Boaventura Sousa Santos e o Discurso do Papa
O discurso do Papa que tanta polémica e reacção levantaram, especialmente da parte da comunidade islâmica mais radical é, nesta altura, já passado.
A velocidade a que os acontecimentos do mundo se sucedem e o impacto com que são relatados na Comunicação Social promovem uma espécie de voragem que leva a que aquilo que aconteceu ontem, hoje, já pertença à história porque a actualidade da notícia é mais importante do que a qualidade e importância da própria notícia.
Eu mesmo já me tinha referido ao discurso do Papa aqui, neste blog, em 18 de Setembro, quando reproduzi uma história humorística do escritor brasileiro Fernando Sabido, contada pelo jornalista Fonseca Fernandes, que acentuava o direito de expressarmos livremente o nosso pensamento sem o risco de sermos incomodados, ameaçados, perseguidos ou mortos como aconteceu, em represália, com uma infeliz freira num país africano.
Mas volto ao assunto porque durante as minhas férias em Fuengirola, na 1ªquinzena deste mês, li com atenção o Ensaio do reputado sociólogo Boaventura de Sousa Santos no nº708 da Revista Visão, sob o título A Exactidão do Erro, que faz uma abordagem diferente de todas quantas tive oportunidade de ler e ouvir a este propósito.
De uma maneira geral, os comentários foram no sentido de que o Papa tinha feito um discurso na qualidade de Professor esquecendo o seu papel de Sumo Pontífice e que ao escolher a citação do Imperador de Bizâncio teria cometido um erro o qual, de qualquer forma, não teria justificado as violentas reacções do mundo islâmico.
Ora o ponto onde o Papa, no seu discurso, pôs o acento tónico residiu na relação que estabeleceu entre a razão e a fé na Igreja Católica inspirada nos fundamentos da cultura grega que estabelece o primado da razão que não aceita a violência por esta ser irracional.
Por outras palavras, para o Papa, a natureza de Deus é incompatível com a violência que é irracional.
A ideia de Deus não deve ser imposta pelo recurso à violência e se tal aconteceu muitas vezes na história da Igreja de Cristo isso constituiu um desvio, um erro, uma adulteração.
Ao contrário, no Islão, “o serviço de Deus está para além da racionalidade e por isso a violência islâmica não é um desvio, antes é inerente ao próprio Islão.”
Daqui, resulta a inevitável conclusão que entre duas religiões que se distinguem neste aspecto tão importante, a primeira tem que ser considerada superior à segunda.
A ser assim, estamos perante o discurso de um Papa, do líder máximo de uma Igreja que diz ao mundo que a sua religião, da qual ele é o Chefe, é melhor que as outras, neste caso, a Islâmica e não de uma lição de um professor de Teologia a qual, de resto e de acordo com a opinião de Boaventura S. Santos, seria de má qualidade.
E pergunta ele:
“- Porque não referiu o Papa, no seu discurso, o contexto da conversa entre o Imperador e o persa e ocultou o passado beligerante e cruzadista do primeiro?
-Porque não citou outras opiniões contemporâneas contrárias às que proferiu?
- Porque não referiu que em qualquer das religiões abraâmicas há preceitos que podem justificar o recurso à violência assim tendo sucedido em todas elas?”
Logo, o discurso estava certo, o Papa falou como Papa e disse precisamente o que quis dizer.
Boaventura de S. Santos continua depois estabelecendo uma ligação directa entre estas posições do actual Papa e a política dos E.U.A. na luta contra o Islamismo e do seu desejo de uma maior intervenção da Igreja Católica no espaço público trazendo a mensagem cristã para a educação, saúde, política e cultura numa aproximação ao que acontece no regime dos Ayattolas.
Assim, em vez de se defender e pugnar pela modernização do Islão envereda-se por islamizar a modernidade.
E termina Boaventura S. Santos perguntando se é possível ao Ocidente lutar contra o extremismo do Oriente ao mesmo tempo em que reforça o seu.
Para mim, tudo se torna compreensível e lógico quando um movimento de índole religiosa se estrutura, organiza e se hierarquiza transforma-se, automaticamente, numa Estrutura de Poder que, naturalmente, bem ou mal, desta ou daquela maneira, lutará sempre por aumentar a sua influência, implantação, controle sobre os seus seguidores, em suma, o seu poder.
E uma Estrutura de Poder convive sempre mal com outra Estrutura de Poder e ainda mais quando ela lhe é vizinha e afim.
Bem andou o Papa anterior quando procurou estabelecer o mínimo denominador comum entre todas as religiões do mundo lutando pelo incremento da fé e pelo bom relacionamento da sua Igreja com todas as outras em vez de “afirmar” que a sua religião era melhor que as outras.
Num mundo materialista onde a felicidade se procura através de um consumo cego e muitas vezes assumidamente incontrolável, de objectivos efémeros e despidos de qualquer conteúdo e de uma competição feroz e desumana que inevitavelmente conduzem ao vazio, à frustração e à miséria de largas camadas da população mundial, pugnar por valores morais e espirituais e uma convivência fraterna será sempre uma boa estratégia não só para a Igreja Católica como, principalmente, para a humanidade.
Penso, sinceramente, que o homem tem em si próprio qualidade e atributos suficientes para caminhar sozinho na direcção do futuro pela via da racionalidade, do conhecimento e dos valores já hoje reconhecidos e consagrados universalmente.
Aqueles para quem a ideia de Deus corresponde a uma necessidade interior que a vivam no respeito por todos que a não têm ou a têm de uma forma diferente.
A sobrevivência da nossa espécie não está nem nunca esteve garantida, desde o primeiro dia, da primeira hora, se assim se pode dizer e não obstante o nosso efectivo sucesso ou talvez por sua causa, temos a sensação do tremendo perigo que hoje representamos para nós próprios.
Mais do que nunca é hoje que decidimos a viabilidade do nosso futuro e isso obriga a um enorme sentido de responsabilidade que por vezes parece tão afastado daqueles que têm o poder para tomar as decisões mais importantes como sejam a guerra ou a paz.
Os factos que têm feito notícia nos últimos tempos demonstram bem como o nosso futuro é incerto e sê-lo-à tanto mais se não tomarmos consciência disso mesmo e não tivermos, cada um de nós, uma palavra a dizer a esse respeito.