir de pijama… -
explica orgulhoso. – Mas mãe só vai comprar quando eu for para o seminário.
Por baixo do penhoar semi – aberto, a curta camisola cor-de-rosa mais revela do
que esconde as graças da tia, Ricardo desvia os olhos, pousa o jarro na argola
do lavatório.
Traga o lavatório para aqui e bote
um pouco de água na bacia – pede Antonieta, sentada ante o espelho da
penteadeira, cremes diversos em sua frente, vidros com líqui dos
coloridos, algodão, um exagero de frascos e potes.
Tia Elisa não tem nem a
metade, a mãe não se pinta desde a morte do pai.
Derrama a água, toma o rumo da porta. A tia observa-lhe os movimentos:
_ Vai embora sem me pedir a bênção?
- A bênção, tia. Deus lhe dê boa noite. – Dobra o joelho: - Obrigado pela vara
de pesca.
- Assim. Não. Aqui perto e com um
beijo.
Cardo beija-lhe a mão, ela toma-lhe o rosto e o beija em cada face. O perfume
sobe dos seios. Mesmo sem querer, Ricardo os vislumbra, ou os adivinha,
sobrando da camisola. Ubre, dissera Osnar.
Deita-se na rede, a luz permanece acesa no quarto da tia a desfazer a maqui agem, entra uma fresta da porta. Ricardo, de sono
fácil – apenas cai na cama e os olhos se fecham – hoje, não consegue adormecer.
Estranha a rede, quem sabe? Confusão igual à do desembarque quando viu a tia na
porta da marinete, o oposto da imagem concebida na hora do anúncio da morte. O
melhor é rezar. Desce da rede, ajoelha-se, cruza as mãos, Padre Nosso que
estais no céu. O pensamento em Deus, louvado seja.