O Referendo sobre o Aborto
Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?
Esta é a pergunta a que os portugueses vão ter que responder Sim ou Não no próximo Referendo, e eu tenho alguma dificuldade em perceber, perante uma realidade dolorosa, sobre todos os aspectos, que é o aborto clandestino em Portugal, a formulação de tantas discordâncias, acusações e deturpações para além das divagações suscitadas dos pontos de vista religioso, filosófico e científico, pelos defensores do Não.
Não tenho dúvidas que a “pílula do dia seguinte”, recentemente colocada no mercado, terá diminuído bastante as gravidezes indesejadas que estão na base dos abortos. Mas eles continuam a acontecer e o recurso às parteiras de “vão de escada”, por todas as que não têm dinheiro para utilizarem clínicas privadas especializadas, continuam a alimentar os hospitais com mulheres para tratarem as sequelas clínicas dessas intervenções.
Esta é a realidade:
Primeiro, a grande ferida no espírito em consequência de uma decisão tão grave e profunda como a de abortar, que acompanha e atormenta as mulheres durante anos e, por vezes, a vida inteira como uma recordação de triste memória;
Depois, as feridas no corpo que põem em risco as suas vidas ou a possibilidade de voltarem a engravidar.
Estes continuam a ser os factos, não obstante tudo quanto se tem dito e feito sobre orientação, educação, aconselhamento e planeamento familiar na tentativa correcta, mas não suficiente para evitar que algumas mulheres tenham que se confrontar com a difícil decisão de impedirem uma maternidade que, na opinião delas, não estão em condições de assumir.
O quadro social em que as gravidezes indesejadas ocorrem é muito complexo e as situações as mais variadas, sendo certo que por razões de pobreza, ignorância e atraso de alguns sectores da nossa população, o tradicional recurso ao “desmancho” continua a ser a saída aparentemente óbvia e, claro, por falta de dinheiro, faz-se onde for mais barato.
Parece-me, sinceramente, que as questões colocadas no Referendo podem contribuir para desagravar, do ponto de vista humano, aquele que realmente interessa, os aspectos mais negativos da actual situação:
Em primeiro lugar, impedindo que mulheres, já fortemente atingidas pelo trauma do aborto sejam, ainda por cima, humilhadas e criminalizadas num processo com a exposição que lhe confere os Tribunais e os Média;
Em segundo lugar, ao encaminhar as mulheres para os Hospitais permite, e eu estou a pensar especialmente nas jovens, um acompanhamento por equipas de técnicos especializados que deverão ter um papel mais amplo do que a simples intervenção técnica na execução do aborto.
Se essa intervenção for pensada e levada à prática por equipas de técnicos preparados e vocacionados para esse tipo de intervenções, incluindo médicos, psicólogos e assistentes sociais, poder-se-á, então, retirar maiores benefícios.
Acredito nas vantagens que resultariam para essas jovens, muitas vezes num quadro de isolamento ou mal aconselhadas, a oportunidade de poderem ser acompanhadas por esses técnicos num ambiente de privacidade e por que não, de amizade e calor humano.
Todos quantos estão envolvidos e sofrem nestas situações, e são muitos, dispensam perfeitamente os dogmatismos e as querelas intermináveis dos intelectuais, moralistas e religiosos que em nada contribuem para os ajudar e também não podem, por outro lado, esperar indefinidamente pelos avanços sociais que tornem este problema de dimensão apenas residual.
Por estas razões, e sem pretender ir ao âmago de uma questão que tem muito a ver com a consciência de cada um e da qual ninguém arreda pé, eu vou votar Sim, não por que seja a favor do aborto, questão que, de resto, não está colocada, nem faria sentido colocar no âmbito da nossa cultura.
Mas, porque há uma realidade dolorosa e, dentro dela, há que ajudar as pessoas, diminuir o seu sofrimento e esperar que a sociedade portuguesa seja capaz de promover uma evolução do ponto de vista económico, social e do conhecimento que permita que estes dramas se extingam naturalmente e a vida de todos os cidadãos possa acontecer em condições de dignidade.
Ver com vantagem a leitura do Macroscópio sobre este problema.O aborto... Um conflito moral, político, jurídico, humano, transcendental