Memórias Futuras
Olhar o futuro pelo espelho retrovisor da história. Qual história? Que futuro?
sábado, janeiro 05, 2013
Se Deus tivesse falado
As palavras são de Baruch Espinoza
-nascido em 1632 em Amsterdão, falecido em Haia em 21 de Fevereiro de 1677, foi
um dos grandes racionalistas do século XVII dentro da chamada Filosofia
Moderna, juntamente com René Descartes e Gottfried Leibniz.
Era de família judaica portuguesa e é considerado o
fundador do criticismo bíblico moderno. Acredite, essas palavras foram ditas em pleno Século XVII.
Continuam verdadeiras e actuais até a data de hoje.
Se Deus Tivesse Falado
- Pára de ficar rezando e batendo no peito!
- O que eu quero que faças é que saias
pelo mundo e desfrutes de tua vida.
- Eu quero que gozes, cantes, te
divirtas e que desfrutes de tudo o que Eu fiz para ti.
- Pára de ir a esses templos lúgubres,
obscuros e frios que tu mesmo construíste e que acreditas ser a minha casa.
- Minha casa está nas montanhas, nos
bosques, nos rios, nos lagos, nas praias. Aí é onde Eu vivo e aí expresso meu
amor por ti.
- Pára de me culpar da tua vida
miserável:
- Eu nunca te disse que há algo mau em
ti ou que eras um pecador, ou que a tua sexualidade fosse algo mau.
- O sexo é um presente que Eu te dei e
com o qual podes expressar teu amor, teu êxtase, tua alegria.
- Assim, não me culpes por tudo o que te
fizeram crer.
- Pára de ficar lendo supostas
escrituras sagradas que nada têm a ver comigo.
- Se não podes me ler num amanhecer,
numa paisagem, no olhar de teus amigos, nos olhos de teu filhinho… - Então não
me encontrarás em nenhum livro!
- Confia em mim e deixa de me pedir. Tu vais me dizer como fazer meu
trabalho?
- Pára de ter tanto medo de mim.
- Eu não te julgo, nem te critico, nem
me irrito, nem te incomodo, nem te castigo.
- Eu sou puro amor.
- Pára de me pedir perdão. Não há nada a
perdoar.
- Se Eu te fiz... Eu te enchi de
paixões, de limitações, de prazeres, de sentimentos, de necessidades, de
incoerências, de livre - arbítrio.
- Como posso te culpar se respondes a
algo que eu pus em ti?
- Como posso te castigar por seres como és, se Eu sou quem te fez?
- Crês que eu poderia criar um lugar para queimar a todos meus filhos que
não se comportem bem, pelo resto da eternidade?
- Que tipo de Deus pode fazer isso?
- Esquece qualquer tipo de mandamento, qualquer tipo de lei;
essas são artimanhas para te manipular, para te controlar, que só
geram culpa em ti.
Respeita teu próximo e não lhe faças o que não queiras para
ti.
- A única coisa que te peço é que
prestes atenção à tua vida,
que teu estado de alerta seja teu guia.
Esta vida não é uma prova, nem um degrau, nem um passo no caminho, nem um
ensaio, nem um prelúdio para o paraíso. Esta vida é a única que há aqui e agora, a única que precisas.
- Eu te fiz absolutamente livre.
- Não há prémios nem castigos.
- Não há pecados nem virtudes.
- Ninguém leva um placar.
- Ninguém leva um registo.
- Tu és absolutamente livre para fazer
da tua vida um céu ou um inferno.
- Não te poderia dizer se há algo depois
desta vida, mas posso te dar um conselho:
- Vive como se não o
houvesse. Como se esta fosse tua única oportunidade de aproveitar, de amar, de
existir.
- Assim, se não há nada, terás
aproveitado da oportunidade que te dei.
- E se houver, tem a
certeza que Eu não vou te perguntar se foste bem comportado ou não.
- Eu vou te perguntar se tu gostaste, se
te divertiste...
-
Do que mais gostaste? O que aprendeste?
- Pára de crer em mim - crer é supor,
adivinhar, imaginar.
- Eu não quero que acredites em mim.
- Pára de louvar-me!
-
Que tipo de Deus idólatra tu acreditas que Eu seja?
- Me aborrece que me louvem.
- Me cansa que agradeçam.
- Tu te sentes grato?
- Demonstra-o cuidando de ti, de tua
saúde, de tuas relações, do mundo.
- Te sentes olhado, surpreendido?...
- Expressa tua alegria! Esse é o jeito de me
louvar.
- Pára de complicar as coisas e de repetir
como papagaio o que te
ensinaram sobre mim.
- A única certeza é que tu estás aqui , que estás vivo, e que este mundo está cheio de
maravilhas.
- Para que precisas de mais milagres?
- Para quê tantas explicações?
- Não me procures fora!
-
Não me acharás.
- Procura-me dentro... aí é que estou,
batendo em ti.
Nota:
Acima de tudo, esta é uma mensagem de amor, de um profundo
humanismo, e constitui uma honra para nós que ela tenha sido escrita por alguém
que fez parte de uma família portuguesa, provavelmente expulsa de
Portugal por reis que governavam a pensar apenas no interesse das suas famílias,
com profundo desprezo pelo povo e apoiados por um clero próximo da demência e
da criminalidade com a sua Inqui sição.
Faltou apenas que estas palavras não
tivessem sido escarrapachadas nas portas de todas as casas de culto por esse mundo
fora.
De quando em vez, alguém, verdadeiramente
iluminado pela inteligência, a coragem e o amor, consegue chegar até nós para
nos “limpar” das baboseiras que nos pregam.
Infelizmente, a tendência da
natureza humana para a crença continua a ser explorada como grande negócio que
é mas, se Espinosa nos pudesse visitar agora, veria que já fizemos grandes
progressos.
A esta distância a sua voz não se
perdeu no deserto e foram caindo cada vez mais fundas e pesadas nas nossas
consciências. As máqui nas da
repressão estão hoje muito mais emperradas do que o eram no tempo em que ele
viveu.
O advento da liberdade e dos
direitos humanos das sociedades actuais, o avanço da tecnologia e da ciência
com a velocidade e facilidade com que as ideias hoje circulam, têm permitido
substituir a crença pela compreensão, a oração pelo pensamento.
Fará bem às dores do peito? |
GABRIELA
CRAVO
E
CANELA
Episódio Nº 182
A não ser quando havia navios em trânsito
no porto, o movimento era pequeno, tanto que só serviam almoço. A gente da
terra habitualmente fazia as refeições em casa. Apenas de
quando em vez, tentados pelos pratos de Gabriela, vinham os homens sós ou com a
família ali almoçar.
Para variar do trivial quotidiano. Fregueses
permanentes contavam-se nos dedos: Mundinho, quase sempre com convidados,
Josué, o viúvo Pessoa. Em compensação, o jogo à noite, na sala do restaurante,
conhecia o maior dos sucessos.
Formavam-se cinco e seis rodas de pocker,
o sete-e-meio, a bisca. Gabriela preparava de tarde salgados e doces, a bebida
corria, Nacib recolhia o barato da casa. A propósito de jogo, Nacib quase
tivera uma crise de consciência: devia ou não considerar Mundinho sócio nessa
parte do negócio?
Certamente não, pois o exportador
entrara com capital para o restaurante e não para a tavolagem. Talvez sim,
reflectia a contragosto, levando-se em conta o aluguer da sala pago pela
sociedade, proprietária também das mesas e cadeiras, dos pratos nos quais também
serviam, nos copos em que bebiam.
Ali o lucro era grande, compensava a
freguesia pouco numerosa e pouco assídua ao almoço. Gostaria Nacib de guardá-lo
todo para si, mas temia represálias do exportador. Decidiu falar-lhe no
assunto.
Mundinho tinha uma simpatia especial
pelo árabe. Costumava afirmar, após as complicações matrimoniais de seu actual
sócio, ser Nacib o homem mais civilizado de Ilhéus.
Aparentando grande concentração,
escutou-o expondo o problema. Nacib desejava saber a opinião do exportador:
considerava-se ele sócio ou não do jogo?
-
E qual é a sua opinião, mestre Nacib?
-
Veja o senhor, seu Mundinho… - Enrolava a ponta dos bigodes – Pensando como
homem de direito acho que o senhor é sócio, deve ter metade dos lucros como tem
no restaurante. Pensando como grapiúna podia dizer que não há papel assinado,
que o senhor é homem rico, não precisa disso.
Que a gente nunca falou no jogo, que eu
sou pobre, tou juntando um dinheirinho para comprar uma rocinha de cacau, essa
renda extra me serve muito. Mas como diria o coronel Ramiro, compromisso é
compromisso mesmo quando não está no papel. Trouxe as contas do jogo para o
senhor examinar…
Ia colocar uns papéis em cima da mesa de
Mundinho. O exportador afastou-lhe a mão, bateu-lhe no ombro.
-
Guarde as suas contas e o seu dinheiro, mestre Nacib. No jogo não sou sócio. Se
qui ser ficar absolutamente tranqui lo com a sua consciência, pague-me um pequeno
aluguer pela utilização da sala à noite. Quaisquer cem mil réis. Ou melhor: dê
cem mil réis por mês para a construção do asilo de velhos.
Onde já se viu um deputado federal ter
casa de jogo? A não ser que você duvide da minha eleição… Não há coisa mais
certa no mundo. Obrigado, seu Nacib. Sou seu devedor.
Levantava-se para sair, Mundinho lhe
perguntou:
-
Diga-me uma coisa… - E baixando a voz, tocando com o dedo no peito do árabe –
Ainda dói?
Sorriu Nacib, a face resplandecente:
-
Não, senhor. Nem mais um pingo…
Baixou Mundinho a cabeça, murmurou:
-
Eu lhe invejo. Em mim ainda dói.
sexta-feira, janeiro 04, 2013
"Resolvido" mais um conflito é hora de descansar... |
Bonobos e Chimpanzés
Para quem não saiba, uns e outros, são
animais diferentes. Nos estudos aprofundados a que têm sido sujeitos nos seus
habitats naturais, estes primatas das florestas do Congo, nossos parentes mais
próximos, revelam comportamentos diferentes.
Ao contrário dos chimpanzés, que exibem
mais comportamentos agressivos, sobretudo quando se trata de grupos diferentes,
os bonobos são conhecidos pelos seus comportamentos de tolerância intra e
intergrupais.
As suas comunidades são lideradas por fêmeas
(nas de chimpanzés são os machos) e há observações de cooperação entre fêmeas
de comunidades diferentes, por exemplo para recolher alimento, algo que não
acontece com os chimpanzés.
A prática sexual é usada nesta espécie
na resolução de conflitos numa demonstração em concreto do slogan dos anos
sessenta, dos hippies: «Não faças guerra, faz amor.»
A liderança das fêmeas nos bonobos é a
responsável por esta mudança de estratégia no relacionamento dos seus membros,
aparentemente, por elas se preocuparem mais com a preservação da paz e da
própria vida no seio do grupo do que os chimpanzés machos que lideram os grupos com
base no medo e na violência.
A proximidade evolucionária entre
homens, chimpanzés e bonobos, faz-nos pensar se as sociedades humanas nos colocam
mais próximos dos primeiros do que dos segundos.
Embora, se conheçam comportamentos de
grande altruísmo a nível individual e colectivo, não é menos verdade que a
agressividade, violência e desprezo pela vida do próximo, especialmente durante
as guerras, parece fazer crer que estamos mais próximos dos violentos e agressivos
chimpanzés do que dos tolerantes e sensuais bonobos.
Será assim por causa da liderança
pertencer, nuns casos aos machos e noutros às fêmeas?
Entre nós, parece que durante o
paleolítico, as nossas comunidades eram lideradas pelas mulheres. Elas tinham
maior intervenção na criação e sobrevivência dos filhos e com a ajuda destes, traziam
para a aldeia mais alimentos do que os homens. Isto mesmo está comprovado pela
análise dos restos dos locais onde viviam.
A ideia de que o essencial na
alimentação eram os animais caçados pelos homens e trazidos ás costas para a
aldeia é um estereótipo que não corresponde à verdade. Frutos, raízes, tubérculos, vegetais, ovos, pequenos animais, cerca de setenta por cento do que se comia, era da responsabilidade das mulheres. com a ajuda dos filhos.
As primeiras estatuetas encontradas foram de
mulheres, estatuetas de Vénus em representação da deusa Mãe de há 40.000 anos.
A passagem destas sociedades a
patriarcais deu-se com a progressiva sedentarização, o advento da propriedade,
das disputas territoriais, controle de excedentes, guerras de conqui sta, dos exércitos, dos impérios e da maior
importância dos homens neste novo contexto.
Eles “apareceram” para fazer a
guerra e por causa da guerra.
Esperemos que os bonobos se mantenham
fiéis a si próprios e continuem, debaixo da batuta das fêmeas, a fazerem amor
para resolverem entre si os conflitos.
Azulejos de Eduardo Nery no Campo Grande em Lisboa |
GABRIELA
CRAVO
E
CANELA
Episódio Nº 181
Do passeio do bar Vesúvio,
Nacib viu os rebocadores, como pequenos galos de briga, cortando as águas do
mar, arrastando as dragas, no caminho do Sul.
Quanta coisa se passara em
Ilhéus entre a chegada e a partida dos engenheiros e escafandristas, dos
técnicos e marinheiros… O velho coronel Ramiro Bastos não veria os grandes
navios entrarem no porto. Andava aparecendo nas sessões espíritas, virara
missionário após desencarnar, dava conselhos ao povo da zona, pregava a
bondade, o perdão, a paciência.
Assim pelo menos afirmava
Dª. Arminda, competente em matéria tão discutida e misteriosa. Ilhéus mudara
muito nesse tempo curto de meses e longo de acontecimentos. Cada dia uma
novidade, uma nova agência de Banco, novos escritórios de representações de
firmas do Sul e até do estrangeiro, lojas, residências.
Há poucos dias no Unhão,
num velho sobrado, instalara-se a União de Artistas e Operários, com seu Liceu
de Artes e Ofícios, onde estudavam rapazes pobres aprendendo a arte de
carpinteiro, pedreiro, sapateiro, com escola primária para adultos, destinada
aos carregadores do porto, ensacadores de cacau, operários da fábrica de
chocolate.
O sapateiro Felipe falara
na instalação, à qual compareceram as pessoas mais gradas de Ilhéus. Exclamara
numa mistura de português e espanhol ser chegado o tempo dos trabalhadores, nas
suas mãos estava o destino do mundo.
Tão absurda parecia a
afirmação que todos os presentes a aplaudiram automaticamente, mesmo o Dr. Maurício
Caíres, mesmo os coronéis do cacau, donos de imensas extensões de terras e da
vida dos homens sobre a terra curvados.
Também a existência de
Nacib fora movimentada e plena nesses meses: casara e descasara, conhecera a
prosperidade e temera a ruína, teve o peito cheio de ânsia e alegria, depois
vazio de vida, só o desespero e a dor.
Fora feliz de mais,
infeliz de mais, agora novamente tudo tranqui lo
e doce. Retomara o bar o seu ritmo antigo, dos primeiros tempos de Gabriela:
demoravam-se os fregueses na hora do aperitivo, tomando mais um cálice, alguns
subiam para almoçar no restaurante.
Prosperava o Vesúvio,
Gabriela descia ao meio-dia da cozinha no andar de cima e passava entre as
mesas a sorrir, a rosa atrás da orelha. Diziam-lhe graçolas, laçavam-lhe
olhares de cobiça, tocavam-lhe a mão, um mais ousado dava-lhe um tapa nas
ancas, o Doutor lhe chamava de «minha menina».
Louvavam a sabedoria de
Nacib, a maneira como soubera sair, com honra e proveito, do labirinto de
complicações em que se envolvera. O árabe circulava entre as mesas, detendo-se
a ouvir e a conversar, sentando-se com João Fulgêncio e o Capitão, com Nhô-Galo
e Josué, com Ribeirinho e Amâncio Leal.
Era como se, por um
milagre de São Jorge, houvessem recuado no tempo, como se nada de errado e
triste tivesse acontecido.
A ilusão seria perfeita não
fosse o restaurante e a ausência de Tonico Bastos definitivamente ancorado no
Pinga de Ouro, com seu amargo e suas polainas de conqui stador.
O restaurante revelava-se
apenas razoável emprego de capital, dando lucro certo, porém modesto. Não o negócio
excepcional imaginado por Nacib e Mundinho.
quinta-feira, janeiro 03, 2013
Móvel do Ikea |
Crónica fabulosa de
Ricardo de Araújo Pereira!
Não digo que os móveis do IKEA não sejam baratos. O que digo é que não são móveis. Na altura em que os compramos, são um puzzle. A questão, portanto, é saber se o IKEA vende móveis baratos ou puzzles caros. Os problemas dos clientes do IKEA começam no nome da loja.
Diz-se «Iqueia» ou «I quê à»? E é «o» IKEA ou «a» IKEA»?
São ambiguidades que me deixam indisposto. Não saber a pronúncia correcta do nome da loja em que me encontro inqui eta-me.
E desconhecer o género a que pertence gera em mim uma insegurança que me inferioriza perante os funcionários. Receio que eles percebam, pelo meu comportamento, que julgo estar no «I quê à», quando, para eles, é evidente que estou na «Iqueia».
As dificuldades, porém, não são apenas semânticas mas também conceptuais.
Toda a gente está convencida de que o IKEA vende móveis baratos, o que não é exactamente verdadeiro. O IKEA vende pilhas de tábuas e molhos de parafusos que, se tudo correr bem e Deus ajudar, depois de algum esforço hão-de transformar-se em móveis baratos. É uma espécie de Lego
para adultos.
Há dias, comprei no IKEA um móvel chamado Besta. Achei que combinava bem com a minha personalidade. Todo o material de que eu precisava e que tinha de levar até à caixa de pagamento pesava seiscentos qui los.
Percebi melhor o nome do móvel. É preciso vir ao IKEA com uma besta de carga para carregar a tralha toda até à registadora.
Este é um dos meus conselhos aos clientes do IKEA: não vá para lá sem duas ou três mulas. Eu alombei com a meia tonelada.
O que poupei nos móveis, gastei no ortopedista. Neste momento, tenho doze estantes e três hérnias. É claro que há aspectos positivos: as tábuas já vêm cortadas, o que é melhor do que nada. O IKEA não obriga os clientes a irem para a floresta cortar as árvores, embora por vezes se sinta que não faltará muito para que isso aconteça.
Num futuro próximo, é possível que, ao comprar um móvel, o cliente receba um machado, um serrote e um mapa de determinado bosque na Suécia onde o IKEA tem dois ou três carvalhos debaixo de olho que considera terem potencial para se transformarem numa mesa-de-cabeceira engraçada.
A equi pa que trouxe a primeira
parte já não estava lá para montar a segunda, e a equi pa que trouxe
a segunda recusou-se a mexer no trabalho que tinha sido iniciado pela primeira.
Resultado: o cliente pagou dois transportes e duas montagens e ficou com um móvel incompleto. Se fosse um cliente qualquer, eu não me importaria. Mas como sou eu, aborrece-me um bocadinho. Numa loja que vende tudo às peças (que, por acaso, até encaixam bem umas nas outras) acaba por ser irónico que o serviço de transporte não encaixe bem no serviço de montagem. Idiossincrasias do comércio moderno. Que fazer,então? Cada cliente terá o seu modo de reagir. O meu é este: para a próxima, pago com um cheque todo cortado aos bocadinhos e junto um rolo de fita gomada e um livro de instruções. Entrego metade dos confetti num dia e a outra metade no outro.
E os suecos que montem tudo, se qui serem
receber.
E já agora sobre o IKEA:
- Uma senhora vai ao Ikea comprar um armário novo. Para que lhe saia mais barato, compra um
Nesse momento passa o comboio (ela mora junto à estação de comboios) e o armário desmonta-se todo.
Monta novamente o armário. E este volta a cair com o passar do comboio. À terceira tentativa falhada, telefona para a Ikea e exige a presença de um técnico.
O técnico chega, monta o armário e, quando passa o comboio, desmonta-se todo. O técnico monta novamente o armário, passa outro comboio e, armário novamente desmontado. Então, o técnico tem uma brilhante ideia:
- Escute, minha senhora, eu vou montar novamente o armário, meto-me lá dentro e espero que passe o comboio para ver porque é que o armário se estás desmontar. E assim fez.
Nisto o marido entra no quarto e diz:
- Querida, que armário tão bonito! - E abre a porta. Ao ver o técnico da Ikea pergunta:
- O que é que você faz aí?
Este responde:
- Estou quase tentado a dizer-lhe que vim comer a sua mulher. Porque, se lhe digo que estou à espera do comboio, o senhor não vai acreditar.
O cacau pode já ser carregados directamente para o seu destino |
GABRIELA
CRAVO
E
CANELA
Episódio Nº 180
Chão de Gabriela
Diversas vezes retardados,
terminaram por fim, os trabalhos da barra. Um novo canal, profundo e sem
desvios, fora estabelecido. Por ele podiam passar sem perigo de encalhe os
navios Lloyd, do Ita, da Baiana e, sobretudo, podiam entrar no porto de Ilhéus
os grandes cargueiros para receber directamente ali os sacos de cacau.
Como explicou o
engenheiro-chefe, a demora na conclusão das obras deveu-se a inúmeras
dificuldades e entraves. Não se referia aos barulhos cercando a chegada dos
rebocadores e técnicos, àquela noite de tiros e garrafadas no cabaré, às
ameaças de morte iniciais.
Aludia às inconstantes
areias da barra: com as marés, os ventos, os temporais, moviam-se elas, mudavam
o fundo das águas, cobriam e destruíam em poucas horas o trabalho de semanas.
Era preciso começar e recomeçar, pacientemente, mudando vinte vezes o traçado
do canal, buscando os pontos mais defendidos.
Chegaram os técnicos, em
determinado momento, a duvidar do sucesso, tomados de desânimo, enquanto a
gente mais pessimista da cidade repetia argumentos da campanha eleitoral: a
barra de Ilhéus era um problema insolúvel, não tinha jeito.
Partiram rebocadores e
dragas, os engenheiros e os técnicos. Uma das dragas ficou permanente no porto
para atender com presteza às movimentadas areias, para manter o canal aberto à
navegação de maior calado.
Uma grande festa de
despedida, cachaçada monumental, iniciando-se no Restaurante do Comércio,
terminando no Eldorado, celebrou o feito dos engenheiros, sua pertinácia, sua
capacidade profissional.
O Doutor esteve à altura
da sua fama no discurso de saudação, em que comparou o engenheiro – chefe a
Napoleão mas «um Napoleão das batalhas da paz e do progresso, vencedor do mar
aparentemente indomável, do rio traiçoeiro das areias inimigas da civilização,
dos ventos tenebrosos», podendo contemplar com orgulho, do alto do farol da
ilha de Pernambuco o porto de Ilhéus por ele «libertado da escravidão da barra,
aberto a todas as bandeiras, a todos os navios, pela inteligência e dedicação
dos nobres engenheiros e competentes técnicos».
Deixavam saudades e
raparigas. No cais de despedidas, choravam mulheres dos morros, abraçando os
marinheiros. Uma delas estava grávida. O homem prometia voltar. O engenheiro-chefe
levava preciosa carga da boa «Cana de Ilhéus», além de um macaco jupará para
recordar-lhe no Rio essa terra de dinheiro farto e fácil, de valentias e duro
trabalho.
Partindo eles quando
começavam as chuvas, pontuais naquele ano, caindo bem antes da festa de São
Jorge. Nas roças floriam os cacaueiros, milhares de árvores jovens davam os
seus primeiros frutos, anunciava-se ainda maior a nova safra, subiriam ainda
mais os preços, aumentaria o dinheiro a correr nas cidades e povoados, não
havia lavoura igual em todo o país.
quarta-feira, janeiro 02, 2013
Bom Ano de 2013, "meu irmão" |
Começou
hoje, a sério, o novo ano de 2013. Findos os discursos e arrumadas as festas
até daqui a um ano porque, como é hábito, com razão ou sem ela, se a tradição
manda festejar lá estamos todos, abraçados e aos beijos, findas as badaladas, a
desejar um Bom Ano.
E tantas são
as festas que ficamos sem saber se alegria é por nos vermos livres do ano velho
ou por anteciparmos as coisas boas que o ano novo nos vai trazer.
Toda a gente
parecia temer o 2013 mas a alegria com que se comemorou a sua entrada foi a
mesma de todos os anos: uma alegria genuína, sincera, tal como os votos e os
desejos quando as pessoas se beijam e abraçam. Pudéssemos todos, fixar em nós,
os sentimentos desses instantes e a vida seria muito mais agradável e o mundo
das relações um autêntico mar de rosas.
Em 31 de Dezembro de 1995 fui abraçado, na praia de Copacabana,
estavam ainda no ar as badaladas da meia-noite, por um "irmão brasileiro" que, todo de branco, uma camisa impecável, me pôs na mão uma taça com champanhe e me abraçou como se fosse mesmo irmão.
A surpresa daquele gesto, vindo de um desconhecido, nunca me fará esquecê-lo.
Para ti, "meu irmão", dezassete anos depois, um Bom Ano de 2013!
JESUS - Espere um momento, Raquel, que quero conversar
com aquela senhora que vende umas sandálias de couro bom. As minhas já estão
gastas de tanto ir e vir nestes dias.
RAQUEL - Deixe isso para outro momento,
Jesus Cristo… Acabamos de receber um protesto violento de um canal
católico... Vem de um programa intitulado Lendas Negras…
JESUS - Lendas negras?
RAQUEL- Sim, é um termo racista, mas…
JESUS - Tem algo a ver comigo por eu ser
moreno?
RAQUEL- Não, não, é que… Melhor que eu explique depois.
JESUS - E o que dizem esses católicos?
RAQUEL - Que tudo o que difundimos nos últimos programas, e nos primeiros também,
é infundado, uma infâmia, uma calúnia dos inimigos da Igreja. Já estamos no
ar?... Sim, alô?
SENHORA - Mas, como é possível que esse charlatão, que se faz
passar por Jesus Cristo, continue falando na sua emissora?
RAQUEL - Bom, senhora…
SENHORA - E você, senhorita jornalista, quanto estão lhe
pagando, hein? E aos que escrevem os programas?
RAQUEL- O que acontece é que…
SENHORA - Uns ressentidos contra a Igreja. Já averiguamos
quem são, os mesmos que escreveram a balela de Um Tal Jesus. Mas tenham
certeza, não se sairão bem dessa!
RAQUEL - Nota-se que a senhora é muito “cristã”.
Outra ligação… Sim, diga-me?
SACERDOTE - É um sacerdote católico que lhe fala. Muitas
das coisas que vocês disseram e denunciaram, eu já conhecia e concordo com
vocês. Mas me parecem… inoportunas. O que vocês procuram trazendo tudo isto à
tona? O que querem? Sujar a Igreja? Estão contribuindo com algo à fé do povo?
Isso é uma crítica construtiva?
JESUS - Diga-lhe que há um tempo para plantar e outro para colher.
SACERDOTE - Que a Igreja
é pecadora? Já sabíamos. Mas também é santa. “Casta meretrix”. Que a Igreja
cometeu erros?... Sim, claro, que instituição não os comete? Mas roupa suja
se lava em casa.
JESUS - Diga-lhe que se são sujos, se lavam à vista de todos. O que se manteve
na obscuridade tem que ser dito à luz do dia. Porque só a verdade nos faz livres.
SACERDOTE - Enfim, rezarei por vocês. Que Deus os perdoe.
Também a esse Jesus Cristo.
JESUS - Assim seja.
RAQUEL - Temos outra ligação. Mas agora
responda o senhor mesmo, porque já estou com as orelhas quentes…
AVÓ - Bom dia. Eu queria falar com Jesus Cristo.
JESUS - Pois está falando com ele.
AVÓ - O senhor é Jesus Cristo?
JESUS E a senhora deve ter já seus tantos
anos, verdade?
AVÓ - 87 anos, filho. E me doem todos os ossos.
JESUS - A senhora fala como minha avó Ana, que descansa em paz.
AVÓ - Eu não liguei para insultar,
Jesus Cristo, mas para chorar.
JESUS - E por que quer chorar, avó?
AVÓ - Eu tenho lhe ouvido, rapaz e… e creio
que tem razão. O que diz é a pura verdade. Mas não me deu paz, me deu a
espada. Meu coração está cortado.
JESUS - Como o de minha mãe, quando fui ao
Jordão e comecei a proclamar o Reino de Deus.
AVÓ - Eu vivia tranquila com meu rosário
e meus santos e minhas velas… E agora, lhe ouvindo, já não sei nem o que
pensar…
JESUS - É que pensar dói.
AVÓ - E minha fé, o que resta agora de minha fé
depois de saber estas coisas?
JESUS - Resta-lhe o amor, vó. E a esperança. Deus não falhará contigo. Ele não
me faltou. Na verdade lhe digo que quando a senhora descansar estará comigo
no paraíso.
RAQUEL - Temos que cortar a comunicação,
Jesus Cristo. Adeus, avó. Estão nos procurando, Jesus Cristo. A polícia
israelita diz que o senhor é um perigo para a segurança nacional.
JESUS - Pois sacudamos as sandálias,
Raquel. Em Jerusalém matam os profetas. O digo por experiência. Melhor irmos
para a minha terra, a Galiléia. Ali podemos continuar conversando no pouco
tempo que me resta.
RAQUEL - Como? Já vai?
JESUS - Em breve, Raquel. Já está na hora.
RAQUEL - Pois eu também vou embora, mas do ar. Cambio
e desligo. Raquel Pérez, Emissoras Latinas, Jerusalém.
|
GABRIELA
CRAVO
E
CANELA
Episódio Nº 179
- E então? O único erro em toda esta história
foi você ter casado com ela. Foi ruim para você, pior para ela. Você quer, eu
falo com ela.
- Será que aceita?
- Garanto que aceita.
Vou agora mesmo.
- Diga que é só por uns
tempos…
- Porquê? É uma
cozinheira, você a empregará enquanto ela lhe servir bem. Porquê uns tempos?
Volto já com a
resposta.
Foi assim que nessa
mesma noite, nadando em alegria, Gabriela limpou e ocupou o quartinho dos
fundos. Antes agradecera a Sete Voltas em casa de Dora.
Da janela de Nacib
abanara o lenço quando, depois das seis da tarde, o Canavieiras atravessou a
barra e rumou para a Baía.
No outro dia, na hora
de almoço, os convidados, mais de cinquenta, encontraram de novo os pratos de
todo sabor, a comida sem igual, o tempero entre o sublime e o divino.
Na mesa, os pratos
sucederam-se num desfile de maravilhas. Nacib, sentado entre Mundinho e o Juiz
de Direito, ouviu comovido, os discursos do Capitão e do Doutor.
“Benemérito filho de
Ilhéus” dissera o Capitão, devotado ao progresso da sua terra. «Digno cidadão
Nacib Saad, dotando Ilhéus de um restaurante à altura das grandes capitais»
louvara o Doutor. Josué respondeu em nome de Nacib, agradecendo e elogiando,
ele também, o árabe. Era uma consagração, culminando com as palavras de
Mundinho, desejoso, como disse, de “dar a mão à palmatória”.
Fizera vir cozinheiro
do Rio, Nacib fora contra. Tinha razão. Não havia no mundo comida capaz de
comparar-se com essa da Baía.
E então todos quiseram
ver o artista daquele almoço, as mãos de fada criadoras de tais gostosuras.
João Fulgêncio levantou-se, foi buscá-la na cozinha. Ela apareceu sorrindo,
calçada em chinelas, um avental branco sobre o vestido de fustão azul, uma rosa
rubra atrás da orelha.
O Juiz gritou:
«Gabriela!» Nacib anunciou em voz alta:
- Contratei outra vez
de cozinheira…
Josué bateu palmas, Nhô
Galo também, todos aplaudiram, alguns levantaram-se para cumprimentá-la. Ela
sorriu, os olhos baixos, uma fita amarrada nos cabelos.
Mundinho Falcão
murmurou para Aristóteles a seu lado:
- Esse turco é um
mestre do bom viver…