A notícia não atinge e comove somente a população urbana; espalha-se por todo o
município, despertando curiosidade e interesse das mansas margens do rio às
encapeladas vagas do mar atlântico, segundo revela Barbosinha em estado de
poesia.
Elabora um poema em versos livres e ático sabor, onde Vénus surge das
ondas, nua, coberta de espumas e conchas, rediviva. Actualíssimo e um tanto
erótico.
Ninguém ficou indiferente em toda a população de alguns milhares de pessoas –
nem mesmo dona Carmosina pode fornecer o número exacto de habitantes do
Agreste; no censo de 1960 somavam nove mil, setecentos e quarenta e dois cidadãos
prestáveis e imprestáveis pois vários passavam dos noventa e muitos dos oitenta
anos; no último lustre após o recenseamento, a população diminuíra, não em
consequência de mortes, ainda mais raras que os nascimentos e sim da
sistemática partida de jovens em busca de oportunidades noutras terras.
O visitante, chegado a estas ruas mortas nos dias de hoje, exausto com a
travessia de marinete de Jairo, entupido de poeira, hóspede da pensão de dona
Amorzinho, não acreditará que, antes da construção da estrada de ferro ligando
Baía a Sergipe, Agreste foi terra de muito progresso e muito movimento
comercial, entreposto da maior importância para todo o seerá dos dois Estados.
Naquela época, a prosperidade presidia os destinos do actual cafundó de Judas.
A situação privilegiada do município, às margens do rio, estendendo-se até o
mar, fizera de Santana do Agreste o centro de abastecimento de toda uma enorme
região.
Navios e escunas vinham até à altura da barra de Mangue Seco, paravam
ao largo, as alvarengas recolhiam a carga. De Agreste, no lombo dos burros, as
mercadorias partiam no rumo do sertão.
Hoje, existe apenas a pensão de dona Amorzinho, no começo do século existiam
para mais de dez, repletas sempre de comerciantes e caixeiros-viajantes, as
lojas e armazéns não davam abasto à freguesia.
Casa de mulher-dama nem se
conta, uma animação, um correr de dinheiro. As melhores residenciais da cidade
datam dessa época, também o calçamento de pedras da Praça da Matriz e das ruas
do centro.
Os ricos mandavam vir pianos e gramofones, encomendavam retratos
coloridos a firmas do sul, para pendurar nas paredes das salas.
Construíram o
sobrado da Intendência. Ergueram a nova Matriz de Sant’Ana, deixando a velha
capela para a devoção de São João Batista, cuja festa em Junho, precedida pela
de Santo António e seguida pela de São João Pedro, trazia a Agreste forasteiros
até de Sergipe, além dos numerosos estudantes em férias, libertos por quinze dias dos internatos da capital.
Agreste em Junho era uma alegria, só dança e foguetório todas as noites, após
as trezenas e novenas.
Das primeiras cidades a instalar electricidade, das últimas a conservar a
vacilante luz amarela e fraca do cansado motor, ainda não substituído pela
ofuscante luz da usina de Paulo Afonso.
Quem adquiriu
o motor e iluminou o então florescente burgo foi o intendente coronel Francisco
Trindade, avô de Ascânio.
Deve-se ao neto, em dias recentes obstinada luta para
trazer até ali os fios de alta – voltagem da Hidroeléctrica de São Francisco
que, como a estrada de ferro e a rodovia, haviam passado longe dos limites do
município.
Nos últimos decénios, o progresso só fizera desfechar golpes contra Agreste. O
primeiro, o mais terrível: a construção da estrada de ferro, trilhos a ligar a
capital baiana a Sergipe, chegando às ribanceiras do rio São Francisco, em
Propriá; deixando nossa cidadezinha à margem, órfã de trem – de-ferro e de
estação onde as moças namorarem.
Tentou manter-se Agreste no convívio dos
navios e escunas mas o transporte de mercadorias fez-se mais fácil e muito mais
barato nos vagões da ferrovia.
Dispersaram-se as tropas de burros, as
alvarengas apodreceram junto aos mangues, de raros navios e escunas desembarca
apenas contrabando e mesmo assim sem outro lucro para Agreste além da paga
recebida pelos pescadores de Mangue Seco, pois não é do município que os
géneros tomam destino.
As lanchas nem escalam em Agreste, indo directas para o
porto do Crasto, em
Sergipe. Só Elieser, morador na cidade, ali ancora, de volta
da entrega, vem dormir a casa. Não se pode considerar comércio digno de tal
nome a garrafa de uísque escocês, de gim inglês, de conhaque espanhol que
Elieser surripia e vende a Aminthas, a Seixas ou a Fidélio; nem o vidro de
perfume com destino certo: Carol, a retraída moça de Cardoso Pires.
Essa moça, aliás, precisa de aparecer mais nas páginas deste folhetim para
proveito e gáudio de todos nós.
As esperanças de retorno à prosperidade concentrara-se durante longo tempo na
rodagem, anunciada com ruidoso espalhafato, a vir do sul cruzando o país
inteiro pela costa.
Enquanto isso, Agreste diminuíra a olhos vistos, os caixeiros-viajantes
desertaram das ruas: restando poucas lojas e armazéns, os pedidos não pagavam
as custas da viagem.
Fecharam-se as pensões, já ninguém vinha de longe para as
festas de Junho, apesar da água continuar a fazer milagres, do clima manter-se
digno de sanatório, da insólita beleza ribeirinha e da audácia da praia de
Mangue Seco, incomparável.
A rodovia, como se sabe passou a quarenta e oito quilómetros
de poeira e lama. Novo e definitivo golpe do progresso, Agreste entregou-se de
vez, reduzido à mandioca e às cabras.
Nem trem de ferro, nem caminhões nem
sombra de estação, rodoviária ou ferroviária, onde as moças namorarem.
No
ancoradouro, meia dúzia de canoas, o barco de Pirica, a lancha de Elieser e os
caranguejos, gordos, gordíssimos. Em matéria de comida, nada se compara a um
escaldado de caranguejo com pirão de farinha de mandioca, verde-escuro, pirão
de lama como se chama aqui. Nunca
comeram? Uma lástima, não sabem o que é bom.
Manjar a exigir tempo e paciência
para catar a carne a carne dos caranguejos, pata por pata, faz-se raro até
mesmo em Agreste onde sobram o tempo e o gosto. Mas vale a pena, eu asseguro. É
de se lamber os dedos; come-se com a mão, ensopando o pirão na gordura verde do
molho, na lama incomparável do caranguejo.
O povo já perdeu as derradeiras esperanças, os moços partem na marinete de
Jairo, moços e moças, porque nos últimos anos também as mulheres começaram a
buscar vida melhor em terras mais ricas. Vão ser copeira ou cozinheira,
costureira ou bordadeira, grande número acaba na zona, em Salvador, em Aracajú,
em Feira de Santana. Muito apreciadas, por sinal.