Memórias Futuras
Olhar o futuro pelo espelho retrovisor da história. Qual história? Que futuro?
sábado, abril 25, 2009
Tieta do Agreste
EPISÓDIO Nº 112
ONDE O AUTOR, ESSE CALHORDA, METE-SE COM ASSUNTOS QUE NÃO SÃO DE SUA CONTA E DOS QUAIS NADA ENTENDE
Ainda em vida e já em odor de santidade – retomo o pensamento do seminarista Ricardo, ao voltar à presença dos leitores para alguns rápidos e indispensáveis comentários com os quais busco fornecer base ideológica e consequência aos factos e às reacções dos personagens. Assim evito que me acusem de não estar engajado, de não ser participante, de fugir a comprometimento.
Não podem os senhores me culpar de metido, importuno e maçador: a quantas páginas já andamos no terceiro episódio desse arrastado relato, sem que eu haja interrompido a narrativa? Afinal cabe-me o direito de fazê-lo, sou o autor e não posso permitir que os personagens se dêem ao luxo de conduzirem sozinhos os acontecimentos ao sabor das emoções e ponto de vista nem sempre os mais convenientes à mensagem desejada.
Desta vez quem me faz tomar da máquina de escrever é Frei Timóteo, frade franciscano, ao que tudo indica um desses muitos sacerdotes progressistas que estão tentando reformar a Igreja, partindo de teorias ditas ecuménicas.
Reclamam, exigem um cristianismo militante, situado ao lado dos explorados contra os exploradores, da justiça contra a iniquidade, da liberdade contra a tirania. Querem limpar a Igreja de antiga incriminação: a de servir aos interesses das classes dominantes, dos aristocratas e dos burgueses sendo ópio do povo, quando não é Santa Inquisição em caça às bruxas.
Contra tais avançados sacerdotes que estão rompendo preconceitos e reformulando teses, quem sabe reconduzindo a fé cristã às suas origens, levanta-se grita violenta e agressiva, formulam-se libelos provocadores, acusações perigosas, são tachados de subversivos, onde já se viu tal coisa depois de Nero e de Calígula?
Na discussão de dogmas não me envolvo, por não ser causa minha, se bem que em princípio a polémica travada contenha interesse geral. Em matéria de religião mantenho-me neutro por não possuir nenhuma, a todas respeitando.
Reportando-me, porém a conceitos expressos pelo frade e a casos narrados pelo canoeiro Jonas, quero dar meu testemunho sobre o problema em causa: as relações entre castidade e santidade, tão discutidas, e o faço com o espírito livre de prejuízo de qualquer ordem, apenas no interesse gratuito de concorrer para completo esclarecimento do assunto.
Durante séculos e séculos, a castidade constituiu elemento indispensável, ou quase, à produção de um santo ou de uma santa. Quanto mais flagelada a carne, maior a possibilidade de beatificação. Assim consta ao que parece do direito canónico.
Não aprovo o profeta Jonas, duvidoso profeta de contrabando surgindo sobre o dorso de vorazes tubarões em lugar de sair do ventre da bíblica baleia, quando afirma em frase chula, eivada de palavrões, que padre se não cheira a vagina, cheira a anús, tentando, sem dúvida, estabelecer discutível conotação entre o celibato clerical e a pederastia. Ora isso nem sempre acontece, a conotação é imprópria e forçada. Sobra razão, não obstante, ao rude marujo, ao garantir a Ricardo que o pecado contra a castidade não impede o sacerdote de atingir a bem-aventurança e o milagre.
Não me proponho analisar teses morais, preceitos religiosos, quem sou eu? Apenas desejo constatar a evidência acima enunciada, citando exemplos e apresentando provas. Posso começar pelo próprio Frei Timóteo, em odor de santidade ainda em vida, pois é casado e pai de filhos, provou do fruto e isso não impede que entendidos e leigos o consideram um eleito de Deus, e como tal o proclamem e venerem. Casamento e filhos aconteceram antes da ordenação? É certo, não discuto. Não serve de exemplo, portanto? Eu retiro, não preciso dele, existem muitos, passo a outro.
Passo ao padre Inocêncio, falecido há pouco mais de um decénio, na avançada idade de noventa e seis Janeiros, ainda lúcido, capaz de distinguir uns dos outros seus tetranetos. Vigário por mais de cinquenta anos na cidade de Laranjeiras, enterrou com devoção e lágrimas, três concubinas, que lhe deram um total de dezanove filhos. Cinco, Deus levou na primeira infância, padre Inocêncio criou e educou catorze, oito varões, todos direitos, e seis moças, todas bem casadas – excepto Mariquinha, muito dada a homens a ponto de Rubião perder a paciência e requerer o desquite. Essa saiu a mim, disse o bom padre na ocasião, inocentando-a, tomando a si as culpas da filha: para quem já tinha tanto pecado, uns quantos a mais não aumentariam a pena. Na casa espaçosa cresceram netos e bisnetos, todos, portanto o honrado sobrenome do reverendo, Maltez, todos por Deus abençoados. Já avô de vários netos ainda fazia filhos, e quando lhe trouxeram o primeiro tetraneto, para que ele lhe deitasse a bênção e o batizasse, deu graças ao Senhor e o louvou em seu santo nome, não o fazendo em vão.
EPISÓDIO Nº 112
ONDE O AUTOR, ESSE CALHORDA, METE-SE COM ASSUNTOS QUE NÃO SÃO DE SUA CONTA E DOS QUAIS NADA ENTENDE
Ainda em vida e já em odor de santidade – retomo o pensamento do seminarista Ricardo, ao voltar à presença dos leitores para alguns rápidos e indispensáveis comentários com os quais busco fornecer base ideológica e consequência aos factos e às reacções dos personagens. Assim evito que me acusem de não estar engajado, de não ser participante, de fugir a comprometimento.
Não podem os senhores me culpar de metido, importuno e maçador: a quantas páginas já andamos no terceiro episódio desse arrastado relato, sem que eu haja interrompido a narrativa? Afinal cabe-me o direito de fazê-lo, sou o autor e não posso permitir que os personagens se dêem ao luxo de conduzirem sozinhos os acontecimentos ao sabor das emoções e ponto de vista nem sempre os mais convenientes à mensagem desejada.
Desta vez quem me faz tomar da máquina de escrever é Frei Timóteo, frade franciscano, ao que tudo indica um desses muitos sacerdotes progressistas que estão tentando reformar a Igreja, partindo de teorias ditas ecuménicas.
Reclamam, exigem um cristianismo militante, situado ao lado dos explorados contra os exploradores, da justiça contra a iniquidade, da liberdade contra a tirania. Querem limpar a Igreja de antiga incriminação: a de servir aos interesses das classes dominantes, dos aristocratas e dos burgueses sendo ópio do povo, quando não é Santa Inquisição em caça às bruxas.
Contra tais avançados sacerdotes que estão rompendo preconceitos e reformulando teses, quem sabe reconduzindo a fé cristã às suas origens, levanta-se grita violenta e agressiva, formulam-se libelos provocadores, acusações perigosas, são tachados de subversivos, onde já se viu tal coisa depois de Nero e de Calígula?
Na discussão de dogmas não me envolvo, por não ser causa minha, se bem que em princípio a polémica travada contenha interesse geral. Em matéria de religião mantenho-me neutro por não possuir nenhuma, a todas respeitando.
Reportando-me, porém a conceitos expressos pelo frade e a casos narrados pelo canoeiro Jonas, quero dar meu testemunho sobre o problema em causa: as relações entre castidade e santidade, tão discutidas, e o faço com o espírito livre de prejuízo de qualquer ordem, apenas no interesse gratuito de concorrer para completo esclarecimento do assunto.
Durante séculos e séculos, a castidade constituiu elemento indispensável, ou quase, à produção de um santo ou de uma santa. Quanto mais flagelada a carne, maior a possibilidade de beatificação. Assim consta ao que parece do direito canónico.
Não aprovo o profeta Jonas, duvidoso profeta de contrabando surgindo sobre o dorso de vorazes tubarões em lugar de sair do ventre da bíblica baleia, quando afirma em frase chula, eivada de palavrões, que padre se não cheira a vagina, cheira a anús, tentando, sem dúvida, estabelecer discutível conotação entre o celibato clerical e a pederastia. Ora isso nem sempre acontece, a conotação é imprópria e forçada. Sobra razão, não obstante, ao rude marujo, ao garantir a Ricardo que o pecado contra a castidade não impede o sacerdote de atingir a bem-aventurança e o milagre.
Não me proponho analisar teses morais, preceitos religiosos, quem sou eu? Apenas desejo constatar a evidência acima enunciada, citando exemplos e apresentando provas. Posso começar pelo próprio Frei Timóteo, em odor de santidade ainda em vida, pois é casado e pai de filhos, provou do fruto e isso não impede que entendidos e leigos o consideram um eleito de Deus, e como tal o proclamem e venerem. Casamento e filhos aconteceram antes da ordenação? É certo, não discuto. Não serve de exemplo, portanto? Eu retiro, não preciso dele, existem muitos, passo a outro.
Passo ao padre Inocêncio, falecido há pouco mais de um decénio, na avançada idade de noventa e seis Janeiros, ainda lúcido, capaz de distinguir uns dos outros seus tetranetos. Vigário por mais de cinquenta anos na cidade de Laranjeiras, enterrou com devoção e lágrimas, três concubinas, que lhe deram um total de dezanove filhos. Cinco, Deus levou na primeira infância, padre Inocêncio criou e educou catorze, oito varões, todos direitos, e seis moças, todas bem casadas – excepto Mariquinha, muito dada a homens a ponto de Rubião perder a paciência e requerer o desquite. Essa saiu a mim, disse o bom padre na ocasião, inocentando-a, tomando a si as culpas da filha: para quem já tinha tanto pecado, uns quantos a mais não aumentariam a pena. Na casa espaçosa cresceram netos e bisnetos, todos, portanto o honrado sobrenome do reverendo, Maltez, todos por Deus abençoados. Já avô de vários netos ainda fazia filhos, e quando lhe trouxeram o primeiro tetraneto, para que ele lhe deitasse a bênção e o batizasse, deu graças ao Senhor e o louvou em seu santo nome, não o fazendo em vão.
A REVOLUÇÃO DOS CRAVOS
Impossível não assinalar esta data, 25 de Abril de 1974, porque ela celebrará sempre o dia em que o “ Movimento dos Capitães” derrubou o regime que durante mais de quarenta anos perseguiu os cidadãos com a PIDE, polícia política que prendia e castigava as pessoas que discordavam do regime e manifestavam essa discordância, e punha em prática a censura que impedia que as ideias circulassem na imprensa, nos livros e oralmente entre as pessoas.
Por outras palavras, restabeleceu no país a liberdade. Esta é responsabilidade que cabe ao 25 de Abril, à Revolução que, felizmente, foi dos cravos e que deve ser imputada aos cidadãos que nela se envolveram e a levaram à prática, sem esquecer o contributo que ao longo dos anos foi sendo dado por muitas outras pessoas.
Restabelecida a liberdade, tudo o que de então para cá aconteceu no país é da responsabilidade dos portugueses e das conjunturas políticas que desde então vivemos.
Um povo só pode ser responsabilizado plenamente pelo curso da sua história nos períodos em que os cidadãos não vivam oprimidos por um poder que os ameace na sua liberdade e integridade física. Numa situação destas há uma distorção forçada dos comportamentos que alteram o rumo da história que inevitavelmente seria outra se vivida em liberdade.
Acusar o 25 de Abril do que quer que seja para além do restabelecimento da liberdade no país, só se entende por juízos precipitados, falta de discernimento ou por um comprometimento directo com interesses ligados ao regime anterior por quem, com essas acusações, pretenda “uma pequena vingança”.
Esperar-se-ia que as forças militares que derrubaram, pela força, o poder anterior pretendessem, após isso, exercê-lo, não obstante as desinteressadas intenções sempre anunciadas em situações deste género mas, em vez disso, o poder militar vitorioso, chamou representantes da sociedade civil e encarregou-os de constituír um governo livre e democrático.
Na história das revoluções esta mais parecia uma história da carochinha em que no final o jovem herói casa com a princesa, têm muitos filhos e são felizes para sempre… mas, desta vez, não foi história de “princesas”. O Movimento dos Capitães, responsável pela revolução, após a vitória, chamou um general insuspeito de revolucionário e pediu-lhe que assumisse o controle da situação tendo em vista a passagem a uma situação transitória de elaboração de uma nova Constituição que antecedesse eleições livres e democráticas.
A pureza dos ideais do 25 de Abril estava consumada e os jovens capitães mantiveram-se fiéis à sua palavra comprovando que, se a juventude se caracteriza, naturalmente, pela ingenuidade e imaturidade, neste caso ela provou ser pura, desinteressada, generosa e sincera.
Realçado este aspecto essencial do 25 de Abril, muitas coisas aconteceram de então para cá de erradas, que nos prejudicaram, que foram motivo de grandes “confusões”, especialmente no período do PREC (Período Revolucionário Em Curso) mas que constituíram, também, uma fase de grande efervescência ideológica, voluntarismo e de um despertar depois de tantos anos de “um apagado e vil silêncio”.
Hoje, e esqueçamos por um momento a recente e muito preocupante crise, depois de um longo período de dezenas de anos de estagnação a todos os níveis, vivemos num Portugal diferente em muitos aspectos: sociológicos, demográficos, políticos, culturais e paisagísticos… Era inevitável, depois da integração na Comunidade Europeia que nos abriu fronteiras alargando o nosso espaço económico, financeiro e de trabalho, com uma nova moeda, esquecido que foi o escudo, com a entrada de milhões e milhões de euros em grande parte responsáveis por esta “nova cara” com que hoje nos apresentamos ao mundo.
Vivemos numa democracia de partidos políticos, forma adoptada pela generalidade dos países europeus, com as especificidades próprias do temperamento, cultura e educação de cada um deles. Como dizia Churchil: “de todos os regimes o menos mau...”.
E quem não tem queixas da democracia em que vive? Quem não atribui aos políticos que nos governam as origens dos males que nos afligem? Quem não os responsabiliza, com ou sem razão, esquecendo que, no mínimo, somos nós que os elegemos e com isso nos tornamos co-responsáveis de tudo quanto acontece?
Todos temos que assumir a nossa quota-parte de responsabilidade quando vivemos em liberdade numa sociedade que não nos persegue, prende e castiga pelas nossas ideias e comportamentos no respeito por um quadro legal que livremente estabelecemos.
Mas, se compararmos uma sociedade a um enorme e complexo computador, logo nos lembraremos dos vírus que os afectam e dos quais nenhum está livre. Nesse outro enorme “computador” que é a nossa sociedade, o principal vírus que o afecta é o da“partidocracite”.
Podíamos falar do enriquecimento ilícito, da corrupção ao nível das mais altas decisões mas, se é verdade existir uma conexão entre grandes interesses e partidos políticos, nomeadamente os que participam em governos, não é menos verdade que, apesar de tudo, é em democracia que eles melhor podem ser combatidos… assim haja autêntica vontade política.
A corrupção e o enriquecimento ilícito que lhe está associado têm a ver, fundamentalmente, com pessoas e o exercício do poder. Os partidos, especialmente os que alternam no governo, têm os meios e estrita obrigação de lutar contra ele, colocando-o no Código Penal como um crime, perseguindo-o e punindo-o exemplarmente.
A partidocracite, empolando os interesses dos respectivos partidos, na defesa ou na luta pelo poder, sobrepondo-os aos da comunidade, confundindo-os com os do país, é, infelizmente, de uso corrente na maioria das sociedades democráticas, salvaguardadas as legítimas opções políticas com que cada partido se apresenta ao eleitorado.
Reconheçamos que a luta contra este vírus é muito difícil porque ele se disfarça e aparece revestido e disfarçado de muitas formas que confundem os cidadãos.
Os sistemas antivírus para este enorme computador não se compram nas lojas, instalam-se, é certo, mas um por um, num esforço colectivo e simultaneamente individual, pelo empenho de cada qual no estudo, pelos conteúdos das matérias que são ensinadas nas escolas e universidades e, finalmente, através de uma vivência cívica que leve em linha de conta “que há mais vida” para além do consumismo, dos interesses mesquinhos e das coisas meramente materiais.
Todos somos responsáveis e o país será aquele que os portugueses quiserem ou forem capazes de fazer, e isso, entre nós, passou a ser possível desde o 25 de Abril de 1974, não o esqueçamos, graças à Revolução dos Cravos!
Celebrar hoje o 25 de Abril de 1974, é confrontarmo-nos com aquilo que fomos e não fomos capazes de fazer no quadro de liberdade que ele nos devolveu, já lá vão trinta e cinco anos.
Naturalmente, que a ditadura de Salazar deixou um quadro pouco favorável ao nosso desenvolvimento futuro e quem a viveu sabe perfeitamente disso, mas não é mais possível ignorar que de há 35 anos para cá somos um dos países mais livres do mundo e é com a responsabilidade dessa liberdade que nos foi entregue pelo movimento dos Capitães de Abril que nos defrontamos hoje.
Não mais as legítimas desculpas da censura, das perseguições da polícia despótica da PIDE, do medo da denúncia, do analfabetismo, das fronteiras passadas a salto, do silêncio, da ignorância do mundo, não mais… de tudo isso ficou-nos a liberdade que a Revolução dos Cravos nos entregou para podermos voltar, todos nós, a sermos senhores do nosso futuro… esta a herança da Revolução e a grande responsabilidade que recaiu sobre o povo português: "terrível" legado.
Impossível não assinalar esta data, 25 de Abril de 1974, porque ela celebrará sempre o dia em que o “ Movimento dos Capitães” derrubou o regime que durante mais de quarenta anos perseguiu os cidadãos com a PIDE, polícia política que prendia e castigava as pessoas que discordavam do regime e manifestavam essa discordância, e punha em prática a censura que impedia que as ideias circulassem na imprensa, nos livros e oralmente entre as pessoas.
Por outras palavras, restabeleceu no país a liberdade. Esta é responsabilidade que cabe ao 25 de Abril, à Revolução que, felizmente, foi dos cravos e que deve ser imputada aos cidadãos que nela se envolveram e a levaram à prática, sem esquecer o contributo que ao longo dos anos foi sendo dado por muitas outras pessoas.
Restabelecida a liberdade, tudo o que de então para cá aconteceu no país é da responsabilidade dos portugueses e das conjunturas políticas que desde então vivemos.
Um povo só pode ser responsabilizado plenamente pelo curso da sua história nos períodos em que os cidadãos não vivam oprimidos por um poder que os ameace na sua liberdade e integridade física. Numa situação destas há uma distorção forçada dos comportamentos que alteram o rumo da história que inevitavelmente seria outra se vivida em liberdade.
Acusar o 25 de Abril do que quer que seja para além do restabelecimento da liberdade no país, só se entende por juízos precipitados, falta de discernimento ou por um comprometimento directo com interesses ligados ao regime anterior por quem, com essas acusações, pretenda “uma pequena vingança”.
Esperar-se-ia que as forças militares que derrubaram, pela força, o poder anterior pretendessem, após isso, exercê-lo, não obstante as desinteressadas intenções sempre anunciadas em situações deste género mas, em vez disso, o poder militar vitorioso, chamou representantes da sociedade civil e encarregou-os de constituír um governo livre e democrático.
Na história das revoluções esta mais parecia uma história da carochinha em que no final o jovem herói casa com a princesa, têm muitos filhos e são felizes para sempre… mas, desta vez, não foi história de “princesas”. O Movimento dos Capitães, responsável pela revolução, após a vitória, chamou um general insuspeito de revolucionário e pediu-lhe que assumisse o controle da situação tendo em vista a passagem a uma situação transitória de elaboração de uma nova Constituição que antecedesse eleições livres e democráticas.
A pureza dos ideais do 25 de Abril estava consumada e os jovens capitães mantiveram-se fiéis à sua palavra comprovando que, se a juventude se caracteriza, naturalmente, pela ingenuidade e imaturidade, neste caso ela provou ser pura, desinteressada, generosa e sincera.
Realçado este aspecto essencial do 25 de Abril, muitas coisas aconteceram de então para cá de erradas, que nos prejudicaram, que foram motivo de grandes “confusões”, especialmente no período do PREC (Período Revolucionário Em Curso) mas que constituíram, também, uma fase de grande efervescência ideológica, voluntarismo e de um despertar depois de tantos anos de “um apagado e vil silêncio”.
Hoje, e esqueçamos por um momento a recente e muito preocupante crise, depois de um longo período de dezenas de anos de estagnação a todos os níveis, vivemos num Portugal diferente em muitos aspectos: sociológicos, demográficos, políticos, culturais e paisagísticos… Era inevitável, depois da integração na Comunidade Europeia que nos abriu fronteiras alargando o nosso espaço económico, financeiro e de trabalho, com uma nova moeda, esquecido que foi o escudo, com a entrada de milhões e milhões de euros em grande parte responsáveis por esta “nova cara” com que hoje nos apresentamos ao mundo.
Vivemos numa democracia de partidos políticos, forma adoptada pela generalidade dos países europeus, com as especificidades próprias do temperamento, cultura e educação de cada um deles. Como dizia Churchil: “de todos os regimes o menos mau...”.
E quem não tem queixas da democracia em que vive? Quem não atribui aos políticos que nos governam as origens dos males que nos afligem? Quem não os responsabiliza, com ou sem razão, esquecendo que, no mínimo, somos nós que os elegemos e com isso nos tornamos co-responsáveis de tudo quanto acontece?
Todos temos que assumir a nossa quota-parte de responsabilidade quando vivemos em liberdade numa sociedade que não nos persegue, prende e castiga pelas nossas ideias e comportamentos no respeito por um quadro legal que livremente estabelecemos.
Mas, se compararmos uma sociedade a um enorme e complexo computador, logo nos lembraremos dos vírus que os afectam e dos quais nenhum está livre. Nesse outro enorme “computador” que é a nossa sociedade, o principal vírus que o afecta é o da“partidocracite”.
Podíamos falar do enriquecimento ilícito, da corrupção ao nível das mais altas decisões mas, se é verdade existir uma conexão entre grandes interesses e partidos políticos, nomeadamente os que participam em governos, não é menos verdade que, apesar de tudo, é em democracia que eles melhor podem ser combatidos… assim haja autêntica vontade política.
A corrupção e o enriquecimento ilícito que lhe está associado têm a ver, fundamentalmente, com pessoas e o exercício do poder. Os partidos, especialmente os que alternam no governo, têm os meios e estrita obrigação de lutar contra ele, colocando-o no Código Penal como um crime, perseguindo-o e punindo-o exemplarmente.
A partidocracite, empolando os interesses dos respectivos partidos, na defesa ou na luta pelo poder, sobrepondo-os aos da comunidade, confundindo-os com os do país, é, infelizmente, de uso corrente na maioria das sociedades democráticas, salvaguardadas as legítimas opções políticas com que cada partido se apresenta ao eleitorado.
Reconheçamos que a luta contra este vírus é muito difícil porque ele se disfarça e aparece revestido e disfarçado de muitas formas que confundem os cidadãos.
Os sistemas antivírus para este enorme computador não se compram nas lojas, instalam-se, é certo, mas um por um, num esforço colectivo e simultaneamente individual, pelo empenho de cada qual no estudo, pelos conteúdos das matérias que são ensinadas nas escolas e universidades e, finalmente, através de uma vivência cívica que leve em linha de conta “que há mais vida” para além do consumismo, dos interesses mesquinhos e das coisas meramente materiais.
Todos somos responsáveis e o país será aquele que os portugueses quiserem ou forem capazes de fazer, e isso, entre nós, passou a ser possível desde o 25 de Abril de 1974, não o esqueçamos, graças à Revolução dos Cravos!
Celebrar hoje o 25 de Abril de 1974, é confrontarmo-nos com aquilo que fomos e não fomos capazes de fazer no quadro de liberdade que ele nos devolveu, já lá vão trinta e cinco anos.
Naturalmente, que a ditadura de Salazar deixou um quadro pouco favorável ao nosso desenvolvimento futuro e quem a viveu sabe perfeitamente disso, mas não é mais possível ignorar que de há 35 anos para cá somos um dos países mais livres do mundo e é com a responsabilidade dessa liberdade que nos foi entregue pelo movimento dos Capitães de Abril que nos defrontamos hoje.
Não mais as legítimas desculpas da censura, das perseguições da polícia despótica da PIDE, do medo da denúncia, do analfabetismo, das fronteiras passadas a salto, do silêncio, da ignorância do mundo, não mais… de tudo isso ficou-nos a liberdade que a Revolução dos Cravos nos entregou para podermos voltar, todos nós, a sermos senhores do nosso futuro… esta a herança da Revolução e a grande responsabilidade que recaiu sobre o povo português: "terrível" legado.
sexta-feira, abril 24, 2009
Tieta do Agreste
EPISÓDIO Nº 111
- Por isso você quis saber dos hipies, por causa do seu irmão?
- Não meu pai. É que, ontem, eu estava de coração pesado, na certeza de ter ofendido a Deus e posto fim à minha vocação, estava cheio de raiva e de ciúme, como um amaldiçoado; só consegui dormir na praia, depois de nadar muito. Quando acordei os hipies me cercavam e cantavam para mim. Eles sossegaram meu coração, me deram a paz que eu procurava.
- Paz e amor, são palavras de Deus as que eles usam. Pássaros do jardim celeste, eu não lhe disse? Você sente vocação para o sacerdócio ou foi mandado para o seminário?
Ricardo medita, se interroga, antes de responder:
- Mãe tinha feito uma promessa, acho que pela saúde de meu pai. Mas quando ela me contou, eu mesmo quis ir, desde pequeno Mãe me ensinou a temer a Deus.
- A temer ou a amar?
- E se pode amar a Deus sem ter medo dele? Não sei separar as duas coisas, meu pai.
- Pois deve separá-las. Nada do que faça por medo é virtude. Nada do que faça por amor é pecado. Deus não preza o medo nem os medrosos. Você deseja mesmo ser padre?
- Desejo, sim, meu pai, mas não posso mais.
- E porque não pode se deseja?
- Não mereço. Pequei, violei a lei de Deus, desfiz o trato, rompi o voto.
- Deus não é homem de negócios, meu filho, não faz tratos de toma e dá e quando um filho seu viola a lei tem o remédio à mão, a confissão. Você pecou contra a castidade, não foi?
- Foi, meu pai. Com…
- Não lhe perguntei com quem, isso não muda a qualidade da culpa.
- Pensei, meu pai.
- Diga-me apenas uma coisa: apesar do medo do castigo, você detestou o pecado ou acha que valeu a pena, mesmo tendo de pagar no inferno?
- Apesar do medo não me arrependi, meu pai. Não vou mentir.
Sorriu o frade com ternura o frade com ternura e disse:
- Agora se ajoelhe para receber a penitência e a absolvição.
- Mas meu pai, como vou receber a absolvição, senão me confessei ainda?
- O que você vem de fazer, senão se confessar? Reze três padres-nossos e cinco ave-marias e, se pecar de novo, não fuja de Deus com medo como se ele fosse um carrasco. Se confesse a um padre, ou a Deus directamente.
Ajoelhou-se Ricardo, recebeu bênção e absolvição mas ainda quer saber se deve ou não continuar no seminário maior preparando-se para a santa missão de levar a palavra de Deus aos homens.
- Meu pai, depois do que eu fiz ainda posso aspirar ao sacerdócio? Ainda sou digno?
- Por que não? Há quem diga que os padres devem casar, há quem diga que não, essa é uma discussão difícil que não cabe aqui. Eu não lhe sei dizer qual o melhor padre: se aquele que castiga o corpo, deixando-o amargar-se no desejo, aquele que se oprime para assim servir a Deus, macerando a própria carne, violentando-se, ou o que sofre por ter pecado, aquele que não resiste ao apelo, se entrega e se levanta para cair de novo. Um se martiriza, inimigo do próprio corpo, é forte, se santifica talvez. O outro peca, é fraco, mas ao pecar se humaniza, abranda o coração, não vive em luta com o próprio corpo. Qual deles pode melhor servir a Deus e aos homens? Não posso lhe dizer, sabe por quê?
- Ricardo fita o sacerdote, frágil carcaça, olhos de água, luminosos, a mão ossuda que o abençoara e absolvera do pecado:
- Por quê, meu pai?
A voz de Frei Timóteo é cálida e fraterna:
- Quando eu me ordenei já era um velho. Velho e viúvo. Fui casado, sou pai de quatro filhos, tenho o corpo em paz. Procure servir a Deus, servindo aos homens, não sinta medo de Deus nem da vida; agindo assim será um bom pastor.
- E o demónio, meu pai?
- O demónio existe e se revela no ódio e na opressão. Antes de ter medo do pecado, meu filho, tenha medo da virtude, quando ela for triste e quiser limitar o homem. A virtude é o oposto da tristeza, o pecado é o oposto da alegria. Deus fez o homem livre, o demónio o quer vencido pelo medo. O demónio é a guerra, Deus é a paz e o amor. Vá em paz, meu filho, volte todas as vezes que quiser e, sobretudo, não tenha medo.
Ricardo beija a mão de Frei Timóteo, recolhe os embrulhos:
- Obrigado, meu pai, vou em paz, agora eu sei.
Da canoa se volta, para novamente ver na tarde luminosa o frade tão frágil e tão forte. Ainda em vida e já em odor de santidade.
- Não meu pai. É que, ontem, eu estava de coração pesado, na certeza de ter ofendido a Deus e posto fim à minha vocação, estava cheio de raiva e de ciúme, como um amaldiçoado; só consegui dormir na praia, depois de nadar muito. Quando acordei os hipies me cercavam e cantavam para mim. Eles sossegaram meu coração, me deram a paz que eu procurava.
- Paz e amor, são palavras de Deus as que eles usam. Pássaros do jardim celeste, eu não lhe disse? Você sente vocação para o sacerdócio ou foi mandado para o seminário?
Ricardo medita, se interroga, antes de responder:
- Mãe tinha feito uma promessa, acho que pela saúde de meu pai. Mas quando ela me contou, eu mesmo quis ir, desde pequeno Mãe me ensinou a temer a Deus.
- A temer ou a amar?
- E se pode amar a Deus sem ter medo dele? Não sei separar as duas coisas, meu pai.
- Pois deve separá-las. Nada do que faça por medo é virtude. Nada do que faça por amor é pecado. Deus não preza o medo nem os medrosos. Você deseja mesmo ser padre?
- Desejo, sim, meu pai, mas não posso mais.
- E porque não pode se deseja?
- Não mereço. Pequei, violei a lei de Deus, desfiz o trato, rompi o voto.
- Deus não é homem de negócios, meu filho, não faz tratos de toma e dá e quando um filho seu viola a lei tem o remédio à mão, a confissão. Você pecou contra a castidade, não foi?
- Foi, meu pai. Com…
- Não lhe perguntei com quem, isso não muda a qualidade da culpa.
- Pensei, meu pai.
- Diga-me apenas uma coisa: apesar do medo do castigo, você detestou o pecado ou acha que valeu a pena, mesmo tendo de pagar no inferno?
- Apesar do medo não me arrependi, meu pai. Não vou mentir.
Sorriu o frade com ternura o frade com ternura e disse:
- Agora se ajoelhe para receber a penitência e a absolvição.
- Mas meu pai, como vou receber a absolvição, senão me confessei ainda?
- O que você vem de fazer, senão se confessar? Reze três padres-nossos e cinco ave-marias e, se pecar de novo, não fuja de Deus com medo como se ele fosse um carrasco. Se confesse a um padre, ou a Deus directamente.
Ajoelhou-se Ricardo, recebeu bênção e absolvição mas ainda quer saber se deve ou não continuar no seminário maior preparando-se para a santa missão de levar a palavra de Deus aos homens.
- Meu pai, depois do que eu fiz ainda posso aspirar ao sacerdócio? Ainda sou digno?
- Por que não? Há quem diga que os padres devem casar, há quem diga que não, essa é uma discussão difícil que não cabe aqui. Eu não lhe sei dizer qual o melhor padre: se aquele que castiga o corpo, deixando-o amargar-se no desejo, aquele que se oprime para assim servir a Deus, macerando a própria carne, violentando-se, ou o que sofre por ter pecado, aquele que não resiste ao apelo, se entrega e se levanta para cair de novo. Um se martiriza, inimigo do próprio corpo, é forte, se santifica talvez. O outro peca, é fraco, mas ao pecar se humaniza, abranda o coração, não vive em luta com o próprio corpo. Qual deles pode melhor servir a Deus e aos homens? Não posso lhe dizer, sabe por quê?
- Ricardo fita o sacerdote, frágil carcaça, olhos de água, luminosos, a mão ossuda que o abençoara e absolvera do pecado:
- Por quê, meu pai?
A voz de Frei Timóteo é cálida e fraterna:
- Quando eu me ordenei já era um velho. Velho e viúvo. Fui casado, sou pai de quatro filhos, tenho o corpo em paz. Procure servir a Deus, servindo aos homens, não sinta medo de Deus nem da vida; agindo assim será um bom pastor.
- E o demónio, meu pai?
- O demónio existe e se revela no ódio e na opressão. Antes de ter medo do pecado, meu filho, tenha medo da virtude, quando ela for triste e quiser limitar o homem. A virtude é o oposto da tristeza, o pecado é o oposto da alegria. Deus fez o homem livre, o demónio o quer vencido pelo medo. O demónio é a guerra, Deus é a paz e o amor. Vá em paz, meu filho, volte todas as vezes que quiser e, sobretudo, não tenha medo.
Ricardo beija a mão de Frei Timóteo, recolhe os embrulhos:
- Obrigado, meu pai, vou em paz, agora eu sei.
Da canoa se volta, para novamente ver na tarde luminosa o frade tão frágil e tão forte. Ainda em vida e já em odor de santidade.
quinta-feira, abril 23, 2009
Tieta do Agreste
EPISÓDIO Nº 110
DA INESPERADA CONFISSÃO
Ao se dirigir à praia para tomar a canoa onde Jonas o espera para levá-lo de volta a Mangue Seco, nas mãos os embrulhos com o serrote novo e os quilos de pregos. Ricardo enxerga, sentado na espreguiçadeira, à sombra de um pé de tamarinho de tronco secular, silhueta muito sua conhecida. Apesar de calça de brim e da camisa esporte, reconhece Frei Timóteo e se recorda que os franciscanos de São Cristóvão possuem uma casa de veraneio no arraial do Saco.
Aproxima-se e lhe pede a bênção. O frade busca reconhecê-lo, onde viu aquele rosto adolescente? Ricardo explica: no seminário, meu pai. Não é seu aluno, ainda está terminando o seminário menor, o curso secundário, somente depois vai realmente começar; contudo, já chegou à fronteira da decisão. E chegou, não em tranquila caminhada mas em desesperada luta com o demónio.
- Meu pai, quando posso vir me confessar?
- Quando quiser, meu filho, quando sentir necessidade.
- Pode ser agora mesmo, meu pai?
- Se deseja, meu filho.
Ricardo fica parado, esperando, certamente Frei Timóteo vai vestir a sotaina e levá-lo ao confessionário na capela do arraial. Mas o frade aponta a outra espreguiçadeira:
- Descanse os embrulhos, sente aqui junto de mim, primeiro vamos conversar, depois eu lhe confesso. A tarde está bonita, vamos aproveitá-la, Deus a faz assim gloriosa para que os homens fiquem felizes. A felicidade dos homens é a maior preocupação de Deus. Você está aqui de férias?
- Estou, sim, meu pai. Quer dizer, aqui não, em Mangue Seco.
- Mangue Seco é o lugar mais belo do mundo. Não é verdade que Deus tenha descansado ao sétimo dia, como rezam as escrituras. – O frade riu, como se achasse graça ao absurdo que vinha de pronunciar. – No sétimo dia o Padre Eterno estava inspirado, resolveu escrever um poema, fez Mangue Seco. Aliás, até hoje continua fazendo Mangue Seco, com a ajuda do vento, não é mesmo? Você está com sua família?
- Só com a minha tia mas Há três dias estou sozinho, ela foi a Agreste, eu sou de lá. Minha tia mora em São Paulo, veio passear, tinha ido embora há muito tempo. Eu nunca tinha visto ela antes.
Como o frade não comentasse, prossegue:
- A tia está fazendo uma casa em Mangue Seco, comprou terreno, é rica. Eu estou tomando conta da obra. Vim buscar material. O pedreiro, o carpinteiro, os serventes são daqui.
- O povo de Mangue Seco não exerce esses ofícios, quem nasce ali só sabe lidar com o mar e não é pouco. Raça forte, meu filho.
- Meu pai, um dia no seminário ouvi o senhor falando dos hipies para os reverendos padres, dizendo bem deles, dizendo que não são ruins.
- Não me lembro desse dia especialmente mas só digo bem dos hipies, são pássaros do jardim de Deus, todos eles, os místicos e os ateus.
- Os místicos e os ateus, com pode ser isso, meu pai? Não cabe em meu entendimento.
- Não é o rótulo que dá qualidade há bebida, meu filho. Para Deus o que conta é o homem e não o rótulo. Você está com vontade de deixar o seminário e seguir com os hipies?
- Não, meu pai. Não sei se tenho ou não vontade de ir com eles, nunca pensei isso. Mas, se tivesse, acho que não ia porque a minha mãe era capaz de morrer. Para ela os hipies são demónios, encontrou alguns em Aracajú, ficou horrorizada. Tem medo que meu irmão, se deparar com eles, vá atrás. Meu irmão menor, Peto. Ainda não fez treze anos e não gosta de estudar.
EPISÓDIO Nº 110
DA INESPERADA CONFISSÃO
Ao se dirigir à praia para tomar a canoa onde Jonas o espera para levá-lo de volta a Mangue Seco, nas mãos os embrulhos com o serrote novo e os quilos de pregos. Ricardo enxerga, sentado na espreguiçadeira, à sombra de um pé de tamarinho de tronco secular, silhueta muito sua conhecida. Apesar de calça de brim e da camisa esporte, reconhece Frei Timóteo e se recorda que os franciscanos de São Cristóvão possuem uma casa de veraneio no arraial do Saco.
Aproxima-se e lhe pede a bênção. O frade busca reconhecê-lo, onde viu aquele rosto adolescente? Ricardo explica: no seminário, meu pai. Não é seu aluno, ainda está terminando o seminário menor, o curso secundário, somente depois vai realmente começar; contudo, já chegou à fronteira da decisão. E chegou, não em tranquila caminhada mas em desesperada luta com o demónio.
- Meu pai, quando posso vir me confessar?
- Quando quiser, meu filho, quando sentir necessidade.
- Pode ser agora mesmo, meu pai?
- Se deseja, meu filho.
Ricardo fica parado, esperando, certamente Frei Timóteo vai vestir a sotaina e levá-lo ao confessionário na capela do arraial. Mas o frade aponta a outra espreguiçadeira:
- Descanse os embrulhos, sente aqui junto de mim, primeiro vamos conversar, depois eu lhe confesso. A tarde está bonita, vamos aproveitá-la, Deus a faz assim gloriosa para que os homens fiquem felizes. A felicidade dos homens é a maior preocupação de Deus. Você está aqui de férias?
- Estou, sim, meu pai. Quer dizer, aqui não, em Mangue Seco.
- Mangue Seco é o lugar mais belo do mundo. Não é verdade que Deus tenha descansado ao sétimo dia, como rezam as escrituras. – O frade riu, como se achasse graça ao absurdo que vinha de pronunciar. – No sétimo dia o Padre Eterno estava inspirado, resolveu escrever um poema, fez Mangue Seco. Aliás, até hoje continua fazendo Mangue Seco, com a ajuda do vento, não é mesmo? Você está com sua família?
- Só com a minha tia mas Há três dias estou sozinho, ela foi a Agreste, eu sou de lá. Minha tia mora em São Paulo, veio passear, tinha ido embora há muito tempo. Eu nunca tinha visto ela antes.
Como o frade não comentasse, prossegue:
- A tia está fazendo uma casa em Mangue Seco, comprou terreno, é rica. Eu estou tomando conta da obra. Vim buscar material. O pedreiro, o carpinteiro, os serventes são daqui.
- O povo de Mangue Seco não exerce esses ofícios, quem nasce ali só sabe lidar com o mar e não é pouco. Raça forte, meu filho.
- Meu pai, um dia no seminário ouvi o senhor falando dos hipies para os reverendos padres, dizendo bem deles, dizendo que não são ruins.
- Não me lembro desse dia especialmente mas só digo bem dos hipies, são pássaros do jardim de Deus, todos eles, os místicos e os ateus.
- Os místicos e os ateus, com pode ser isso, meu pai? Não cabe em meu entendimento.
- Não é o rótulo que dá qualidade há bebida, meu filho. Para Deus o que conta é o homem e não o rótulo. Você está com vontade de deixar o seminário e seguir com os hipies?
- Não, meu pai. Não sei se tenho ou não vontade de ir com eles, nunca pensei isso. Mas, se tivesse, acho que não ia porque a minha mãe era capaz de morrer. Para ela os hipies são demónios, encontrou alguns em Aracajú, ficou horrorizada. Tem medo que meu irmão, se deparar com eles, vá atrás. Meu irmão menor, Peto. Ainda não fez treze anos e não gosta de estudar.
quarta-feira, abril 22, 2009
A Entrevista de Sócrates
Estou à vontade, não sou analista, não tenho pretensões a tal e entre a realidade da actual situação política e económica que vivemos e os episódios da história da Tieta, do Jorge Amado, prefiro estes, de longe.
Estar à frente do governo num momento como este constitui, para além do mais, um acto de coragem e não vale a pena dizerem que só lá está quem quer porque essa resposta não invalida em nada a afirmação.
É dramático assistir ao que se passa nas empresas por este país fora (europa e mundo) e perceber a nossa impotência, do governo deste país ou de qualquer outro, perante a dimensão e gravidade da crise.
É pois muito fácil compreender a preocupação e a angústia dos chefes de governo que exerçam as suas funções com sentido das responsabilidades o que, até prova em contrário, estou convencido ser o caso de José Sócrates.
Pois, num quadro destes, assistimos a uma entrevista surrealista, a fazer lembrar um interrogatório policial no qual, mais de dois terços das perguntas e do tempo gasto, tiveram a ver com o chamado e mal fadado caso “freeport” e com a “leitura” das afirmações do Sr. Presidente da República quanto ao seu destinatário, num exercício de adivinhação inútil e inconsequente.
O 1º Ministro também ouviu as afirmações do Sr. Presidente da República e, surpresa das surpresas, concordou com elas… que os projectos devem obedecer a estudos de custos benefícios, parece que, pela primeira vez, estão lá mas ninguém quer saber deles embora adorem mencioná-los, que a rendibilidade das auto estradas tem a ver com o volume de trânsito que passa nelas, parece óbvio… mas por que não admitir que esse trânsito pode aumentar na eventualidade do desenvolvimento das regiões que serve? E se elas não estiverem lá como poderão servir esse desenvolvimento? E que diriam, nesse caso, as gerações futuras? E que resposta dar então às terríveis assimetrias entre o litoral e o interior do país?
Os inquiridores, desculpem, os entrevistadores ficaram desapontados… afinal José Sócrates estava de acordo com Cavaco e, de repente, o balão esvaziou-se… que pena, Judite de Sousa perdeu a oportunidade de dar mais uma ajudinha ao seu esposo, presidente da Câmara de Sintra e destacado dirigente do partido da oposição.
Vale tudo, Sócrates, até à data excluído por quem de direito neste país em matéria de Justiça, mas incriminado por Manuela Moura Guedes, (menina mimada do seu marido o todo poderoso Director da TVI, José Eduardo Moniz) que lhe devota um ódio, não sei se morte ou da vida, queixa-se, e com razão, que está a ser objecto de um processo Kafekuiano e toda a oposição o acusa de se vitimar… francamente, não há pachorra!
José Sócrates esteve bem, foi firme, corajoso, positivo e demonstrou, mais uma vez, garra e espírito de luta, não obstante poder estar-se em desacordo com esta ou aquela medida, tomada ou não pelo seu governo mas, na actual conjuntura, este homem e o seu ministro das Finanças, até à data, deixam-me descansado, o que já é muito na presente situação.
Infelizmente não têm uma varinha mágica, pois não.Pelas promessas que ouvimos têm que pedi-la ao ex-ministro Paulo Portas que tinha uma e não a usou quando ganhou votos a prometer pensões aos ex-combatentes do ultramar.
Estar à frente do governo num momento como este constitui, para além do mais, um acto de coragem e não vale a pena dizerem que só lá está quem quer porque essa resposta não invalida em nada a afirmação.
É dramático assistir ao que se passa nas empresas por este país fora (europa e mundo) e perceber a nossa impotência, do governo deste país ou de qualquer outro, perante a dimensão e gravidade da crise.
É pois muito fácil compreender a preocupação e a angústia dos chefes de governo que exerçam as suas funções com sentido das responsabilidades o que, até prova em contrário, estou convencido ser o caso de José Sócrates.
Pois, num quadro destes, assistimos a uma entrevista surrealista, a fazer lembrar um interrogatório policial no qual, mais de dois terços das perguntas e do tempo gasto, tiveram a ver com o chamado e mal fadado caso “freeport” e com a “leitura” das afirmações do Sr. Presidente da República quanto ao seu destinatário, num exercício de adivinhação inútil e inconsequente.
O 1º Ministro também ouviu as afirmações do Sr. Presidente da República e, surpresa das surpresas, concordou com elas… que os projectos devem obedecer a estudos de custos benefícios, parece que, pela primeira vez, estão lá mas ninguém quer saber deles embora adorem mencioná-los, que a rendibilidade das auto estradas tem a ver com o volume de trânsito que passa nelas, parece óbvio… mas por que não admitir que esse trânsito pode aumentar na eventualidade do desenvolvimento das regiões que serve? E se elas não estiverem lá como poderão servir esse desenvolvimento? E que diriam, nesse caso, as gerações futuras? E que resposta dar então às terríveis assimetrias entre o litoral e o interior do país?
Os inquiridores, desculpem, os entrevistadores ficaram desapontados… afinal José Sócrates estava de acordo com Cavaco e, de repente, o balão esvaziou-se… que pena, Judite de Sousa perdeu a oportunidade de dar mais uma ajudinha ao seu esposo, presidente da Câmara de Sintra e destacado dirigente do partido da oposição.
Vale tudo, Sócrates, até à data excluído por quem de direito neste país em matéria de Justiça, mas incriminado por Manuela Moura Guedes, (menina mimada do seu marido o todo poderoso Director da TVI, José Eduardo Moniz) que lhe devota um ódio, não sei se morte ou da vida, queixa-se, e com razão, que está a ser objecto de um processo Kafekuiano e toda a oposição o acusa de se vitimar… francamente, não há pachorra!
José Sócrates esteve bem, foi firme, corajoso, positivo e demonstrou, mais uma vez, garra e espírito de luta, não obstante poder estar-se em desacordo com esta ou aquela medida, tomada ou não pelo seu governo mas, na actual conjuntura, este homem e o seu ministro das Finanças, até à data, deixam-me descansado, o que já é muito na presente situação.
Infelizmente não têm uma varinha mágica, pois não.Pelas promessas que ouvimos têm que pedi-la ao ex-ministro Paulo Portas que tinha uma e não a usou quando ganhou votos a prometer pensões aos ex-combatentes do ultramar.
terça-feira, abril 21, 2009
Tieta do Agreste
EPISÓDIO Nº 109
DA MEDITAÇÃO
ESPIRITUAL
Ainda adormecido, percebeu um rumor de risos alegres, som de violão e a melodia de um acalanto tão bonito e apaziguante que nele se embalou, encontrando por fim Tieta num extenso e tranquilo território de campo e praia, morros e dunas; nua com um bordão de flores retirado do altar de São José, ela conduz irrequietas cabras, leva-as a pastar nas ondas. Os pés alados não tocam a areia, tampouco os de Ricardo. Dão-se as mãos e se encaminham, limpos de corpo e alma, inocentes, para a mão de Deus aberta para recebê-los. Deus contem o mundo em seu regaço: o campo, a praia, o mar, as cabras e os amantes.
Soam então as trombetas do juízo final, terna cantiga de ninar e o profeta Jonas, velho pescador de contrabandos, eleva-se das águas, cavalgando um tubarão, e proclama a verdade inconteste do Senhor: nenhum homem seja rico ou pobre, velho ou moço, forte ou fraco, pode viver sem mulher, nem mulher sem homem, é contra a lei de Deus. Ruem as muralhas do mar, quando Jonas, esticando o cotoco do braço, ensina que o amor não é pecado, nem mesmo de tia com sobrinho, de viúva com seminarista. Uma menina vem e orna de flores os cabelos de Tieta e os de Ricardo e diz paz e amor, numa voz de passarinho.
Música e canto prosseguem além do sonho e, aos toques do dedo da criança, Ricardo descerra os olhos. Recorda-se do desvario da noite do ciúme, da desesperada prova de natação, da queda, exausto e nu, sobre a areia onde dormira e ainda se encontra. A menina lhe entrega a última flor, açucena do campo; ele está cercado por uma roda de moças e rapazes, algumas crianças, algumas crianças, todos igualmente nus e sorridentes, a cantar para ninar seu sono. Acalanto a aquietar-lhe o coração, uma canção estranha, portadora de paz e alegria, música celeste. O violão que o magricela tange sobre o peito é harpa de anjo. Ricardo senta-se devagar, sorri.
Não se importa de estar completamente nu, nem repara, admirado ou curioso, com malícia ou cobiça, na nudez em torno, olha simplesmente e vê as moças belas, algumas quase meninas de tão jovens, os rapazes barbudos ou imberbes.
Cabelos compridos, por vezes rolando sobre os ombros, não eram assim os cabelos de Jesus? Noutros, as crespas cabeleiras desabrocham em grandes flores desfiadas ou em emaranhados ninhos de pássaros. A roda prossegue em canto e dança, ciranda, cirandinha, vamos todos cirandar. Ricardo põe-se de pé.
Encontra-se completamente livre do medo, da servidão, do pecado. Na barra da manhã, a dança e o canto, o sorriso, a tranquila face das moças e dos rapazes restituem-lhe a alegria e a paz perdidas.
Libertos do tempo, sem pressa e sem horário, cantam e dançam para ele na atmosfera azul onde nasce o dia. Uma das moças, a mãe da menina resgatada das ondas, na véspera, deixa a roda, se aproxima e o beija na face e sobre os lábios e Ricardo conheceu então a fraternidade, soube-lhe o significado e o gosto. Depois, correram todos para o mar e as crianças, tomando-o pela mão o conduziram.
Tudo era mistério, sonho, fantasia. Sobre as águas serenas a manhã desponta, enquanto moças e rapazes cortam as ondas mansas e as crianças recolhem conchas azuis, vermelhas, brancas, cor-de-rosa. Alguns casais amam-se na madrugada mas Ricardo não procura ver nem saber, estendido entre eles na praia, em silêncio, cercado de conchas que as crianças lhe oferecem.
Depois, tomando das roupas velhas, desbotadas, rotas, poucas e precárias, reunindo a meninada, nada lhe pediram e sim lhe deram alguma coisa grande, antes desconhecida para ele, uma pureza nova, não aquela do seminário dependente do medo e do castigo; agora o pecado já não existe. Nem o demónio, nem a maldade, nem o desespero varridos da face da terra. Para sempre.
Da fímbria da praia, do começo do mar, gritam em despedida: paz e amor; e vão-se embora. Paz e amor, irmão. Ricardo ficou parado, quieto e redimido.
Tieta do Agreste
EPISÓDIO Nº 108
Na ausência da tia, porém, permanece leproso, marcado com o ferrete dos malditos, em danação, sem instância de saúde, pois ela não estando, os demónios se apossam dele e o revestem inteiro de pecado, exibindo-o indigno e perdido.
Na rede Ricardo a procura, por que ela demora tanto? Abandonara o colchão de crina da cama do Comandante e de dona Laura, como deitar-se ali sem a ingrata? Em Agreste, quando ainda lutava para manter a castidade, nas noites de tentação, na rede pendurada no gabinete do doutor Fulgêncio, na insónia ou no sonho, ele a enxergava e sentia nua, a perturbá-lo até que aflito se esvaísse na tentativa de possui-la sem saber como. Durante todas aquelas noites, a tivera a seu lado, não adiantando prece e promessa, nem o decidido propósito de repelir a visão satânica a torná-lo possesso.
Que faz a desalmada em Agreste que não vem em seu socorro, libertá-lo? Quase o ofende sabê-la na cidade, longe dele. Lá, todos os homens vivem de olhos postos nela; se atravessa a rua, as miradas e os comentários seguem-lhe o rastro das ancas em balouço. Cercada por um halo de desejo reprimido, ciranda de fogo na qual todos participam: de Osnar, com a boca suja e a boca solta, a Barbozinha, cujos versos descrevem-na nua e impúdica na espuma das ondas; do árabe Chalita, que a conheceu mocinha, a Seixas, que a prefere às primas; de Aminthas, metido a engraçado, a Bafo de Bode, em destempero e afronta. Ricardo, acompanhando a tia, vestido de batina, ouvira, ao passar, a frase infame do mendigo: ai, quem me dera morrer na sombra desse copado buceteiro!
Em lugar de zangar-se, Tieta sorrira-se enquanto o seminarista virava o rosto para esconder a confusão. Aprisionada nesse círculo de desejo, distante dos seus braços quem sabe se, leviana não sorrira para algum outro? Qual? Ricardo, não personaliza, todos lhe parecendo indignos dela, não merecendo sequer fitá-la, quanto mais recolher sorriso, olhar, gesto de interesse e atendimento.
Quem mais indigno, todavia, que ele próprio, por menino, sobrinho e seminarista, com votos jurados e ignorância completa? Não obstante, ela atentara em sua presença, sentira-se perturbada com a ânsia a devorá-lo, correspondera-lhe ao desejo. É verdade que, nesse estranho caso, Satanás encontrava-se envolvido, directamente interessado na conquista de duas almas puras: a dele e a da tia. Os outros, eram todos uns perdidos, do bêbado imundo a Peto, com treze anos incompletos e desregrados.
Com qual deles? De repente, na noite aflita, de demónios soltos, Ricardo esquece o pecado, o medo do castigo, o temor de Deus, o sentimento de culpa, preso a um pensamento apenas, único e terrível, que se apossa dele e o mortifica, aperta-lhe o coração, sufoca-lhe o peito: imaginar que ela, Tieta, sua Tieta, sua mulher, sua amante, possa estar gemendo em outros braços, beijando outra boca, resvalando a mão por outro peito, enrolando as coxas noutras coxas. Com outro a enxerga, a suspirar e rir; será Ascânio, tio Astério, o Comandante, quem?
Ricardo não suporta pensar nisso, fecha os olhos para não ver. Não existe lepra, estigma, fogo do inferno que se com pare a esse sentimento a afogá-lo em raiva, destroçando-lhe as entranhas, pondo gosto de fel na saliva entre os seus dentes, uma dor aguda a lhe atravessar os ovos. Em cama ou rede, em chão de terra ou de areia, com outro a desfalecer, a nascer e a morrer, ah, não!
Se tal desgraça acontecesse, aos crimes contra a castidade, ele acrescentaria crime de morte, de assassinato e suicídio. Somente Deus que dá a vida, pode dar a morte, Ricardo sabe. Mas se levantaria contra Deus, preferindo vê-la defunta do que em desmaio noutros braços e, sem ela, não deseja a vida e sim a morte.
A lua se desfaz em minguante na noite de destroços, Ricardo desce aos infernos, se consome no ciúme, como pode sofrer tanto? Salta da rede, corre para o mar, o camisolão o atrapalha, ele o arranca e joga longe, atira-se na água, nada até cansar, até o completo esgotamento. Adormece na praia, nu em pelo.
EPISÓDIO Nº 108
Na ausência da tia, porém, permanece leproso, marcado com o ferrete dos malditos, em danação, sem instância de saúde, pois ela não estando, os demónios se apossam dele e o revestem inteiro de pecado, exibindo-o indigno e perdido.
Na rede Ricardo a procura, por que ela demora tanto? Abandonara o colchão de crina da cama do Comandante e de dona Laura, como deitar-se ali sem a ingrata? Em Agreste, quando ainda lutava para manter a castidade, nas noites de tentação, na rede pendurada no gabinete do doutor Fulgêncio, na insónia ou no sonho, ele a enxergava e sentia nua, a perturbá-lo até que aflito se esvaísse na tentativa de possui-la sem saber como. Durante todas aquelas noites, a tivera a seu lado, não adiantando prece e promessa, nem o decidido propósito de repelir a visão satânica a torná-lo possesso.
Que faz a desalmada em Agreste que não vem em seu socorro, libertá-lo? Quase o ofende sabê-la na cidade, longe dele. Lá, todos os homens vivem de olhos postos nela; se atravessa a rua, as miradas e os comentários seguem-lhe o rastro das ancas em balouço. Cercada por um halo de desejo reprimido, ciranda de fogo na qual todos participam: de Osnar, com a boca suja e a boca solta, a Barbozinha, cujos versos descrevem-na nua e impúdica na espuma das ondas; do árabe Chalita, que a conheceu mocinha, a Seixas, que a prefere às primas; de Aminthas, metido a engraçado, a Bafo de Bode, em destempero e afronta. Ricardo, acompanhando a tia, vestido de batina, ouvira, ao passar, a frase infame do mendigo: ai, quem me dera morrer na sombra desse copado buceteiro!
Em lugar de zangar-se, Tieta sorrira-se enquanto o seminarista virava o rosto para esconder a confusão. Aprisionada nesse círculo de desejo, distante dos seus braços quem sabe se, leviana não sorrira para algum outro? Qual? Ricardo, não personaliza, todos lhe parecendo indignos dela, não merecendo sequer fitá-la, quanto mais recolher sorriso, olhar, gesto de interesse e atendimento.
Quem mais indigno, todavia, que ele próprio, por menino, sobrinho e seminarista, com votos jurados e ignorância completa? Não obstante, ela atentara em sua presença, sentira-se perturbada com a ânsia a devorá-lo, correspondera-lhe ao desejo. É verdade que, nesse estranho caso, Satanás encontrava-se envolvido, directamente interessado na conquista de duas almas puras: a dele e a da tia. Os outros, eram todos uns perdidos, do bêbado imundo a Peto, com treze anos incompletos e desregrados.
Com qual deles? De repente, na noite aflita, de demónios soltos, Ricardo esquece o pecado, o medo do castigo, o temor de Deus, o sentimento de culpa, preso a um pensamento apenas, único e terrível, que se apossa dele e o mortifica, aperta-lhe o coração, sufoca-lhe o peito: imaginar que ela, Tieta, sua Tieta, sua mulher, sua amante, possa estar gemendo em outros braços, beijando outra boca, resvalando a mão por outro peito, enrolando as coxas noutras coxas. Com outro a enxerga, a suspirar e rir; será Ascânio, tio Astério, o Comandante, quem?
Ricardo não suporta pensar nisso, fecha os olhos para não ver. Não existe lepra, estigma, fogo do inferno que se com pare a esse sentimento a afogá-lo em raiva, destroçando-lhe as entranhas, pondo gosto de fel na saliva entre os seus dentes, uma dor aguda a lhe atravessar os ovos. Em cama ou rede, em chão de terra ou de areia, com outro a desfalecer, a nascer e a morrer, ah, não!
Se tal desgraça acontecesse, aos crimes contra a castidade, ele acrescentaria crime de morte, de assassinato e suicídio. Somente Deus que dá a vida, pode dar a morte, Ricardo sabe. Mas se levantaria contra Deus, preferindo vê-la defunta do que em desmaio noutros braços e, sem ela, não deseja a vida e sim a morte.
A lua se desfaz em minguante na noite de destroços, Ricardo desce aos infernos, se consome no ciúme, como pode sofrer tanto? Salta da rede, corre para o mar, o camisolão o atrapalha, ele o arranca e joga longe, atira-se na água, nada até cansar, até o completo esgotamento. Adormece na praia, nu em pelo.
segunda-feira, abril 20, 2009
Tieta do Agreste
EPISÓDIO Nº 107
DO VERDADEIRO INFERNO
Nas trevas da noite acorrem os demónios. Durante o dia, atendendo e ajudando os operários, trabalhando como se fosse um deles, serrando troncos de coqueiros, revolvendo a massa de barro, areia e cimento, transportando tijolos na canoa do velho Jonas, na qual atravessa a arrebentação da barra para ir ao arraial do Saco, Ricardo esquece a chaga exposta no peito, o pecado e a condenação. Chega a conceder esperança de perdão como se nada de grave houvesse sucedido.
Na canoa, durante a breve travessia, ao fitar a face plácida de Jonas, ouvindo-lhe a voz monocórdia, de imutável diapasão, acontece-lhe sentir por vezes repentino interesse pela vida. Pitando o cachimbo de barro, dominando a embarcação, mantendo-lhe o rumo, Jonas desenrola o novelo das histórias por ali acontecidas, casos de tubarões, aventuras de pesca e contrabando, atrapalhados, equívocos amores de Claudionor das Virgens. Sempre o trovador aparece por aquelas bandas, pode-se apostar sem medo de perder: vai acabar em arrelia e confusão, mulherengo como ele não há outro. Jonas puxa fumaça do cachimbo, compara:
- Femieiro que nem padre cura…
Que nem um padre-cura? E por quê? Jonas ri, um riso descansado, ao recordar a condição de Ricardo, aprendiz de padre, fornece explicação e conselho, envelheceu no mar, perdeu o braço esquerdo pescando cações, recolhendo contrabando, nada da vida lhe é estranho ou indiferente:
- Tu vai ser padre, pois fique logo sabendo que padre sem cantiga de mulher não presta. Como há-de entender o povo se não sabe fazer menino? Andou um desses no arraial, de nome Abdias, não se deu com ninguém, as mulheres tinham medo dele, a Igreja ficou vazia. Já no tempo do padre Felisberto, que viveu no saco uns cinco anos, por causa do reumatismo, um padre direito com comadre e sete filhos, a devoção era grande, até nós, de Mangue Seco, vinha pra missa ouvir ele falar, cada sermão mais desenvolvido, contando como o céu é bonito, com música e festa todos os dias. Não era como o outro que, por desconhecer mulher, vivia no inferno, só sabia da maldade. Padre que não cheira xibiu, cheira a cu, não presta.
Sem se importar com o escândalo a reflectir-se no rosto de Ricardo, Jonas manobra a canoa e conclui sua filosofia:
- Nenhum homem pode viver sem mulher, é contra a lei de Deus. Para que Deus fez Adão e Eva senão para isso? Me responda se puder.
O moço não responde mas da mesma maneira que a labuta na construção da casa, a tosca visão de Jonas lhe dá ânimo e esperança de desatar o nó do desespero.
Desatá-lo ou cortá-lo com o fio agudo do desejo quando ela, a tia, alegre e aloucada, rompe as comportas do medo e da contenção em que ele se afoga.
Na presença de Tieta esquece a chaga aberta no peito, o pecado, o voto rompido, a condenação, mesmo sendo noite e estando os demónios soltos. A presença, o riso, a voz morna, o amplexo, a boca, as mãos, as coxas, o ventre aceso valem lepra, estigma e inferno.
EPISÓDIO Nº 107
DO VERDADEIRO INFERNO
Nas trevas da noite acorrem os demónios. Durante o dia, atendendo e ajudando os operários, trabalhando como se fosse um deles, serrando troncos de coqueiros, revolvendo a massa de barro, areia e cimento, transportando tijolos na canoa do velho Jonas, na qual atravessa a arrebentação da barra para ir ao arraial do Saco, Ricardo esquece a chaga exposta no peito, o pecado e a condenação. Chega a conceder esperança de perdão como se nada de grave houvesse sucedido.
Na canoa, durante a breve travessia, ao fitar a face plácida de Jonas, ouvindo-lhe a voz monocórdia, de imutável diapasão, acontece-lhe sentir por vezes repentino interesse pela vida. Pitando o cachimbo de barro, dominando a embarcação, mantendo-lhe o rumo, Jonas desenrola o novelo das histórias por ali acontecidas, casos de tubarões, aventuras de pesca e contrabando, atrapalhados, equívocos amores de Claudionor das Virgens. Sempre o trovador aparece por aquelas bandas, pode-se apostar sem medo de perder: vai acabar em arrelia e confusão, mulherengo como ele não há outro. Jonas puxa fumaça do cachimbo, compara:
- Femieiro que nem padre cura…
Que nem um padre-cura? E por quê? Jonas ri, um riso descansado, ao recordar a condição de Ricardo, aprendiz de padre, fornece explicação e conselho, envelheceu no mar, perdeu o braço esquerdo pescando cações, recolhendo contrabando, nada da vida lhe é estranho ou indiferente:
- Tu vai ser padre, pois fique logo sabendo que padre sem cantiga de mulher não presta. Como há-de entender o povo se não sabe fazer menino? Andou um desses no arraial, de nome Abdias, não se deu com ninguém, as mulheres tinham medo dele, a Igreja ficou vazia. Já no tempo do padre Felisberto, que viveu no saco uns cinco anos, por causa do reumatismo, um padre direito com comadre e sete filhos, a devoção era grande, até nós, de Mangue Seco, vinha pra missa ouvir ele falar, cada sermão mais desenvolvido, contando como o céu é bonito, com música e festa todos os dias. Não era como o outro que, por desconhecer mulher, vivia no inferno, só sabia da maldade. Padre que não cheira xibiu, cheira a cu, não presta.
Sem se importar com o escândalo a reflectir-se no rosto de Ricardo, Jonas manobra a canoa e conclui sua filosofia:
- Nenhum homem pode viver sem mulher, é contra a lei de Deus. Para que Deus fez Adão e Eva senão para isso? Me responda se puder.
O moço não responde mas da mesma maneira que a labuta na construção da casa, a tosca visão de Jonas lhe dá ânimo e esperança de desatar o nó do desespero.
Desatá-lo ou cortá-lo com o fio agudo do desejo quando ela, a tia, alegre e aloucada, rompe as comportas do medo e da contenção em que ele se afoga.
Na presença de Tieta esquece a chaga aberta no peito, o pecado, o voto rompido, a condenação, mesmo sendo noite e estando os demónios soltos. A presença, o riso, a voz morna, o amplexo, a boca, as mãos, as coxas, o ventre aceso valem lepra, estigma e inferno.
domingo, abril 19, 2009
Tieta do Agreste
EPISÓDIO Nº 106
No Seminário e em Agreste escutara muita coisa sobre os hipies, opiniões as mais contraditórias, a maioria de violenta crítica. Ascético e feroz, Cosme, comentando notícias dos jornais, condenara os hábitos indecentes, perniciosos desses inimigos da moral, entregues à libertinagem e à droga, refogando a lei e os princípios sacrossantos, monstros da pior espécie. Dias depois, por acaso, quando no pátio procurava entender a Imitação de Cristo, preparando-se para a meditação espiritual da manhã seguinte, Ricardo surpreendera singular conversa, as vozes em discussão se elevando na roda próxima, formada por alguns padres, entre os quais o próprio Reitor, o reverendo ecónomo, o padre Afonso – o reverendo Alfonso de Narbona y Rodomon – e Frei Timóteo, frade franciscano, vindo de São Cristóvão, para dar a aula semanal de Teologia Moral no Seminário Maior, cuja sapiência e santidade corriam mundo.
Parecendo um caniço de tão magro, os cabelos revoltos, a barba rala, os olhos de água pura e a voz mansa, defendera os hipies dos ataques de Dom Alfonso de Narbona y Rodomon, a vociferar em dura mescla de espanhol e português.
Nobre castelhano e guarda-costas de Deus e da pureza da fé, leão-de-chácara dos bons costumes, vigário do Cardeal de Aracaju e professor de Teodicéia no Seminário Menor, Dom Alfonso era conhecido entre os fiéis pela alcunha de Labareda Eterna devido à virulência dos sermões repletos de ameaças aos pecadores.
Indiferente à veemência da condenação total aos hipies, enunciada em rude portunhol pelo fidalgo de Castela, Dom Timóteo os considerou não só filhos de Deus, como nós todos, mas os promoveu a filhos bem amados pois renegam a hipocrisia, refugam a mentira, levantam-se pacíficos contra a falsidade, contra o cinismo anti-humano da sociedade actual, enfrentam a impiedade e a corrupção do mundo, suas armas são flores e canções, sua bandeira a de Cristo: paz e amor. Condenável a maneira como agem? Que desejava Dom Alfonso? Que eles tomem das armas, das bombas, das metralhadoras? Vão pelo mundo dando o bom exemplo da alegria de viver. Perseguidos como sempre o foram todos os reformadores, os rebeldes, os contestatários da ordem vigente e podre.
Os padres ouviram sem vontade ou sem coragem de contestar; o renome de Frei Timóteo, sábio e santo, fazia-o carismático, os reverendos curvavam-se à sua passagem e o bispo Dom José o tratava de meu pai. Opiniões contraditórias, polémica desatada, mas nos ouvidos de Ricardo ficara ressoando a voz serena do franciscano a repetir as palavras paz e amor, divisa de Cristo, saudação dos hipies.
Demorou-se com os dois companheiros espiando de longe o acampamento, onde rapazes e moças pareciam indiferentes ao tempo, sentados em grupo a conversar. Alguns trabalhavam metal e couro, um magricela tocava violão, outro descansava a cabeça no colo de uma jovenzinha, todos vestidos com aquelas roupas mal cuidadas, com rasgões e remendos, colares nos pescoços, multicolores, símbolos místicos. Alguns descalços, sobretudo as mulheres.
Ricardo viu de longe e pouco; quando um dos rapazes propôs chegarem até lá, recusou, necessitando voltar a Mangue Seco onde os operários esperavam material para as paredes da casa de veraneio da ingrata.
Agora do alto dos cômoros, ele observa os dois casais e a menina. Reconhece o magricela que dedilha o violão, vira-o na véspera. Deitaram-se na areia os quatro, a criança recolhe conchas, vem trazê-las para a mãe.
Os olhos de Ricardo voltam-se para a lonjura do rio nas primeiras sombras do crepúsculo. Que faz a tia, por que não volta? Por que o deixa ali, sozinho, sem a presença, a voz, os confusos argumentos ainda assim consoladores, a mão, os lábios, o seio acolhedor, o ventre em febre onde todos os problemas se resolvem, as dúvidas se desfazem, a aflição e o tormento transformam-se em alegria e exaltação? Estaria ausente apenas uma noite, uma, tão-somente, garantira. Duas já ele atravessara, insone e desolado.
Talvez porque a música houvesse cessado, Ricardo retorna o olhar vazio de esperança e fita a praia. Os casais despiram-se, o jovem de violão e a rapariga risonha trocam um longo beijo, estreito abraço. O rapaz escuro e a moça loira, com a menina, adiantam-se para o mar, quem sabe na intenção de banhar-se. Os cabelos da mulher rolam pelas espáduas, tocam-lhe as ancas. Ricardo põe-se de pé, grita, avisando do perigo. Para enfrentar as vagas que retornam enfurecidas da luta contra as dunas e se preparam para novo embate, é necessário ter nascido e crescido em Mangue Seco, na selvagem violência do oceano e do vento desatados. O perigo é mortal, sem falar na sombra fatídica dos tubarões.
O grito perde-se na ventania, não alcança a praia, pai, mãe e filha adentram-se no mar. Ricardo dispara cômoro abaixo, nem repara no outro casal a fazer amor, joga-se na água exactamente quando o vagalhão descomunal encobre os banhistas, derruba o rapaz e a moça, arranca a menina da mão da mãe e a arrasta para longe. Uns minutos mais e o pequenino corpo será lançado pelo mar contra a montanha de areia transformada em pedra.
Ricardo mergulha, desaparece sob as ondas, quando surge mais adiante trás a criança presa contra o peito. Utiliza apenas o braço livre para nadar. Recordando conhecimentos adquiridos na infância, submerge outra vez para aproveitar a força da vaga no retorno. Durante um instante infinito, da praia enxergam apenas o braço erguido, sustentando a menina fora de água. E se não conseguir retornar, se perder a força e arriar o braço? Só respiram quando ele se alça em meio à espuma, liberto das vagas.
A mãe atraca-se com a filha, buscando sentir-lhe a respiração, treme da cabeça aos pés. O pai tenta dizer alguma coisa, não consegue, a voz estrangulada. O outro casal já não faz amor; estão os quatro de pé, unidos na angústia e no alívio; nus, de corpo e alma.
Ricardo apenas os enxerga. Ouve por fim o choro da criança, sorri e sai correndo enquanto a noite tomba de vez, sem prévio anúncio, noite de quarto minguante, dunas fantasmagóricas. Nas trevas da noite acorrem os demónios.
EPISÓDIO Nº 106
No Seminário e em Agreste escutara muita coisa sobre os hipies, opiniões as mais contraditórias, a maioria de violenta crítica. Ascético e feroz, Cosme, comentando notícias dos jornais, condenara os hábitos indecentes, perniciosos desses inimigos da moral, entregues à libertinagem e à droga, refogando a lei e os princípios sacrossantos, monstros da pior espécie. Dias depois, por acaso, quando no pátio procurava entender a Imitação de Cristo, preparando-se para a meditação espiritual da manhã seguinte, Ricardo surpreendera singular conversa, as vozes em discussão se elevando na roda próxima, formada por alguns padres, entre os quais o próprio Reitor, o reverendo ecónomo, o padre Afonso – o reverendo Alfonso de Narbona y Rodomon – e Frei Timóteo, frade franciscano, vindo de São Cristóvão, para dar a aula semanal de Teologia Moral no Seminário Maior, cuja sapiência e santidade corriam mundo.
Parecendo um caniço de tão magro, os cabelos revoltos, a barba rala, os olhos de água pura e a voz mansa, defendera os hipies dos ataques de Dom Alfonso de Narbona y Rodomon, a vociferar em dura mescla de espanhol e português.
Nobre castelhano e guarda-costas de Deus e da pureza da fé, leão-de-chácara dos bons costumes, vigário do Cardeal de Aracaju e professor de Teodicéia no Seminário Menor, Dom Alfonso era conhecido entre os fiéis pela alcunha de Labareda Eterna devido à virulência dos sermões repletos de ameaças aos pecadores.
Indiferente à veemência da condenação total aos hipies, enunciada em rude portunhol pelo fidalgo de Castela, Dom Timóteo os considerou não só filhos de Deus, como nós todos, mas os promoveu a filhos bem amados pois renegam a hipocrisia, refugam a mentira, levantam-se pacíficos contra a falsidade, contra o cinismo anti-humano da sociedade actual, enfrentam a impiedade e a corrupção do mundo, suas armas são flores e canções, sua bandeira a de Cristo: paz e amor. Condenável a maneira como agem? Que desejava Dom Alfonso? Que eles tomem das armas, das bombas, das metralhadoras? Vão pelo mundo dando o bom exemplo da alegria de viver. Perseguidos como sempre o foram todos os reformadores, os rebeldes, os contestatários da ordem vigente e podre.
Os padres ouviram sem vontade ou sem coragem de contestar; o renome de Frei Timóteo, sábio e santo, fazia-o carismático, os reverendos curvavam-se à sua passagem e o bispo Dom José o tratava de meu pai. Opiniões contraditórias, polémica desatada, mas nos ouvidos de Ricardo ficara ressoando a voz serena do franciscano a repetir as palavras paz e amor, divisa de Cristo, saudação dos hipies.
Demorou-se com os dois companheiros espiando de longe o acampamento, onde rapazes e moças pareciam indiferentes ao tempo, sentados em grupo a conversar. Alguns trabalhavam metal e couro, um magricela tocava violão, outro descansava a cabeça no colo de uma jovenzinha, todos vestidos com aquelas roupas mal cuidadas, com rasgões e remendos, colares nos pescoços, multicolores, símbolos místicos. Alguns descalços, sobretudo as mulheres.
Ricardo viu de longe e pouco; quando um dos rapazes propôs chegarem até lá, recusou, necessitando voltar a Mangue Seco onde os operários esperavam material para as paredes da casa de veraneio da ingrata.
Agora do alto dos cômoros, ele observa os dois casais e a menina. Reconhece o magricela que dedilha o violão, vira-o na véspera. Deitaram-se na areia os quatro, a criança recolhe conchas, vem trazê-las para a mãe.
Os olhos de Ricardo voltam-se para a lonjura do rio nas primeiras sombras do crepúsculo. Que faz a tia, por que não volta? Por que o deixa ali, sozinho, sem a presença, a voz, os confusos argumentos ainda assim consoladores, a mão, os lábios, o seio acolhedor, o ventre em febre onde todos os problemas se resolvem, as dúvidas se desfazem, a aflição e o tormento transformam-se em alegria e exaltação? Estaria ausente apenas uma noite, uma, tão-somente, garantira. Duas já ele atravessara, insone e desolado.
Talvez porque a música houvesse cessado, Ricardo retorna o olhar vazio de esperança e fita a praia. Os casais despiram-se, o jovem de violão e a rapariga risonha trocam um longo beijo, estreito abraço. O rapaz escuro e a moça loira, com a menina, adiantam-se para o mar, quem sabe na intenção de banhar-se. Os cabelos da mulher rolam pelas espáduas, tocam-lhe as ancas. Ricardo põe-se de pé, grita, avisando do perigo. Para enfrentar as vagas que retornam enfurecidas da luta contra as dunas e se preparam para novo embate, é necessário ter nascido e crescido em Mangue Seco, na selvagem violência do oceano e do vento desatados. O perigo é mortal, sem falar na sombra fatídica dos tubarões.
O grito perde-se na ventania, não alcança a praia, pai, mãe e filha adentram-se no mar. Ricardo dispara cômoro abaixo, nem repara no outro casal a fazer amor, joga-se na água exactamente quando o vagalhão descomunal encobre os banhistas, derruba o rapaz e a moça, arranca a menina da mão da mãe e a arrasta para longe. Uns minutos mais e o pequenino corpo será lançado pelo mar contra a montanha de areia transformada em pedra.
Ricardo mergulha, desaparece sob as ondas, quando surge mais adiante trás a criança presa contra o peito. Utiliza apenas o braço livre para nadar. Recordando conhecimentos adquiridos na infância, submerge outra vez para aproveitar a força da vaga no retorno. Durante um instante infinito, da praia enxergam apenas o braço erguido, sustentando a menina fora de água. E se não conseguir retornar, se perder a força e arriar o braço? Só respiram quando ele se alça em meio à espuma, liberto das vagas.
A mãe atraca-se com a filha, buscando sentir-lhe a respiração, treme da cabeça aos pés. O pai tenta dizer alguma coisa, não consegue, a voz estrangulada. O outro casal já não faz amor; estão os quatro de pé, unidos na angústia e no alívio; nus, de corpo e alma.
Ricardo apenas os enxerga. Ouve por fim o choro da criança, sorri e sai correndo enquanto a noite tomba de vez, sem prévio anúncio, noite de quarto minguante, dunas fantasmagóricas. Nas trevas da noite acorrem os demónios.