sábado, novembro 10, 2012

A todos os sportinguistas que nesta hora sofrem como eu. O Paulo Bento, já em 2006, aquando desta entrevista, tinha razão: o que falta ao Sporting  é tranquilidade. Por vezes até parece que a bola lhes queima os pés...

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Miséria ou uma forma diferente de viver?...


Não há melhor como levar as coisas com boa disposição, também, não remediava nada...


Ainda Precisamos dos EUA


O que ainda hoje sobra de ordem e de arranjos institucionais neste mundo de anarquia podre ficou a dever-se ao trabalho dos presidentes F. D. Roosevelt e Truman na fundação e fortalecimento das Nações Unidas.

Apesar de em 1945 os EUA deterem 50% do PIB mundial, Washington escolheu o caminho da cooperação, em vez da via da arrogância. Mais ainda, embora entre 1945 – 49 os EUA tivessem gozado do monopólio da arma atómica, a Casa Branca respondeu sempre com moderação às provocações constantes de Estaline, nomeadamente no bloqueio de Berlim (1948-1949).

Para Eduardo Lourenço, «não há exemplo na história humana, de semelhante autocontrole e auto-limitação de poderio na relação entre os povos».

Se hoje a Alemanha e o Japão são grandes potencias económicas, isso ficou a dever-se ao facto de terem sido os EUA (e não só a Rússia ou a Grã-Bretanha) a imporem as condições em que os derrotados iriam retornar à condição de potências civilizadas num quadro de normalidade internacional.

Em vez de pesadas indemnizações de guerra, os EUA ofereceram aos derrotados apoio económico e constituições democráticas. As condições do Plano Marshall, em 1947, são muito mais favoráveis do que as exigências contidas nos memorandos impostos pela troika á Grécia, à Irlanda e a Portugal.

O leitor já deve saber quem ganhou as eleições nos EUA, na altura em que ler estas palavras. O apoio da opinião pública mundial a Barack Obama, deveu-se, muitas vezes de modo confuso, á consciência de que apesar de todos os limites, insuficiências e desilusões (em particular nas áreas do ambiente, clima e energia) da sua presidência, Obama estará em melhores condições do que Romney para assegurar que, na passagem para um mundo «mundo pós-americano» e multipolar, os EUA não deixarão de usar as instituições, a diplomacia e o “soft power” para tornar este planeta onde todos nos acotovelamos perigosamente, num sítio um pouco mais habitável.

Para nós, portugueses e europeus, a vitória de Romney teria sido (espero não me enganar no tempo do verbo) mais um factor de angústia. Com Romney, a estúpida estratégia da austeridade que domina a Europa, estender-se-ia aos EUA, lançando o planeta inteiro num inverno de pobreza e desigualdade.

Os últimos anos ensinaram-nos que a «pulsão de morte», descoberta por Freud nas profundezas da condição humana, também existe nas nações. Na Europa ela tem em Angel Merkel o seu rosto. Nos EUA, a sua face é Mitt Romney.

Só espero que os eleitores americanos tenham escolhido a «pulsão da vida».

Victor Soromenho Marques
(Prof. Catedrático da Fac. de Letras de Lisboa)

P.SSoromenho Marques arriscou neste artigo, de que este trecho é a parte final, a vitória de Obama. Como sabem, eu congratulo-me bastante que ele não se tenha enganado.
 Mesmo com os poderosos milionários reaccionários, (há excepções) representados na Câmara dos Representantes contra si, não tenho dúvidas que o mundo fica menos perigoso com Obama. Ainda não esquecemos o negócio que foi a guerra do Iraque.

O Blusão Infeliz


Lamento que o blusão que enviei à tua mulher lhe tenha ficado grande. No fundo, ela limita-se a seguir o padrão da mulher portuguesa de acordo com o qual a “mulher e a sardinha querem-se miudinhas”e, portanto, bem-haja ela que cumpre este requisito que às mulheres do nosso país diz respeito e sorte para ti que a podes abraçar com aquele amplexo de carinho e protecção, para já não falar de como seria deprimente teres de beijá-la em bicos de pés.


No que a ti se refere, é certo não seres muito grande mas és bem constituído, quero dizer, não tens físico de “fuinha”, e daí os tais centímetros a menos no Blusão e, como ele não vai alargar nem encolher, resta à tua mulher ganhar físico ou tu perderes “cabedal” o que não é provável, nem uma coisa nem outra.

Ficamos, assim, com o problema de um blusão triste que não tem dono nem dona e quando, lá de longe em longe, o vestires por uma questão de piedade, ele vai sentir que está a menos no teu corpo e, por isso, não vai poder agradar-te o que irá constituir para ele mais um motivo de tristeza porque os blusões, mais do que qualquer outra peça de roupa, como tu bem sabes e se pode ver pela imagem ao lado, existem para agradar aos donos.

Esta situação de desajustamento das peças de roupa ao nosso corpo tem sido, para mim, desesperante, não com blusões, felizmente, mas com calças que não têm, como é óbvio, a dignidade dos blusões.

Como sabes, porque tens olhinhos na cara, eu tenho um problema de cintura, a falar verdade, não tenho cintura, porque cintura ao fundo da barriga não é cintura, é apenas o local onde ainda se consegue apertar o cinto.

Então, quando ao fim de uma daquelas lutas que por vezes travo para emagrecer, perco uns centímetros, a primeira coisa que fazia era comprar calças de acordo com a minha nova silhueta e ver-me ao espelho com aquela “ameaça” de cintura… ficava feliz!

Depois, meses mais tarde, a “ameaça” desaparecia e eu ficava com um guarda -fato cheio de calças que não me serviam para nada.

Sobrevivia, então, o desespero e a resignação para além do prejuízo, é claro.

Agora, adoptei a estratégia inversa. Só compro calças quando estou mais gordo e se consigo voltar a perder uns "quilitos" desabafo logo com a minha mulher enquanto, com orgulho, seguro as calças na linha da cintura:  - “... estás a ver aqui, olha como estou magro!” e volto de novo a sentir-me feliz sem ter ficado com o guarda-roupa cheio de calças inúteis.

As estratégias a que as pessoas deitam mão para tentarem caber dentro da roupa... e o pobre do blusão que não conseguiu fazer nenhum de nós felizes, sim, porque um bom blusão não é tanto para resguardar do frio como  para satisfazer a nossa vaidade, que já foi só de homens e que hoje é de mulheres também.

sexta-feira, novembro 09, 2012

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Vá, não custa nada. Aqui ainda poupa...



"Os Pobrezinhos"



Na minha família os animais domésticos não eram cães nem gatos nem pássaros; na minha família os animais domésticos eram pobres. Cada uma das minhas tias tinha o seu pobre, pessoal e intransmissível, que vinha a casa dos meus avós uma vez por semana buscar, com um sorriso agradecido, a ração de roupa e comida.

Os pobres, para além de serem obviamente pobres (de preferência descalços, para poderem ser calçados pelos donos; de preferência rotos, para poderem vestir camisas velhas que se salvavam, desse modo, de um destino natural de esfregões; de preferência doentes a fim de receberem uma embalagem de aspirina), deviam possuir outras características imprescindíveis: irem à missa, baptizarem os filhos, não andarem bêbedos, e sobretudo, manterem-se orgulhosamente fiéis a quem pertenciam. Parece que ainda estou a ver um homem de sumptuosos farrapos, parecido com o Tolstoi até na barba, responder, ofendido e soberbo, a uma prima distraída que insistia em oferecer-lhe uma camisola que nenhum de nós queria:

- Eu não sou o seu pobre; eu sou o pobre da minha Teresinha.

O plural de pobre não era «pobres». O plural de pobre era «esta gente». No Natal e na Páscoa as tias reuniam-se em bando, armadas de fatias de bolo-rei, saquinhos de amêndoas e outras delícias equivalentes, e deslocavam-se piedosamente ao sítio onde os seus animais domésticos habitavam, isto é, uma bairro de casas de madeira da periferia de Benfica, nas Pedralvas e junto à Estrada Militar, a fim de distribuírem, numa pompa de reis magos, peúgas de lã, cuecas, sandálias que não serviam a ninguém, pagelas de Nossa Senhora de Fátima e outras maravilhas de igual calibre. Os pobres surgiam das suas barracas, alvoraçados e gratos, e as minhas tias preveniam-me logo, enxotando-os com as costas da mão:

- Não se chegue muito que esta gente tem piolhos.

Nessas alturas, e só nessas alturas, era permitido oferecer aos pobres, presente sempre perigoso por correr o risco de ser gasto - esta gente, coitada, não tem noção do dinheiro... de forma de deletéria e irresponsável.

O pobre da minha tia Carlota, por exemplo, foi proibido de entrar na casa dos meus avós porque, quando ela lhe meteu dez tostões na palma recomendando, maternal, preocupada com a saúde do seu animal doméstico:

- Agora veja lá, não gaste tudo em vinho

o atrevido lhe respondeu, malcriadíssimo:

- Não, minha senhora, vou comprar um Alfa-Romeo

Os filhos dos pobres definiam-se por não irem à escola, serem magrinhos e morrerem muito. Ao perguntar as razões destas características insólitas foi-me dito com um encolher de ombros

- O que é que o menino quer, esta gente é assim e eu entendi que ser pobre, mais do que um destino, era uma espécie de vocação, como ter jeito para jogar bridge ou para tocar piano.

Ao amor dos pobres presidiam duas criaturas do oratório da minha avó, uma em barro e outra em fotografia, que eram o padre Cruz e a Sãozinha, as quais dirigiam a caridade sob um crucifixo de mogno. O padre Cruz era um sujeito chupado, de batina, e a Sãozinha uma jovem cheia de medalhas, com um sorriso alcoviteiro de actriz de cinema das pastilhas elásticas, que me informaram ter oferecido exemplarmente a vida a Deus em troca da saúde dos pais. A actriz bateu a bota, o pai ficou óptimo e, a partir da altura em que revelaram este milagre, tremia de pânico que a minha mãe, espirrando, me ordenasse:

- Ora ofereça lá a vida que estou farta de me assoar e eu fosse direitinho para o cemitério a fim de ela não ter de beber chás de limão.

Na minha ideia o padre Cruz e a Saõzinha eram casados, tanto mais que num boletim que a minha família assinava, chamado «Almanaque da Sãozinha», se narravam, em comunhão de bens, os milagres de ambos que consistiam geralmente em curas de paralíticos e vigésimos premiados, milagres inacreditavelmente acompanhados de odores dulcíssimos a incenso.

Tanto pobre, tanta Sãozinha e tanto cheiro irritavam-me. E creio que foi por essa época que principiei a olhar, com afecto crescente, uma gravura poeirenta atirada para o sótão que mostrava uma jubilosa multidão de pobres em torno da guilhotina onde cortavam a cabeça aos reis"

António Lobo Antunes (Livro de Crónicas)



ENTREVISTA FICCIONADA
COM JESUS Nº 84 SOBRE O TEMA:
“JUDAS O TRAIDOR


RAQUEL -  Já temos contacto com a National Geographic? Vamos mantê-los na linha... Amigas e amigos de Emissoras Latinas, novamente com vocês em Jerusalém e nesta Sexta-Feira Santa. Desculpe, Jesus Cristo, hoje vamos falar com gente de uma revista muito séria que realizou um achado surpreendente. Passo-lhe a ligação?

JESUS - Sim, Raquel. Do que se trata?

RAQUEL -  Não, escute eles.

N.G. -  Talvez o senhor, Jesus Cristo, como esteve fora por quase dois mil anos, não esteja a par das últimas descobertas bíblicas. Referimo-nos ao evangelho de Judas.

JESUS -  De qual Judas? Do meu amigo Judas?

N.G. -  Precisamente, nesse evangelho, Judas aparece como seu grande amigo.

JESUS -  Na verdade foi meu amigo, sim, um grande companheiro.

RAQUEL -  Seria seu amigo, mas o traiu.

JESUS -  Prefiro pensar que se confundiu e...

N. G. - O que agora sabemos é que Judas fez ao senhor um grande favor.

JESUS -  Um grande favor? Que favor? Não entendo.

N.G. -  Segundo o evangelho de Judas, o senhor pediu ao seu amigo que o libertasse do corpo. Como o senhor acreditava que o corpo era o cárcere da alma, ao morrer na cruz, sua alma divina ficava livre para subir aos céus e encontrar Deus.

JESUS -  Judas, o zelota, escreveu uma coisa assim?

RAQUEL -  Ele certamente não, porque se suicidou na própria Sexta-Feira Santa, mas antes de morrer deve haver contado para alguém.

JESUS -  Mas que disparate vocês estão dizendo?

N.G. -  Vamos por partes, Jesus. O que o senhor pediu a Judas?

JESUS -  Nada. O mesmo que pedi a todos do movimento. Que nos mantivéssemos unidos.

N.G. - Mas o senhor precisava que Judas o entregasse. Lembre... A última ceia, o beijo no Horto das Oliveiras... Tudo bem planeado.

JESUS -  Planeado por quem?

N.G. -  Pelo senhor, naturalmente. Por Deus. E Judas prestando-se a cumprir os planos divinos. Isso é o que revela o texto que encontramos numa caverna do Egipto.

JESUS -  Vocês não conheceram meu amigo Judas. E o que escreve esse texto encontrado na caverna também não.

N.G. - Quem era Judas, então?

JESUS -  Um revolucionário, um zelota. Os zelotas lutavam para tirar os romanos do nosso país.

RAQUEL -  Zelota ou não, ele o vendeu por trinta moedas.

JESUS – Escuta, Raquel. E o senhor também, o da revista. Os zelotas eram muito impacientes. Judas usou uma falsa medida. Talvez tenha pensado que se eu fosse preso, o povo se sublevaria e chegaria mais depressa o dia da libertação.

RAQUEL -  E não chegou...

JESUS -  Chegaram os romanos. Houve protestos, sim, mas os romanos os sufocaram.

N.G. - Então, segundo o senhor, Jesus Cristo, o evangelho de Judas é falso?

JESUS - Parece-me que a falsidade maior é dizer que o corpo é um cárcere. O corpo é o templo de Deus.

RAQUEL - Muito obrigada, colegas da National Geographic. Em todo caso, Jesus Cristo, o senhor se decepcionou com o que Judas fez.

JESUS -  Judas foi o mais decepcionado. Quando viu seu plano fracassar, se desesperou e...

RAQUEL -  Enforcou-se e foi para o inferno.

JESUS -  Por que o mandas para o inferno?

RAQUEL -  Bom, não para lá, porque numa entrevista anterior o senhor disse que não há inferno, mas se condenou, não sei onde, mas se condenou.

JESUS - Por que dizes isso?

RAQUEL -  Porque os suicidas, pelo que nos ensinaram, cometem o pior dos pecados. E como último acto consciente que fazem, morrem nesse pecado e ficam automaticamente condenados.

JESUS -  Quem ensina isso não conhece o coração de Deus. Tampouco sabem nada da desesperança. Quem pode julgar o que havia no coração de meu amigo Judas naquela sexta-feira quando tirou sua própria vida.

RAQUEL -  Pelo que ouvimos, o caso de Judas dá muito pano pra manga. Amigo, traidor, evangelista? Como o chamaremos?

JESUS -  Chamem-no Judas, o Iscariotes, a cidade onde se criou. Judas, esse foi seu nome. E te asseguro que seu nome também está escrito no Livro da Vida.

RAQUEL -  Um intervalo e voltaremos. Raquel Perez, Emissoras Latinas, Jerusalém.  


DROGA

A quantidade de droga que ultimamente tem dado à costa portuguesa é tanta que aqui há dias um “jaquinzinho” apanhou uma tal “pedrada” que até se foi meter com um cachalote.


NOVA VERSÂO DO CAPUCHINHO VERMELHO
GABRIELA
CRAVO
E
CANELA

Episódio Nº 136


- Um conto de réis – repetiu Mundinho Falcão.

- Ah!, seu Mundinho… Pois não. Senhorita Jerusa, quer ter a bondade de entregar a prenda ao cavalheiro?

Um conto de réis, meus senhores, um conto de réis! São Sebastião será eternamente grato a seu Mundinho. Como sabem, esse dinheiro é para a construção da futura igreja, nesse mesmo local, uma igreja enorme, que substituirá a actual. Seu Mundinho, o dinheiro é mesmo comigo… muito obrigado.

Jerusa ia buscar a caixa com as xícaras, entregava ao exportador. As moças vencidas comentavam aquela loucura. Esse Mundinho, podre de rico, rapaz elegante do Rio, combatia num combate mortal a família dos Bastos. Uma luta com jornais queimados, homens surrados, atentados de morte. Fazia frente ao velho Ramiro, disputava-lhe os cargos, levava-o a ataques de coração.

E, ao mesmo tempo, dava um conto de réis, duas reluzentes notas de quinhentos, por meia dúzia de xícaras de loiça barata, prenda da neta do seu inimigo. Era mesmo maluco, como iriam entender? Todas elas, de Iracema a Diva, suspiravam por ele, rico e solteiro, elegante e viajado, indo constantemente à Baía, tendo casa no rio…

As moças sabiam de suas histórias com raparigas. Com Anabela, com outras mandadas buscar na Baía, no Sul. Por vezes as viam passar, elegantes e livres, na avenida da praia. Mas namoro com moça solteira ele nunca tivera. Com nenhuma delas, mal as olhava. Tão pouco Jerusa. Esse seu Mundinho Falcão, tão rico e elegante!

 - Não valia tanto – disse Jerusa.

 - Sou um pecador. Assim, por suas mãos, fico bem com os santos. Ganho um lugar no céu.

Ela sorriu, não pode resistir, perguntou:

 - Vai ao réveillon?

 - Ainda não sei. Prometi ir passar o Ano Bom em Itabuna.

 - Parece que lá vai ser animado. Mas aqui também.

 - Desejo que se divirta e tenha um feliz Ano Novo.

 - Para o senhor também. Se não nos encontrarmos até lá.

Tonico Bastos espiava a conversa. Não entendia esse tipo. Sonhava ainda com um acordo de última hora, a salvar o prestígio dos Bastos. Cumprimentou Mundinho com um sorriso. O exportador respondeu, retirava-se, ia para casa.

Na véspera do ano, Mundinho esteve em Itabuna, almoçou com Aristóteles, assistiu à inauguração da feira de gado, importante melhoramento a trazer para o município o comércio de bovinos de toda a região.

Fez discurso, foi aplaudido, meteu-se no carro, voltou para Ilhéus. Não que houvesse recordado Jerusa, mas porque queria passar a noite de ano com seus amigos, no Progresso. Valeu a pena: a festa foi uma beleza, o povo dizia que só mesmo no Rio era possível ver-se baile daqueles.

quinta-feira, novembro 08, 2012


Filhos das Extremas


Numa vinha do Ribatejo, as crianças brincavam por entre o emaranhado das cepas ainda por podar e que por isso apresentavam aquele aspecto de desalinho e desmazelo a fazer lembrar os palcos das batalhas do antigamente uma vez acabada a luta e antes de retirados os corpos e os destroços que tinham algum valor.

A vindima também é uma espécie de luta perdida pelas cepas que pretendem esconder entre as parras o produto da sua criação, perante o exército de homens e mulheres, mais elas que eles, que as tomam de assalto, tesoura numa mão e balde na outra e que virando e revirando as vides vão cortando os cachos que as parras procuram esconder ciosamente.

Retirado o produto do saque a vinha fica uns meses ao abandono e para se retemperar e esquecer da afronta hiberna durante o Inverno que se aproxima e algumas vezes afunda as mágoas nas águas das cheias do rio Tejo, quando o este ainda tinha cheias.

Depois, a natureza benigna que não é de ressentimentos, faz chegar a Primavera com as papoilas, os mal-me-queres, as andorinhas e tudo acaba por esquecer entre os risos e as corridas das crianças enquanto os pais se afadigam de volta das cepas cortando e atando as vides junto aos “olhinhos” de onde hão-de brotar, lá para o fim do Verão, mais cachos com uvas resplandecendo de cor.


Mas até lá, entre outras coisas, há que combater o míldio e não há que se atrasar senão a praga avança irremediavelmente e o que haveria de ser para os homens irá para “os bichinhos”.

É a fase mais difícil quando, a partir do início da Primavera, a doença começa a atacar. O Manuel e a mulher assumem o papel de enfermeiros e todos os dias, bem cedo, lá os temos à cabeceira do doente, mirando e remirando as folhas à procura daqueles sinaizinhos brancos, indicadores da doença que depois passará também para os cachos porque a descoberta precoce desses sinais, como em todas as doenças, é decisiva para o êxito no combate à praga.
A mulher, especialmente vocacionada para as tarefas laboratoriais, prepara o remédio dissolvendo em água, no pequeno tanque que existe para esse efeito, a meio da propriedade, o produto que, de todos quantos existem, lhes parece ser o melhor para debelar a doença.

Depois, enche o depósito do pulverizador, ajuda a colocá-lo nas costas do marido e o Manuel lá vai, vinha fora, sem ter perdido o tino à última cepa que pulverizou quando todas parecem exactamente iguais e retoma a tarefa procurando atingir com os borrifos todas as folhas mesmo as menos acessíveis.



Atentemos nos seus movimentos, reparemos na sua expressão e veremos nele, não o trabalhador agrícola mas um especialista de saúde que põe em cada gesto a precisão de uma técnica não aprendida na escola, antes uma herança do seu pai e que ele executa com uma grande dose de amor.

Se não conseguirmos ver estas pequenas diferenças do gesto e da expressão nunca compreenderemos porque a ligação do homem à terra é tão diferente de todas as outras. Não é o Manuel que é dono daquela terra, é ela que é dona dele.


Mas não é fácil a vida destas famílias, as vinhas não têm dimensão suficiente para rentabilizar a compra de máquinas que tornariam os trabalhos mais rápidos e por conseguinte mais baratos, para além de que uma atitude muito individualista e desconfiada dos proprietários das terras, não permite trabalhá-las em conjunto fazendo grande o que é pequeno.

Por isso, é sem esperança que o Manuel olha para as extremas da sua vinha percebendo que enquanto elas se mantiverem onde estão a sua vida não passará da cepa torta.

Do preço do vinho também não há que esperar grande coisa. Se há anos de fartura, que até os há, logo o seu valor cai por aí abaixo de tal forma que nos anos de escassez se chega a ficar com mais dinheiro no fim da safra.




As grandes casas agrícolas, essas é que se safam, com tantos hectares de vinha podem ter tractores que lavram a terra e procedem à pulverização mecânica e nos anos de fartura armazenam o vinho em grades depósitos que vendem mais tarde quando o preço lhes convém.


O Manuel sabia que era assim mas nada podia fazer, os trabalhos da vinha sabia-os ele de olhos fechados, a sua infância, tal como a do seu filho agora, tinha-a passado entre as cepas daquela vinha, quem sabe mesmo senão teria sido concebido no meio delas. A vinha era a sua segunda casa, à sombra da oliveira ao pé do tanque onde se faz a calda para as “curas” tinha a mãe lhe dado de mamar e era lá, num berço improvisado, que ele dormira as suas primeiras sestas de criança.

Estava fora de causa vender ou arrendá-la. Que pensaria o pai lá no outro mundo, depois daquele esforço que fizera anos antes de morrer para “armar” a vinha, renová-la com castas novas, preencher as falhas das que entretanto tinham morrido e dar-lhe todo aquele aspecto de propriedade dos ricos só que em ponto pequenino já se vê e… o que pensaria ele próprio?

E o seu rapaz, como haveria de se governar só com aquela vinha que mal dava para ele e para a mulher? Lá teria que ir trabalhar para algum dos ricos da terra, que ele não tinha problemas com o trabalho, era sossegado, tinha boas mãos e sempre aprendera tudo com muita facilidade. Tomara o patrão que viesse a ficar com ele mas trabalhar na terra que é nossa é muito diferente, as cepas é como se fossem o prolongamento da família e elas também percebem isso e o rapaz já demonstrava o mesmo apego.

O Manuel nunca ouvira falar na escola na família dos Habsburgos da Casa Imperial da Áustria. O professor só lhe ensinara os Reis de Portugal e alguns, agora, ele já os esquecera mas houve tempo em que os soubera a todos com as dinastias a que pertenciam e tudo… mas dos Habsburgos, esses, nunca ouvira falar.


O mesmo já não diria dos “filhos das extremas” embora fosse um assunto mais ou menos tabu lá na aldeia, daqueles que eram falados em conversas surdas do…”cala-te boca”, e mais pelas mulheres do que os homens que fugiam desse tema mas não deixavam de pensar nele porque o assunto interessava a ambos por igual. No entanto, era mais conversa de travesseiro…que é também para isso que servem as mulheres.


A coisa era mais notada por altura das bodas, quando os pais dos noivos eram donos de vinhas que confrontavam as extremas umas com as outras e eram inevitáveis alguns sorrisos e aquelas frases perdidas…«lá vamos ter mais filhos das extremas».

Claro que havia uma intenção premeditada de aumentar o tamanho das propriedades pelo casamento dos filhos, mesmo quando tinham relações próximas de parentesco. Não quer dizer que os jovens não se gostassem, conheciam-se desde pequenos, brincaram em criança nas extremas das vinhas que eram dos pais, enquanto eles trabalhavam, mais tarde foram aos mesmos bailes e tudo sempre abençoado pela família.

Era tudo tão intrincado que era difícil dizer onde acabava a verdade e começava a má-língua. Eram zonas de fronteira tal como as extremas das vinhas. 

O que eles tinham era mais pudor que a família dos Habsburgos que nem sequer dava para disfarçar a intenção dos casamentos entre parentes chegados mas o povo, por ignorância, falava em maldição. 

Muitas pessoas da tão distinta família, ao longo de várias gerações, nasceram defeituosas com degenerescências faciais, o famoso queixo dos Habsburgos, como resultado de uma desordem genética pelo acumular de casamentos consanguíneos, dos quais, o mais célebre, terá sido Carlos II de Espanha que morreu cedo e estéril pondo ali termo à dinastia à qual se seguiu a dos Bourbons.

 Contudo, com esta astuta política de casamentos, concebida por Maximiliano, pouparam-se muitas guerras, muitas vidas e muito sofrimento que de outra forma seriam inevitáveis para manter e aumentar o poder desta família na Europa que, veja-se, começa quando o Rei Rodolfo de Roma conquistou a Áustria em 1273 e só terminou em 1918 com a 1ª G.G. mundial.
Pelo meio governaram a Europa como Imperadores, Reis, Duques e Arquiduques de vários países, inclusive de Portugal, no tempo da denominação Filipina, mesmo defeituosos, melancólicos e meio loucos pela doença de que padeciam.
Mas, destas coisas, o Manuel e a mulher não sabiam nada e nesse dia à noite, deitados na cama, ele cansado de um dia inteiro com o pulverizador às costas puxando para cima e para baixo o manípulo, nem sei quantas milhares de vezes, e ela derreada dos braços de mexer a calda e carregar os pulverizadores, começaram a falar do filho:
- Oh homem, já reparaste que o nosso rapaz parece agradado da filha dos nossos vizinhos, aqueles que  têm a vinha pegada com a nossa, com a extrema também a acabar na vala grande onde está a figueira que dá os figos pingo de mel?
- Então, e oh mulher, eu não sei onde fica a figueira e onde acaba a vinha do vizinho? -  Mas a rapariga ainda é nossa sobrinha…


- Oh!, é prima dele em 2º grau, já se viram coisas bem piores e a vinha... olha que ainda é um bom bocado maior que a nossa, não estará tão bem tratada, é verdade, mas isso é porque o Hermenegildo não chega aos teus calcanhares e depois, também com aquela doença que ele tem já não vai longe…


-E a rapariga, gostará dele?

- Ora, vê-se mesmo que és homem, nunca reparas em nada, deixa isso por minha conta e dorme que amanhã é outro dia de canseira…

… Algures, na década de sessenta, no seio de uma família de uma freguesia no coração do Ribatejo deste Portugal pequenino, que nunca conheceu a política casamenteira concebida pelo rei Maximiliano da Casa Imperial da Áustria.

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De Caminho-de-Ferro... até ao Sol.


O Espermograma do Avô



O médico pede uma amostra de esperma de um homem de 85 anos como parte de seu exame de saúde anual dá um pequeno frasco e disse:

  - Pegue este frasco e deve trazê-lo amanhã, com a amostra de esperma.

 No dia seguinte o homem de 85 anos regressa ao escritório do doutor e entrega-lhe o frasco. Estava tão vazio e limpo como no dia anterior.

O médico pergunta o que aconteceu e o homem explica:

 - Primeiro eu tentei realizar a tarefa com a mão direita e nada.

 - Então eu tentei com a mão esquerda e ainda nada.

 - Então pedi ajuda a minha esposa.

 - Ela tentou com a mão direita, depois com a mão esquerda e ainda nada.

 - Ela disse: eu já sei como. Então tentou com a boca, primeiro com os dentes, depois sem dentes e ainda nada.

Minha sogra centenária veio e disse:  - Será que eu vou ter que ensinar?


Rebolou-se um bom tempo em posições diferentes e cada vez mais bizarras e não houve nenhum caso.

Inclusive chamamos a Susie, a vizinha do lado, e ela também tentou, primeiro com as duas mãos, debaixo do braço e pressionando entre os joelhos para cima, mas ainda nada. "

 O médico estava em choque:

 - Você pediu para sua sogra e à sua vizinha?"

 E o paciente de 85 anos de idade, respondeu:

 - Sim, Dr., nenhum de nós conseguiu abrir o frasco...

 

Acabadinha de chegar do mar...

GABRIELA
CRAVO
E
CANELA

Episódio Nº 135

Foram à noite às quermesses em frente à Igreja de São Sebastião. Por ali passava Tonico com Dª Alda. Nacib a deixou com eles, deu um pulo ao bar para ver como marchava o movimento.

Vendiam presentes nas barracas, moças estudantes tomavam conta. Rapazes compravam. Havia leilões de prendas, em benefício da Igreja. Ari santos, suando a valer, era o leiloeiro, anunciava:

 - Um prato de doces, oferta da gentil senhorinha Iracema. Doces feitos com as suas próprias mãos. Quanto me dão?

 - Cinco mil réis – oferecia um académico de Medicina.

 - Oito, aumentava um empregado do comércio.

 - Dez – lançava um estudante de Direito.

Iracema tinha muitos apaixonados, disputado era o seu portão de namoros e, por isso mesmo, o seu prato de doces.

Na hora do leilão veio gente do bar para assistir e participar. As famílias enchiam a praça, namorados trocavam sinais, noivos sorriam de braço dado.

 - Um jogo de chá, prenda da jovem Jerusa Bastos. Seis xícaras, seis pires, seis pratos para doces e outras peças.

Quanto me dão?

Ari Santos exibia uma xícara pequena.

As moças entreolhavam-se numa rivalidade de preços. Cada qual desejava que seu presente a São Sebastião fosse vendido mais caro. Os namorados e noivos gastavam dinheiro, levantando as ofertas para vê-las sorrir.

Por vezes, dois coronéis candidatavam-se à mesma lembrança. Crescia a animação, subiam os lances chegando a cem e a duzentos mil réis. Naquela noite, numa disputa com Ribeirinho, Amâncio Leal dera quinhentos mil réis por seis guardanapos. Isto já era desperdiçar, jogar dinheiro fora. Tão farto ele andava nas ruas de Ilhéus.

As moças casadoiras animavam, com os olhos, namorados e pretendentes. A ver que figura fariam quando o leiloeiro anunciasse a sua prenda. A de Iracema batera um record: o prato de doces fora levantado por oitenta mil réis. Lance de Epaminondas, sócio mais jovem de uma loja de fazendas, Soares & Irmãos.

Pobre Jerusa, sem namorado! Metida a emproada, não se passava para os moços de Ilhéus. Murmurava-se de amor na Baía, um quintanista de Medicina. Se sua família não entrasse nos lances – seu tio Tonico e Dª Olga, ou algum amigo de seu avô – seu jogo de xícaras não ia dar nada. Iracema sorria vitoriosa.

 - Quanto me dão pelo jogo de chá?

 - Dez mil réis – deu Tonico.

 - Deu quinze Gabriela, com Nacib novamente a seu lado.

O coronel Amâncio, capaz de aumentar o lance, já não estava, fora-se embora para o cabaré. Ari Santos suava, no palanque a gritar.

 - Quinze cruzeiros… quem dá mais?

 - Um conto de réis.

 - Quanto me disse? Quem foi que falou? É favor não brincar.

quarta-feira, novembro 07, 2012


Nova Vitória de Obama


A América dos pobres exulta, a dos ricos remói raios e coriscos. O mundo respira. Com Obama, as ameaças mais graves parecem afastadas. Ficámos a saber, do último mandato, que ele manda só um bocadinho sem os poderosos ao seu lado mas, mesmo esse bocadinho, é muito importante.

Foi incansável no primeiro mandato nas negociações com os seus adversários políticos e conseguiu algumas vitórias em matéria de Segurança Social, como a extensão do Serviço de Saúde a 30 milhões de americanos, reforma histórica, contestada por 26 estados e salva pelo Supremo Tribunal Americano a 4 meses destas eleições. 


 Agora, mais liberto, sem novas eleições no fim do mandato, mais experiente e calejado, talvez consiga ir mais longe… para bem dos americanos e salvaguarda da paz no mundo mas, infelizmente, ele só manda um bocadinho...


Há sete anos postei aqui, no Memórias Futuras, um texto em que confesso o meu fascínio pelo continente africano. Algumas coisas mudaram para melhor ao longo desses anos mas, no essencial, para além do crescimento desmesurado das fortunas construídas à volta do petróleo, do tamanho das cidades e dos correspondentes bairros de lata, da grandeza das vivendas de luxo dos novos milionários, pouco mudou.

 

 

África - O Continente do Meu Fascínio


Não nasci em África, não cresci lá nem lá me fiz homem mas, no entanto, mantenho um fascínio por este continente. A minha relação com ele acontece em três momentos perfeitamente distintos da minha vida: uma visita de estudo a Angola em Agosto/Setembro de 1960; uma comissão militar em Angola de Dezembro de 1962 a Março de 1965; e, finalmente, de Setembro de 1972 a Julho de 1975 em Moçambique, na qualidade de funcionário público exercendo funções na cidade da Beira como Delegado da Inspecção de Crédito e Seguros, ao todo, pouco mais que cinco anos, concretamente cinco anos e três meses.

Refiro com pormenor este espaço do tempo porque a medida do tempo, como já se aperceberam, é muito enganadora. Anos e anos em que nada acontece, tudo igual, rotina pura, com grande dificuldade em referenciar o que quer que seja, e depois, períodos intensos em que parece que tudo se combina para acontecer, no turbilhão de uma roda do carrossel que nos deixa tontos.

África, acontece na minha vida nesses períodos efervescentes em que os sentidos se excitam pela novidade permanente do dia a dia, emprestando mais cor às paisagens e intensidade aos factos que ganham importância especial, porque aconteceram naquele momento e naquelas circunstâncias.

Tivesse eu nascido e sido criado naquele continente, e o que registaria seria o resultado de um processo de habituação em que tudo me seria familiar. Mas eu não tinha nada nem ninguém que me ligasse a África e, por isso, o meu deslumbramento, choque, surpresa, no contacto com uma natureza que nuns sítios é vigorosa, asfixiante mas ao mesmo tempo cúmplice e protectora e noutros, extensa, infindável, mística, e entre uma e outra todas as combinações são possíveis desde um pôr-do-sol paradisíaco na ilha de Stª Carolina, no arquipélago do Bazaruto, em frente da costa moçambicana, até à grandiosidade esmagadora dos penhascos da Tundavala, no planalto Central de Angola.
Depois, temos as circunstâncias:

- Milhares de jovens como eu foram “despejados,” de um dia para o outro, nas luxuriantes matas do norte de Angola que, de dia nos enchiam os olhos do verde da vegetação e à noite os ouvidos com as sinfonias de todos os insectos, batráquios e não sei que mais bicharada. Era como se a natureza nos interpelasse através das vozes de cada um daqueles seus representantes: vocês não são daqui, pois não? - Quem são, o que estão aqui a fazer?

Meses mais tarde, feitas as respectivas apresentações, esclarecidos os objectivos e garantido que o problema era de homens contra homens e que não éramos portadores de serras ou mota-serras que destruíssem a floresta, a casa de toda essa bicharada, fomos acolhidos em igualdade de condições tendo apenas em nosso desfavor a ignorância que não nos permitia defender tão bem do feijão-macaco como aqueles que, conhecendo-o de ginjeira, conseguiam passar-lhe ao lado sem lhe tocarem.



Mas, quanto ao resto, lá estava ela, a floresta, feita mãe protectora, sempre disponível, abrigando-nos, escondendo-nos dos olhares indiscretos porque debaixo do seu manto protector ninguém encontra ninguém a não ser por casualidade ou nos caminhos de “pé-posto”, as “auto-estradas” da floresta.

Mas nos primeiros dias foi assustador porque naquele cenário verde, a imaginação compunha milhões de olhos fixos em nós enquanto, aos solavancos, em cima dos Unimogues, progredíamos nas picadas à estonteante velocidade de 10 km/H, perguntando, cada um a si próprio, qual seria o primeiro a cair trespassado por um daqueles olhares.

 - Oh, meu Alferes, eu tive tanto medo que nem a cabeça de um alfinete me cabia no cu! - e assim ficou, até ao fim da comissão: “O Cu de Alfinete”.


Foram dias pouco gloriosos mas  profundamente humanos tanto quanto o podia ser o medo que sentíamos.
Depois, mais tarde, saídos da zona de guerra, fomos  para a fronteira com a Zâmbia, nas margens do Zambeze, com as suas praias de areias cantantes, convivendo em paz com as populações, os simpáticos Luenas, que durante quinze meses nos acolheram com toda a naturalidade, convidando-nos para os seus batuques de fim-de-semana como nós, de certo, também os teríamos convidado, para os bailes nas nossas aldeias.


É impressionante como as pessoas simples do povo, em qualquer parte do mundo, são tão parecidas no essencial, ficando as diferenças apenas para o que é circunstancial:


- O acordeonista afina o acordeão ou a guitarra nota por nota, enquanto o tocador do tambor, que não conhece notas, fá-lo com o calor de um molho de capim a arder aquecendo a pele do tambor até encontrar o som que melhor corresponde ao ritmo que mais aquece o sangue e apela à sensualidade.
Nos bailes das nossas aldeias predominava o ambiente dos desejos contidos, no batuque a liberdade dos desejos. Entre os Luenas o amor livre não é pecado porque não pode ser pecado o que é da natureza. Nos bailes, a natureza é a mesma, o sangue fervilha da mesma forma, com a mesma intensidade mas o sexo, fora do sagrado sacramento do casamento, era proibido.
Por isso os frequentadores dos bailes são os “civilizados” e os dos batuques “selvagens”;

- Para uns, o entendimento é que a natureza não pode ser deixada entregue a si própria porque ser-se civilizado é obedecer a um estrito código de comportamentos ditados por morais religiosas em que imperam as proibições que testam as nossas almas, que orientam as nossas vidas, e que, finalmente, nos devem conduzir ao descanso eterno;



-Para os outros, a natureza é o que é, e viver que não seja em comunhão com ela, contrariando-a, não faz sentido.


As verdadeiras proibições têm a ver com tudo aquilo que pode pôr em risco as vidas como, por exemplo, aproximarem-se das margens de um rio sem acautelarem a presença de um furtivo crocodilo. Não que o crocodilo seja mau, apenas que é da sua natureza poderem comer pessoas descuidadas que não respeitam os seus locais de vida. 

A natureza é sábia e foi ela que “produziu” o homem depois de muitas tentativas condenadas ao fracasso. Quantas promessas de homem não ficaram pelo caminho? Finalmente, lá conseguimos emergir da noite dos tempos depois de milhões de anos, sem mais do que uma simples ferramenta de pedra usada até à exaustão em locais próximos àquele onde me encontrava.

Tão frágeis e indefesos que éramos a nossa sobrevivência tinha a ver com a cooperação do grupo e a vida deveria ser de um sobressalto permanente perante o risco que representavam as feras, especialmente o tigre Dentes de Sabre, nosso predador por excelência.

Tive a percepção de uma situação dessas quando, um dia, durante uma caçada, (para intercalar com as latas de feijão com chouriço) em pé, sobre o capô do jeep, com o motor desligado, perscrutava o horizonte.

Era uma savana a perder de vista em que só me aventurava munido de bússola. Polvilhada por árvores esparsas era um cenário inalterado há muitos milhares de anos por onde os meus antepassados teriam andado.

Ninguém falava e o silêncio só era quebrado pelo vento que passando pelo capim, não muito alto, produzia um som de uma grande suavidade, como que um murmúrio.

De repente, senti um medo ancestral, pânico, que me subiu pela coluna até à base do crânio: “estava perdido, não via os meus companheiros, encontrava-me à mercê do tigre dentes de sabre…”

Ainda hoje, passados já  quase 50 anos, guardo essa estranha sensação.

Não sei quanto tempo durou essa sensação de medo. Breves instantes, com certeza, mas logo que me libertei dela, saltei para o chão, sentei-me ao volante, pus rapidamente o motor a trabalhar e só então recobrei totalmente daquela viagem relâmpago aos tempos dos nossos antepassados mais remotos… foi muito bom voltar a ouvir o som acolhedor do motor do Jeep Willys.


Não contei esta estranha experiência a ninguém durante muitos anos, exactamente porque era estranha e a mim próprio suscitava dúvidas. Será que, de verdade, ela aconteceu?


Dela, no entanto, ressaltaram em mim alguns sentimentos, também eles guardados em segredo:


- Admiração e reconhecimento pelos nossos antepassados que em condições tão adversas me permitiram estar ali depois de tantos e tantos anos de uma lenta, dolorosa e periclitante evolução;
- Ter sentido, como hoje está provado cientificamente, que aquela foi mesmo a nossa terra de origem. Eu sei, "estive lá!..."



Mas pensar a África hoje é interrogar-mo-nos como foi possível um tão grande retrocesso nas condições de vida dos seus habitantes desde que, progressivamente, ao longo dos últimos cinquenta anos, a condução política de todos os seus territórios passou para representantes legítimos das suas populações.



À laia de exemplo:


-De acordo com as Nações Unidas, até há bem pouco tempo 2/3 da população da Zâmbia estava na miséria;

-Angola é um dos 5 países mais corruptos do mundo;

-O Zimbabué, que já foi o celeiro da sub-região em que se insere, está mergulhado na miséria ao ponto do seu Presidente Mugabe ter mandado abater os animais de uma reserva eco-turística como solução imediata para matar a fome à população;

Terá sido esta a herança que os europeus lá deixaram?

Para terminar, falemos de Moçambique pela voz de Mia Couto, que começa por afirmar que “até aqui a independência não passou da liberdade de escolher outras dependências” e dirigindo-se à consciência de todos os moçambicanos, que bem poderiam ser todos os cidadãos da África sub-sariana, fala dos "sete sapatos" que é preciso descalçar:

- A ideia de que os culpados são sempre os outros;


- A ideia de que o sucesso não nasce do trabalho;

-A ideia de que quem critica é um inimigo;

- A ideia de que mudar as palavras muda a realidade;

- A vergonha de ser pobre e o culto das aparências;

- A passividade perante as injustiças;

- A ideia de que para sermos modernos temos que imitar os outros;

Por aquilo que se vê, os 7 “sapatos” de Mia Couto, bem se podem transformar nos 12 trabalhos de Hércules da mitologia greco-romana, com a diferença de que os moçambicanos não são deuses, não se podem socorrer de truques e malabarismos próprios dos deuses e, por isso, o que se lhes pede  parecendo mais simples talvez seja mais difícil.

Geograficamente, os moçambicanos, estão em cima do Vale do Rift que há milhões de anos atrás foi o berço dos nossos antepassados mais remotos. Um deles viria a transformar-se naquilo que somos hoje. 


Será que os moçambicanos se conseguem transformar, mesmo que não seja completamente, naquilo que Mia Couto pretende?
- Desejamos sinceramente que sim.


PS:
África - O Continente do Meu Fascínio:
Não mais voltei ao continente do meu fascínio e também não o desejo. Depois de paisagens impressionantes, momentos exaltantes, com cidades alindadas com gente humilhada lá dentro, não arrisco ver fome, miséria e degradação promovida por aqueles que lutaram pela independência mas sucumbiram à ambição do poder. Ganharam a guerra, perderam a paz.  
Conheci Angola e Moçambique, Zâmbia e Zimbabué, estas últimas em breves visitas, todas diferentes, com a marca dos colonizadores.
Sei que não é justo, peço desculpas, mas prefiro recordar as imagens dessa África que conheci. O mal que os outros nos fazem é menos grave do que aquele que fazemos a nós próprios...

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