sexta-feira, março 06, 2009


Tieta do Agreste

EPISÓDIO Nº70



Devota exemplar, incapaz de faltar a uma obrigação religiosa, missa, bênção, confissão, a santa comunhão, as procissões, zeladora-chefe da matriz, tesoureira da Congregação, Perpétua espera contar com a compreensão e ajuda do senhor para atingir os calculados fins. Seu plano exige eficaz protecção de Deus e inocente colaboração dos meninos. A de Peto não lhe tem faltado. De onde está, Perpétua enxerga o filho nadando em torno da tia. Assim, com perseverança e gentileza, se conquista o coração, o amor de parente rica.

Tentara discutir com Ricardo, trazê-lo, mas o rapaz a derrotara, apoiado nas necessidades do reverendo; Vavá Muriçoca, o sacristão, amanhecera doente, não podia montar. Perpétua ficou sem argumentos, olhando o filho de batina no lombo do burro. Ainda mais do que ela, Ricardo merecia a protecção divina, tão piedoso e temente de Deus.

Queria os filhos, os dois, ao lado da tia o mais tempo possível.

Arquitectara complicado plano com o fim de obter que a irmã fizesse dos meninos seus herdeiros únicos, adoptando-os, se a medida legal se revelasse necessária. Precisa saber com certeza, projecta ida a Esplanada para se aconselhar com doutor Rubim.

O tempo é curto, torna-se urgente a ajuda de Deus para tocar o coração de Antonieta, para encaminhá-la à decisão correcta. Fazendo obrigatória colaboração de Ricardo e Peto. Depende de Deus e deles transformar a estima da parente em ternura maternal. Agradem à tia, não deixem ela sozinha, recomenda. Ajuda-me, Senhor!, implora. O tempo é curto.

Antonieta não determinara a duração da temporada em Agreste mas evidentemente sua demora não passará de mês e meio, dois meses; deve voltar para reassumir o controle dos seus negócios e já uns dez dias são decorridos. Pouco a pouco, com astúcia e paciência, Perpétua conseguira tirar da irmã várias informações sobre o estado de suas finanças. Ficou a par dos quatro dos quatro apartamentos e do andar térreo no centro da cidade, alugados cada um dos cinco por uma fortuna mensal – casa de aluguel barato somente em Agreste.

Ainda não obteve informação precisa sobre a espécie de negócio directamente dirigido por Antonieta. Não se trata de indústria, as indústrias são geridas pelos filhos do Comendador, sendo Antonieta sócia mas não administradora. Deve tratar-se de comércio, loja de modas pois tinha funcionárias. Perpétua surpreendera conversa entre Tieta e Leonora em que faziam referência ao trabalho das meninas. Igual aos imóveis, essa casa comercial, essa casa comercial é propriedade exclusiva da irmã, presente do Comendador.

Perpétua vai perguntando, colhendo uma informação aqui, outra acolá. Antonieta e Leonora não são de muito contar. Talvez de propósito para não despertar a cobiça dos parentes. Uma coisa é certa: a magnitude da fortuna.

Os negócios são grandes, múltiplos e rendosos, dinheiro é cama de gato.

Outro dia, de uma das malas, a que está sempre trancada à chave, Antonieta retirou pasta ou maleta – uma 007 na exacta designação de Peto, de enciclopédica cultura cinematográfica – e a abriu, mantendo-a no colo virada para si. Ainda assim Perpétua conseguira, levantando-se como quem não quer nada, vê-la repleta de dinheiro, notas altas, um desparrame, pacotes e mais pacotes.

- Ai! Santo Deus! – exclamara.

Tieta explicou ter trazido dinheiro vivo não só para as despesas como para comprar terreno em Mangue Seco, dar sinal pela casa, garantir a compra.

- Aqui não existe banco e eu não gosto de ficar devendo.

- Mas tem uma fortuna aí. Você é maluca, deixar esse dinheiro aí dentro de uma mala, no armário.

- Só quem sabe é Leonora e agora você. É só não falar nisso.

- Eu, falar? Deus me livre – bate com a mão na boca – não vou mais é poder dormir sossegada.

Antonieta ri:

- Quando eu comprar o terreno e a casa vai diminuir muito.

Fortuna de paulista, fartura de dinheiro, não essa riquezinha do Agreste, de Modesto Pires, do coronel Artur de Tapitanga, de cabras e mandioca.

O importante é evitar que um dia – todos nós, um dia, temos de morrer, não é mesmo? – parte do dinheiro e dos bens de A vá parar em mãos dos enteados, dos filhos do falecido Comendador, dessa silenciosa Leonora que não cheira nem fede, uma pamonha. Tieta é doida por ela, vive a cuidá-la, obrigando-a a comer, a beber leite de cabra todas as manhãs. A dita cuja deve ser igualmente muito rica, se bem Perpétua, na detalhada vistoria feita no quarto dela, quando examinou coisa por coisa, não tenha bispado mala de dinheiro. Nada está sob chaves, tudo aberto. Na bolsa, alguns milhares de cruzeiros, para Agreste bastante mas nem de longe comparável com o despropósito da 007 de Antonieta. Perpétua se arrepia ao recordar.

A irmã gosta dos sobrinhos, trata-os com afecto, alegra-se quando os vê. Faz-se necessário, no entanto, muito mais, é preciso que ela os trate como se fossem seus filhos, pois filhos devem ser. Os dois se possível, pelo menos um. Reconhecidos legalmente, herdeiros.

Caso Antonieta deseje levar um deles para São Paulo, Perpétua não se oporá, óptimo se escolher Peto. Menino perdido, solto em Agreste a matar aulas, tomando pau todos os anos, vagabundo no bar e no cinema, breve em lugares piores. Mas se for Ricardo o escolhido para viver em São Paulo, tornar-se braço direito da tia, Perpétua estará de acordo. Peto tomará o lugar do primogénito no seminário, queira ou não queira, pois um dos dois pertence a Deus, assim ela prometera, encruada donzela, perdidas as esperanças terrenas, as últimas. Se Deus lhe desse esposo e filhos, um seria padre, a serviço da Santa Madre Igreja. Deus cumpriu, realizou o milagre, ela cumprirá também.

Na praia, os olhos semicerrados devido ao sol e ao vento, à luz violenta, propõe outra barganha ao senhor. Se Antonieta adoptar pelo menos um dos meninos, Perpétua se compromete a deixar para a Igreja, em testamento, uma das três casas herdadas do Major, a menorzinha, aquela onde morou Lula Pedreiro, agora alugada a Laerte Curte Couro, empregado de Modesto Pires. Pequena mas bem situada, próxima do curtume, na pracinha onde fica a capela de São João Baptista. Pelo jeito, o Senhor recusa a proposta; íntima de Deus, Perpétua adivinha as reacções celestes. Arrependida, retira a oferta, o senhor tem razão de ficar aborrecido; uma casinha de pequena renda em troca da fortuna de Antonieta, proposta ridícula. Ainda tenta argumentar: a praça está sendo calçada e ajardinada, terá bancos de ferro, o aluguel vai ser aumentado.

Não adianta: se continuar o Senhor pode até se ofender. Pede bens consideráveis, oferece ninharia. Mais do que dinheiro e propriedades, Deus precisa de devoção e fé. Pois bem, se Antonieta tomar, Ricardo ou Peto como filho e herdeiro, qualquer deles, Perpétua irá com os dois à capital – à cidade da Baía, sim, Senhor Deus! – e lá, a pé se dirigirá à Basílica, na colina sagrada, onde mandará rezar missa, deixando no Museu dos Milagres, fotografia dos filhos com dedicatória para o todo-poderoso Nosso Senhor do Bomfim. Se a irmã adoptar os dois a missa será cantada. O Senhor deve levar em conta, na proposta, o facto dos meninos já possuírem direitos assegurados; apenas não são os únicos herdeiros.

O ideal seria que Antonieta, tendo adoptado os dois mandasse Ricardo completar o curso em seminário de são Paulo, desses que formam logo cónegos e bispos. No calor do sol, no correr do vento, no remoer de planos e promessas, Perpétua cerra completamente os olhos, adormece e sonha. Vê-se acompanhando a procissão da Senhora Sant’Ana, numa cidade imensa, maior do que Aracaju, deve ser São Paulo, na frente do andor um bispo em vermelho e roxo, um Cardeal, é seu filho Cupertino Baptista Júnior, Dom Peto. Um aviso do céu, compromisso selado, promessa aceite, milagre à vista.




ATENÇÃO

A Tieta do Agreste, depois de 70 episódios diários, ininterruptos, vai uma semana de férias, de 7 a 14. No próximo dia 15 estará de regresso.

Talvez Jair aproveite para uma revisão no motor da marinete. Perpétua, pela certa, não parará de congeminar negócios com Deus, enquanto Leonora e Ascânio, cada vez mais apaixonados, continuarão a viver debaixo de tensão o amor que é a esperança das suas vidas.

De certo, uma história contada magistralmente por um dos maiores escritores da língua portuguesa enriquecida pela criatividade imaginativa do povo do nordeste brasileiro.

Eu próprio, que apenas sei da história o que dela aqui deixo diariamente, aguardo com expectativa o fim da minha semana de férias para me reencontrar com todos estes personagens que sendo de ficção, mais parecem arrancados à vida real de uma pequena cidade do nordeste brasileiro, plantada à beira do oceano Atlântico, em finais da década de 70 e que adormeceu por desinteresse dos políticos e dos investidores, mau grado todos os esforços do Secretário Municipal, Ascânio Trindade.

E que dizer da beata Perpétua, digna representante de uma fé religiosa que perverteu consciências, inverteu valores e foi decisiva para a infelicidade de muitas pessoas envenenando-lhes a vida?

Bom, desculpem este desabafo e até ao próximo dia 15.

Passem bem.

ELTON JOHN - CROCODILE ROCK



GERARD LENORMAN - LE BLEU DES REGRETS



DOMENICO MODUGNO - COMO STAI



INGA JANKAUSKAITE - LASELIAI



quinta-feira, março 05, 2009


Julian Beever

Julian Beever é um extraordinário artista inglês, famoso por produzir um tipo de arte denominada “chalk art”, apresentada em praças e calçadas de diversos países: Inglaterra, França, Alemanha, EUA, Austrália e Bélgica.

É uma arte ilusionista porque as imagens são pintadas de tal forma que apresentam uma aparência tridimensional quando vistas de um ângulo apropriado.

Aqui ficam algumas pinturas fotografadas no ângulo correcto que lhes confere esses efeitos mágicos:







MERCEDES SOSA - GRACIAS À LA VIDA



ORQUESTRA DE BILLY VAUGHN - PETITE FLEUR



BÁRBARA STREISAND - PEOPLE




Tieta do Agreste

EPISÓDIO Nº 69


DE COMO PERPÈTUA NEGOCIA A AJUDA DE DEUS PARA O TRIUNFO DOS SEUS PLANOS DIABÓLICOS


Anima-se a praia de Mangue Seco, no Domingo, com a chegada de uma quantidade de amigos sob o comando de dona Carmosina, espantosa e inconsciente no maiô lilás.

Até Perpétua se animara a acompanhar o grupo, o vestido negro, o luto fechado. Dona Milú desparrama alegria: não vinha a Mangue Seco há mais de seis meses. Não por falta de convite, observou o Comandante Dário. É verdade, convites não faltam e sobra o tempo, com a idade o que falta é disposição. Riem da mentira: não existe pessoa tão disposta; os anos passam, Mãe cada vez mais serelepe, confirma dona Carmosina.

Na lancha, Barbosinha tirara o paletó e a gravata, expusera-se ao vento apesar do reumatismo. Certa noite subira aos cômoros com Tieta, declamando versos escritos para ela, reunidos depois no livro de Poemas do Agreste (De Matos Barbosa, Poemas de Agreste, Ilustrações de Calasans Neto, Edições Macunaíma, Baía, 1953), formando a primeira parte do volume, intitulada Estrofes do Mar Bravio, o mar bravio, a arrebentação de Mangue Seco e o corpo aceso da livre pastora na chama do desejo. Duas gloriosas noites de amor e poesia, breves, transitórias. Os deveres de funcionário municipal obrigaram-no a regressar à capital. Ela prometera esperá-lo, sempre prometia. Alguns meses passados, carta de Agreste dava-lhe a notícia da partida de Tieta. Somente agora, vinte e sete anos depois, alquebrado e reumático, voltara a vê-la, mais formosa ainda, opulenta, livre pastora, mar bravio. Viúva, ele solteiro. Não casara, teria sido por causa de Tieta? Espera recitar-lhe nas dunas, ao luar, o grande poema que em seu louvor vem de escrever. Nele a proclama estrela-d’alva, sendo ele obscurecido astro de bruxuleante luz. Se unissem os seus destinos, no entanto, renasceria o poeta, sol irrompendo no mar de Mangue Seco. Escolhera o estilo condoreiro, bom para declamação.

Vieram Aminthas e Osnar, Fidélio e Seixas, comboiando Astério. O som moderno invade Mangue Seco, substituindo a harmónica de Claudionor das Virgens enquanto o trovador curte, em sono agitado, o pileque da véspera.

Onde está Ricardo? No primeiro momento, cercada, abraçada, beijada, Antonieta não se deu conta da ausência do sobrinho. Mas, diminuída a confusão, pergunta:

- E Cardo, cadê ele?

- Não pôde vir – explica Perpétua, contrafeita: - Padre Mariano foi realizar casamentos e baptizados em Rocinha, vai duas vezes por ano, em Junho e Dezembro, levou Ricardo que mandou pedir-lhe a bênção, ele lhe adora. Mas, sendo seminarista, teve de ir com o padre.

Tieta não responde nem comenta mas Perpétua percebe-lhe a decepção no franzir dos lábios e se alegra: a irmã rica sente a falta do sobrinho, está se apegando aos meninos. Ainda bem.

- Todos ao mar! – o Comandante ordena e é obedecido.

Calções, maiôs, biquínis desfilam diante da reduzida população de Mangue Seco. Ao contrário dos habitantes de Agreste, os pescadores não se escandalizam com a incontinente exibição de coxas e barrigas, bundas e umbigos. Ali, os meninos de catorze e quinze anos cortam as ondas nus, os corpos de bronze.

Única a não cumprir a ordem do Comandante – até dona Milú suspende a saia e vai banhar os pés no mar – Perpétua busca na praia, em baixo dos coqueiros, sombra defendida do sol e do vento. Tira do bolso da saia o terço, começa a passar as contas. No tempo do Major todos os anos vinham à praia, no verão. Vestindo decente traje de banho, enfrentava os perigos de mar; o Major tomava-a nos braços a pretexto de lhe ensinar a nadar, mãos indiscretas, arteiras. Deleites passados, não voltarão. Cabe-lhe agora pensar nos filhos, no futuro dos meninos. Viúva é mãe e pai, cumpre-lhe lutar. Os dedos nas contas do terço, os lábios na oração, o pensamento
nos planos concebidos
, em via de execução.

quarta-feira, março 04, 2009

ABBA - NINA. PRETTY BALERINA



BEE GEES - TOO MUCH EVEN


ELVIS PRESLEY - CRYING IN THE CHAPEL



CRIACIONISMO E EVOLUCIONISMO

A IGREJA E A QUADRATURA DO CÍRCULO



O Criacionismo não tem mais lugar à luz do estado actual da Ciência. È uma batalha definitivamente perdida pela Igreja.

- A Evolução dos seres vivos ocorre por selecção natural, ou seja, os indivíduos com características hereditárias mais favoráveis reproduzem-se tornando-se mais comuns e os outros desaparecem;

- O Criacionismo, teoria segundo a qual a vida foi criada por uma entidade superior sem recurso à matéria existente, é simplesmente uma crença sem qualquer valor excepto para os que acreditam nela à luz de uma fé religiosa.

O Evolucionismo é um assunto da ciência, o Criacionismo é uma questão de fé. Não são antagónicos, não se contradizem, não se opõem e não se comparam porque são incomparáveis, de naturezas e planos diferentes.

A fé e a razão têm origens distintas: a primeira, na necessidade de acreditar, a segunda na inteligência.

O homem, curioso como é, sempre se inquiriu e questionou sobre aspectos ligados à própria vida: quem somos, de onde viemos, por que estamos aqui e as respostas dadas pelos filósofos e pensadores mais baralhavam e confundiam as pessoas do que propriamente as esclareciam.

As igrejas, aproveitando a natural credibilidade dos homens e a inexistência de outras respostas, forneceram-lhes soluções simples, directas e indiscutíveis e acrescentaram: “esta é a verdade, acreditem nela, tudo quanto existe foi criado por Deus e…ponto final, quem não acreditar vai para o inferno por toda a eternidade!”.

Portanto, não há aqui nenhum desafio entre Ciência e Fé Católica, quando muito existiu um enorme risco de perigo de vida para aqueles que não acreditavam.

Felizmente, os tempos são outros e a Inquisição já lá vai a alguns séculos mas não está apagada da memória dos homens que se revelaram, por causa da fé, com uma cruz bem levantada nas mãos, seres hediondos e cruéis para os seus semelhantes, incluindo parentes e vizinhos.

Perdida a “guerra” do Criacionismo” a Igreja vem agora, para salvar as ovelhas confusas do rebanho, com o “desígnio inteligente”.

Maravilhada com as descobertas da ciência impossíveis de rebater e negar porque são evidências trazidas para o dia-a-dia da vida das pessoas e das escolas, a Igreja diz:

- … “Pois, sem dúvida, estávamos enganados nas questões de forma mas na essência, no que é verdadeiramente importante, nada se alterou: os planos da vida descobertos pela ciência, são os planos de Deus, só Ele poderia ter concebido um tal percurso a que chamaremos de “Designo Inteligente”.

Esta confrontação que se pretende agora estabelecer entre Darwin e a fé cristã e que levou 300 especialistas a reunirem-se no Vaticano num Convénio Internacional denominado: “Evolução Biológica: Factos e Teorias”, em estilo de comemoração dos 150 anos da publicação da obra A Origem das Espécies”, não passa de uma manobra de diversão para disfarçar uma realidade preocupante para a Igreja: ela só tem para oferecer a fé religiosa e as promessas no além para a respectiva cobrança de prémios e castigos pelo que fizeram ou não fizeram neste mundo.

A sua moral não é melhor do que a de qualquer cidadão não religioso, os seus representantes e defensores não são melhores ou piores que quaisquer outras pessoas independentemente de serem ou não religiosas, e para nos ensinar coisas que façam progredir a humanidade lá estão milhares de cientistas em todo o mundo a fazer um uso inteligente das suas capacidades criativas em vez de perderem tempo em rezas inúteis.

O Arcebispo Ravasi, Presidente do Pontifício Conselho da Cultura do Estado da Santa Sé, que patrocina este Convénio, fala “de uma mudança na forma como a Igreja, encara a evolução biológica” e a mim, que nestas coisas não sou ingénuo, parece-me mais uma estratégia forçada de adaptação aos tempos que correm para estancarem as perdas de influencia no “rebanho”.




Tieta do Agreste

EPISÓDIO Nº 68


DO PRIMEIRO BEIJO EM FRENTE DA COSTA DE ÁFRICA, CAPÌTULO DE UM ROMANTISMO ATROZ COMO NÃO SE USA MAIS


Sentam-se no alto da duna, diante deles o oceano.

- Obrigado - diz Leonora.

- De quê?

- Do luar. Não foi você que encomendou?

- Ah! – descontrai-se um pouco – Gostou? Não lhe disse que São Jorge é meu chapa?

- Obrigado também por ter vindo.

Um calor no peito a emudecê-lo. Os ruídos da festa na povoação vêm morrer no embate das vagas com os cômoros. Qualquer assunto serve para vencer a mude:

- Festa de aniversário de Jonas, o chefe da colónia de pescadores. É maneta, o tubarão comeu-lhe o braço esquerdo.

- Tem tubarões aqui?

- No mar aberto, demais. Às vezes chegam até à praia. São audazes e vorazes. Qualquer descuido, é a morte.

Não é hora de lembrar a morte, talvez por isso retornam à contenção, ao retraimento, à timidez. Os dois em silêncio, reduzidos a furtivos olhares, ainda assim tão bom! A lua fincada no céu, feita de encomenda, exclusiva para eles. Luar de enamorados, próprio para se falar de amor. Isso é o que Ascânio pretende dizer. Ensaia a frase, morre-lhe nos lábios, finalmente explica:

- Do outro lado, a África.

- A África?

Ele aponta com o dedo, indica na distância:

- Do outro lado do mar.

- Ah!, sim. A África, eu sei. – não quer deixar morrer o diálogo. – Teve muito trabalho hoje?

Não é de geografia nem de problemas de administração que desejam se ocupar. Mas onde o ânimo para as palavras ardentes, a declaração de amor ainda usada pelos namorados em Agreste?

- A mesma coisa de todos os sábados: pedidos para consertar caminhos, limpar as fontes, pequenas benfeitorias, um mata-burros, um pontilhão. Leonora não pode imaginar a falta de recursos em Agreste. Já foi município rico, noutros tempos. Quando o avô de Ascânio era prefeito.

Ouvi dizer que você vai ser o novo prefeito.

- Penso que sim. Sabe por quê? Porque ninguém quer o posto. Mas eu aceito. Vou lhe dizer uma coisa, se quiser me chame de visionário. Tenho confiança, penso que tudo vai mudar e Agreste vai voltar ao que foi. Não suporto ver a minha terra nessa pasmaceira.

- É bom ter confiança, sonhar. Você louco por sua terra.

- Sou, sim. Quero que ela saia do marasmo em que afundou. Hei-de conseguir – toma alento, está embalado, disposto – a vida é engraçada. – A vida é engraçada. Não fez um mês, eu não tinha mais fé em nada, nem esperança. Escrevia carta nos jornais, reclamava ao governo, mas não acreditava em resultados. Agora tudo me parece fácil. Depois que…

- Depois quê?

- Que vocês chegaram. Tudo mudou, ficou alegre. Até eu.

- Por causa de Mãezinha, onde ela chega, espanta a tristeza. É a pessoa melhor do mundo.

- Devido a ela também. Mas para mim…

Leonora aguarda, lateja-lhe o coração descompassado. O vento traz farrapos de risos, sons de harmónica, o nome de Arminda gritado no forro. A voz de Ascânio rompe-se num lamento:

- Eu era um morto-vivo, não achava graça em nada. Vou lhe contar, se permitir. Ela se chama Astrud.

Para que contar? Quem não sabe em agreste? Dona Carmosina, romântica como Leonora, recitara as cartas para ela e Tieta, suspirara os detalhes tristes. Revoltara-se Leonora com o procedimento da fingida. Tieta apenas rira, não era de sentimentalismos, de amor se vive, não se morre, não é mesmo, Barbozinha? Ascânio não esperou o consentimento. Leonora escuta e mais uma vez se emociona.

Os estudos na Baía, o noivado, a doença do pai, a carta anunciando a ruptura e o casamento. Por que continuara a jurar amor quando já nos braços de outro? Dando-lhe o que jamais consentira a Ascânio nem ele sequer solicitara pois a supunha inocente, angélica, santa. Um bobo alegre. Dissera a dona Carmosina, confidente, boa amiga a sofrer com ele:

- Nem que um dia desembarque da marinete de Jairo a mais bela mulher, a mais doce e pura…

Afirmara pois não supunha possível tal milagre. Aconteceu, no entanto. A mais bela, a mais doce, a mais pura das mulheres, desembarca da marinete de Jairo.

Ergue-se Leonora. De frente para o mar, os olhos na distância onde o luar se dissolve na noite. Levanta-se também Ascânio, ia completar: a mais bela, doce e pura das mulheres, ademais rica, por quê? Pobre Secretário da Prefeitura de Sant’Ana do Agreste, soldo mesquinho, ai! Por que tão rica?

- Não chegou a falar de pobreza e riqueza. Trémula, os olhos húmidos, Leonora se aproxima, toca-lhe a face com a mão, oferece-lhe os lábios. Desce a correr, na boca o gosto do primeiro beijo. Foge por entre a lua e as estrelas, feliz e desgraçada.

Ascânio não tenta segui-la, está fincado ali, quando sair vai conquistar o mundo. Ah! um dia chegará diante dela e lhe dirá: não tenho para o luxo mas ganho para o sustento, vim te buscar. A lua
desaparece na lonjura, no caminho do mar para as costas de África.

terça-feira, março 03, 2009


Mataram o Nino !


A cultura da violência saída das guerras coloniais prossegue o seu caminho. Sobreviveram às emboscadas, aos bombardeamentos, aos ardis da luta subversiva e acabam às mãos ou às bombas dos seus camaradas de guerra.

Ficou-lhes na boca o gosto da morte e se uma guerra acabou era preciso continuar outras… podiam ter morrido como heróis, armas na mão em luta pela liberdade dos seus destinos colectivos, mas acabaram sem honra, assassinados pelos seus “irmãos” de uma vida.

O percurso da história escreve-se sobre o passado e conta-se, não pelo decorrer dos anos, mas sim pelo das gerações e a geração que fez a guerra, mesmo ganhando-a, ficou lá, presa à adrenalina, ao cheiro do sangue.

É mais fácil ganhar a guerra do que a paz, um país e muito menos ainda o desenvolvimento e o progresso das populações.

As qualidades para guerrear nas selvas de África e conduzir homens debaixo de fogo, por muitas que sejam, não são, quase sempre, as mesmas necessárias para governar e Nino que foi, indubitavelmente, um grande e corajoso chefe de guerrilha, foi completamente incapaz de unir o seu povo e construir o país pelo qual tanto lutou.

Amílcar Cabral não poderia sentir-se mais frustrado e desiludido se pudesse ver sua Guiné possuída por traficantes de droga, talvez a situação mais indigna e humilhante que lhe poderia estar reservada e Nino assistiu, conviveu e talvez tenha tirado proveito desta situação a que o país chegou.

Atendendo ao seu passado heróico, exceptuando o aspecto humano, Nino mereceu o fim que lhe reservaram e se o seu país vier a ter futuro, o lugar que a história lhe destinará só deverá ser escrito até ao momento em que a guerra com a tropa colonial terminou e a paz foi celebrada.

A partir daí portou-se como um mau chefe tribal não sendo capaz de preencher o papel que estes desempenham nessas sociedades.

Alianças feitas e desfeitas, traições, esquemas e negociatas, vinganças, ordens para matar, foi o que sobreviveu aos seus feitos guerreiros.

Como disse Mário Soares:

- “Ele era um homem violento, em si próprio, e morreu na violência…”




ABBA - I DO, I DO, I DO, I DO



PHIL COLINS/LAURA PASSINI - THE SAME MOON



BOBY SOLO - UMA LÁGRIMA SUL VISO




Ricardo Reis



Cada Coisa




Cada coisa a seu tempo tem seu tempo.

Não florescem no inverno os arvoredos,

Nem pela primavera

Têm branco frio os campos.





À noite, que entra, não pertence, Lídia,

O mesmo ardor que o dia nos pedia.

Com mais sossego amemos

A nossa incerta vida.





À lareira, cansados não da obra

Mas porque a hora é a hora dos cansaços,

Não puxemos a voz

Acima de um segredo,





E casuais, interrompidas, sejam

Nossas palavras de reminiscência

(Não para mais nos serve

A negra ida do Sol) —





Pouco a pouco o passado recordemos

E as histórias contadas no passado

Agora duas vezes

Histórias, que nos falem





Das flores que na nossa infância ida

Com outra consciência nós colhíamos

E sob uma outra espécie

De olhar lançado ao mundo.





E assim, Lídia, à lareira, como estando,

Deuses lares, ali na eternidade,

Como quem compõe roupas

O outrora compúnhamos





Nesse desassossego que o descanso

Nos traz às vidas quando só pensamos

Naquilo que já fomos,

E há só noite lá fora.




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Tieta do Agreste

EPISÓDIO Nº 67


Ali em Agreste, mundo pacato e diferente, onde a vida parece ter adormecido e assim é vivida por inteiro, Leonora sente-se tomada de exaltação e medo. Em Agreste o sonho persiste além da imaginação, concretiza-se em recatado enleio, alimenta-se de olhares e sorrisos, gentilezas, meias palavras, cresce no canto do pássaro sofrê, presente de príncipe encantado que ela não deseja príncipe, nobre ou rico, apenas encantado, decente. Mesmo sabendo-o inatingível, Leonora anseia ao menos chegar à margem, tocar com as pontas dos dedos o simples, maravilhoso mundo.

Para agir correctamente, deve abrir-se com Mãezinha, ouvi-la, seguir-lhe os conselhos. Receia, porém, que Tieta, temerosa das consequências, resolva apressar a volta a São Paulo. Leonora pretende apenas alguns dias de ternura, mesmo irremediavelmente contados, poucos – a certeza da morte não impede o homem de aproveitar a vida. Reivindica o direito a ouvir e a pronunciar palavras trémulas, a esboçar gestos de carinho, o direito ao primeiro beijo, como será?

Para guardar essas recordações, ter com que encher de saudade a solidão. Nunca sentiu saudade. De nada, de ninguém. Tudo foi ruim e sujo em seu percurso. Muita falta faz não ter um instante ao menos, um rosto, uma carícia, uma palavra a relembrar, não ter saudades. A solidão torna-se vazia e perigosa. Implora uns dias apenas, por misericórdia, suficientes para encher o coração de momentos ternos, dos quais se recordar. Então, dirá: vamos embora daqui, Mãezinha, antes que seja tarde.

Prossegue Claudionor animando o arrasta pé, pode atravessar noites e noites, firme na harmónica. Um ruído de motor se mistura à música, vem dos lados do rio, quem será? Leonora terá saudades desse minuto breve, do pressentimento e da ansiedade. Acompanha o barulho que cresce e se modifica:
A embarcação enfrenta o mar na entrada da barra. Volta a reinar sozinha a harmónica festiva. Logo, os passos na areia, Leonora pôs-se de pé. Ascânio aparece, desembarca do luar. Num ímpeto, a moça se adianta.

No meio da sombra as mãos se tocam, sorriem os lábios, brilham os olhos.

- Vim no barco de Pirica. Veio só me trazer, já está de volta – novamente o barulho do motor, o casco de encontro às vagas.

- Não aguentou esperar até amanhã, hein, mestre Ascânio? Fez muito bem, quem é aguardado não se pode atrasar – saúda o Comandante.

O rapaz busca uma desculpa:

- Prefiro viajar de noite do que acordar de madrugada.

Não sabe como agir: deve sentar-se a conversar ou partir com Leonora?

Dona Aída vem em seu socorro:

- Por que não leva Leonora para apreciar o luar de cima dos cômoros?

É tão… - ia a dizer romântico, conteve-se - …tão lindo…

Sugestão aceite, a moça amarra um lenço na cabeça:

- Com licença…

O movimento acorda Peto: vou com vocês. Mas o Comandante, cúmplice, proíbe.

- É hora de menino estar dormindo.

Os vultos perdem-se entre os coqueiros. Dona Laura suspira:

- Nada se compara com a juventude. Só tenho pena de não ter namorado com Dário aqui em Mangue Seco. Quando vim, já tínhamos dez anos de casados.

- Foi nossa segunda lua-de-mel… - lembra o comandante.

- Moça educada, essa… se vê logo que é de boa família – elogia dona Aída.

Pensativa, acompanhando com os olhos as duas sombras, Tieta retorna à conversa:

- Leonora? Um amor de criatura. Está saindo da fossa, de uma decepção tão grande que lhe abalou a saúde. Um patife, de quem foi noiva, só queria o dinheiro dela. Felizmente, me dei conta a tempo. Mas a pobre sofreu demais, uma crise terrível, não dormia, não comia, acabou anémica. Por isso trouxe ela comigo para curar-se nos ares de Agreste.

- Agiu certo, aqui ela vai refazer-se em dois tempos. Não há como leite de cabra para levantar as forças de uma vivente – aprova Modesto Pires.

- O mais curioso é que ele também teve uma desilusão medonha. Não ouviu falar, dona Antonieta? – pergunta dona Aída.

Antonieta conhece a história tintin por tintin mas não quer furtar a dona Aída o prazer do relato, das minúcias e dos comentários:

- Não, senhora.

Não? – admira-se dona Aída no cúmulo da satisfação: - Pois eu lhe conto.

segunda-feira, março 02, 2009

BOBBY SOLO - AMORE MI MANCHI



LITTLE RICHARD - GOOD GOLLY MISS MOLLY



BEE GEES - CHERRY RED


ANDREA BOCELLI - AMAPOLA




FERNANDO PESSOA


Foi um momento
O em que pousaste
Sobre o meu braço
Num movimento
Mais de cansaço
Que pensamento,
A tua mão
E a retiraste.
Senti ou não?
...

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.


Tieta do Agreste


EPISÓDIO Nº 66


ONDE TIETA COMPRA UM TERRENO EM MANGUE SECO E LEONORA, BEM-EDUCADA, DEVANEIA



Haviam voltado aos cômoros na noite enluarada, ela e Tieta. Leonora parecia flutuar na paisagem encantada – de repente liberta do passado, recém nascida na magia da lua cheia derramada sobre as dunas e o oceano, no embalo do marulho das ondas. Gostaria de demorar no cimo, deitada sobre a areia, invadida de paz. Mas, quando o Comandante veio recordar o encontro marcado com dona Aída e Modesto Pires, Leonora não quis ser desatenta, regressou com Tieta à Toca da Sogra.

Por sua vontade teria permanecido no alto dos cômoros, sob o luar encomendado por Ascânio, deslumbrante como ele prometera, a sentir o mar nocturno arrebentando contra as montanhas de areia. Mesmo sozinha: pensaria nele, cioso dos deveres de administrador, tão correcto. Sujeito decente, diziam de Ascânio. Decência, virtude rara, constata Leonora. Teve de atravessar o Brasil, chegar ao sertão para vislumbrá-la. Dá-se conta que comete uma injustiça: Tieta é decente: a seu modo, sem dúvida. Decência não significa candura, castidade. Mulher direita, diziam dela no Refúgio.

Se estivesse nas dunas poderia escorregar, estendida sobre uma palma de coqueiro, igual a Peto, moleque travesso. Não fora travessa, não fora moleca nem menina. Não tivera infância, tão pouco adolescência; não provara o gosto do primeiro beijo recebido ou dado em ímpeto de ternura. Não tivera namorados, não ouvira palavras sussurradas, cálidas. Aos treze anos já lhe apalpavam inexistentes seios.

Tenta reconhecer os sons da harmónica – há festa na povoação. Passaram por lá, viram os pescadores reunidos diante de uma choupana em torno do tocador. Não era outro senão Claudionoro das Virgens, com a harmónica, as emboladas, as trovas, os improvisos, de lugarejo em lugarejo, de baptizado em baptizado, de casamento em casamento, onde houver festa. Ao vê-los saudara:

Salve o senhor Comandante
E sua ilustre companhia.


Na Toca da Sogra, Antonieta, apressada como sempre que deseja alguma coisa, acerta os últimos detalhes da compra do terreno. Leonora persegue o som da harmónica, distante da conversa.

- Pague como bem entender, em quantas prestações quiser. Nem por ser dono vou mentir: terreno em Mangue Seco não se compra nem se vende. De muitas dessas terras nem se sabe o dono. Faz mais de quatro anos que vendi um lote. Para um gringo que apareceu por aqui; se lembra, Comandante?

- Lembro muito bem, era um alemão, pintor. Anunciou que se ia desfazer da casa da Baviera para vir morar em Mangue Seco.

- Pagou três prestações adiantadas dizendo que precisava de três meses para botar a vida em ordem na terra dele e voltar de vez. Nunca mais voltou nem acabou de pagar.

Eu quero pagar à vista seu Modesto. Dinheiro batido, moeda corrente… - anunciou Tieta a rir.

- Vê-se que a senhora não é mulher de negócios, dona Antonieta: com a inflação, comprar a prazo sempre é melhor.

- Não gosto de dever, é por isso, mas não pense que sou tola. Como pago à vista quero abatimento.

Foi a vez de Modesto Pires rir:

- Abatimento? Vá lá. Cinco por cento, que lhe parece? Não por ser à vista mas pelo prazer da vizinhança.

Espreguiçadeiras, tamboretes, um banco rústico na porta de casa, debaixo dos coqueiros. Ali conversam enquanto a lua se desmancha. Peto adormecera deitado na esteira.

Leonora escuta vagamente o diálogo, também ela se pudesse, compraria terreno em Mangue Seco. Não para a velhice mas para ficar desde agora.

Ansiara a vida inteira por sentimentos e verdades de cuja existência tinha notícias por ouvir dizer, através de filmes de cinema, das novelas de televisão. Nada de mais, sentimentos normais, verdades corriqueiras. A avó, referindo-se à vida na aldeia toscana antes da viagem, falava de coisas simples: família, sossego, paz, amor. Amor como seria? Nas ruelas podres, no cortiço seboso, ninguém soubera responder.

Quanto mais por baixo, batida, derrotada, lacerada, rota por dentro mais se refugiava Leonora no modesto sonho irrealizável: afecto, ternura, bem-querer de um homem. Vida limpa como existia fora dos limites onde nascera, crescera e se fizera mulher, mais além do círculo de dor e desespero. Subindo e descendo a Avenida nas frias madrugadas, carregando seu fardo, o castigo por ter nascido filha de pais tão pobres em terra tão rica, as chagas abertas, ainda assim sonhava. Se não sonhasse só lhe restaria a morte.

Inesperadamente, quando o horizonte se fizera aperto na garganta, estertor final, conheceu a bondade e nela descansou, aprendeu novos valores, sentiu-se uma pessoa. Os sonhos loucos de amor eterno adormeceram pois, não sendo torpe a nova condição, apenas triste, menos carente estava. Não de todo satisfeita: sempre no desejo, na intenção de sair daquele invólucro para a existência desejada: casa e companheiro – não previa casamento – um par de filhos. Outros reclamam dinheiro e fama. Leonora nascera como a avó, para ser dona-de-casa, mãe de família, não almeja mais do que isso.


domingo, março 01, 2009

LLOYDE PRICE - PERSONLITY (1959)



CHRISTIAN ANDERS - EINSAMKELT HAT VIELE NAMEN (1974)




O PS E O SEU CONGRESSO




Inevitavelmente, sendo a eleição do Secretrário Geral por voto directo, os Congressos dificilmente poderão deixar de ser aquilo que este foi porque se chega a eles com o líder já eleito e o que resta fazer é consagrá-lo…é uma consequência das directas e traduz-se no enfraquecimento do debate de ideias e de políticas.

Portanto, não nos queixemos dos Congressos de Consagração de líderes mas antes da forma encontrada para chegar a eles.

Se se opta por ir directamente ao líder em vez de primeiro discutir e votar programas e finalmente eleger como líder o responsável do programa mais votado, os Congressos serão exactamente isto.

O mesmo se passa com o PSD sendo, esta opção por directas, uma evolução do nosso sistema político/partidário do “complicado e trabalhoso” processo de agregar pessoas, ideias e programas, para ir directamente atrás da solução simplista e algo demagógica dos chefes carismáticos que arrebatem as multidões com os seus discursos inflamados.

Mas cada sociedade tem a democracia que mais gosta e esta é tão legítima como qualquer outra porque se baseia no voto livre dos militantes de cada partido e corresponde a características idiossincráticas do “nosso povo”, como diria o “camarada” Jerónimo.

Ultrapassado este aspecto, permanece o sempre actual problema da governabilidade deste país de pessoas quezilentas, invejosas, sempre a “olhar para o seu umbigo”, para os seus “intressesinhos” e status pessoais, de grupo e classe tão difíceis de conciliar com os interesses do país e dos portugueses.

E aqui entronca a estabilidade política para que a acção governativa possa resultar de uma linha de decisões continuada dentro de um programa, que muito ou pouco discutido previamente, tenha sido eleito pelo voto dos cidadãos.

Sócrates governou com maioria absoluta o que é difícil de acontecer com o sistema consagrado na nossa Constituição que, neste aspecto, foi concebida para uma outra sociedade de pessoas que não a nossa.

Impor soluções políticas que passam por entendimentos entre pessoas que, declaradamente, não gostam nem querem entender-se, é colocar o país a viver sobre o “fio de uma navalha” que um dia pode acabar mal.

Nunca conseguirei esquecer “o queijo limiano” e “pântano político de António Guterres” que atirou para fora do país um dos nossos concidadãos de melhor qualidade e nos deixou apreensivos agarrados à tábua de salvação de que, “em democracia há sempre uma solução”, mesmo quando ela se chama Santana Lopes!

Todos temos presente as dificuldades de governação de Sócrates mesmo com a maioria absoluta na Assembleia. As reformas que tentou levar a cabo, mais ou menos bem sucedidas, umas mais incompletas do que outras, levantaram contestações de todos os lados até que se abateram sobre ele com o caso Freeport.

Esta nossa sociedade não quer reformas porque os grupos profissionais não aceitam ver mexidos e afectados os seus interesses e privilégios e só discutem aquilo que os possa melhorar ou deixar na mesma, nas tintas em que estão para o interesse do país e a apoiá-los têm:

1º - Uma certa Imprensa, o tal 4º Poder que se acha a si próprio e com razão, cada vez mais poderosa;

2º - Um Partido Comunista “filho” da ditadura de Salazar e que sobrevive como relíquia do passado, objecto de estimação do qual não nos conseguimos separar por uma questão de sentimentalismo e que repete tudo, da mesma forma, passe o pleonasmo, com qualquer partido que esteja no governo:

3º - Alguns líderes sindicais que concertados com o PCP lideram e orquestram manifestações e protestos por todo o país os quais, posteriormente, fazem abertura de telejornais;

4º - Finalmente, um Bloco que poderia e deveria ser o “braço esquerdo” do PS viabilizando soluções políticas de alcance social e fora dos grandes esquemas de interesses, comporta-se como um partido “reguila” liderado por um grande orador de palavra fácil e inflamada que soa aos ouvidos dos desempregados e mais necessitados como música celestial.

O PS tem que continuar as reformas, aprofundá-las, não ter medo mas explicar com clareza e muita paciência e humildade as decisões que toma. Os cidadãos não podem estar reféns da voz de certos líderes sindicais e de políticos de oposição.

O PS iniciou um percurso mas tem que o continuar, especialmente no sector da Justiça que será, provavelmente, o mais difícil e para isso não estará muito bem servido de ministro.

Acresce que à Justiça está ligada a segurança das pessoas e nos últimos 10 anos a criminalidade quase que duplicou e esta evolução tem que ser levada muito a sério não só pelas autoridades deste país mas de todo o mundo.

Veja-se o que se passa no Brasil:

- Segundo, a Secretaria de Segurança Púbica do Rio grupos de milícias constituídos por polícias, guardas prisionais e bombeiros corruptos obrigam habitantes de bairros pobres a pagarem pela sua segurança. Das 968 favelas da cidade, 200 já estão controladas por esses grupos “apenas” aproveitando brechas na legislação e morosidade na Justiça…e o Brasil é aqui ao lado.

A Reforma fiscal é outro sector prioritário para a intervenção do governo: as grandes fortunas, as fraudes e as fugas aos impostos e para já, enquanto não for possível acabar com as Ofshores, controlar os movimentos dos dinheiros para essas contas e o sigilo que as protegem. Entrámos num período em que as pessoas de todo o mundo vão sofrer muito na qualidade das suas vidas e essa situação é um convite para os governos tomarem medidas que talvez, fora dela, não fossem possíveis.

Temos um presidente nos EUA que caiu como “sopa no mel” para ajudar o mundo a superar esta crise e cada governo, seja onde for, tem que cumprir, neste aspecto, a parte que lhe cabe.

Sócrates e o seu governo não podem ficar em dívida nesse esforço colectivo e eu percebo perfeitamente que a continuação do governo nesta linha reformista necessite de estabilidade política que passa por uma nova maioria absoluta.

Fora dela, não vejo nenhum entendimento, acordo, coligação que seja vantajosa para o país…restando apenas negociatas políticas com o “famigerado” Paulo Portas que ganhou votos numa eleição com a promessa de dar uma pensão aos antigos combatentes do ultramar sem saber onde ir buscar o dinheiro e levando as pessoas a pensar que seria uma prestação mensal.

Estes políticos que se aproveitam da ingenuidade e boa fé dos cidadãos e os enganam com promessas fraudulentas deveriam ser castigados pelo eleitorado mas, pelos vistos, não neste país.

Sócrates e o PS fizeram, neste primeiro ciclo governativo de 4 anos, alguma coisa que representou melhorias importantes para o país e há muito deveriam ter sido efectuadas mas tem que continuar porque ainda há muito para fazer e, para o ajudar e ajudar o país, dar-lhe-ei o meu voto nas próximas eleições legislativas.

THE PLATTERS - REMEMBER WHEN



PAT BOONE - BERNARDINE


JACK JONES - THE IMPOSSIBLE DREAM



Tieta do Agreste
EPISÓDIO Nº 65


Pode acertar aqui mesmo. Modesto e dona Aída estão na praia. Aliás ele mandou convidá-la para tomar aperitivo em casa dele, antes do almoço. Fica mais adiante ao pé da casa de pescadores.

- Tudo aqui é belo. Nunca vi nada igual – diz Leonora de retorno à Toca da Sogra, dona Laura exigindo que ela prove a batida de pitanga. – Obrigado dona Laura, mais tarde aceito. Agora, se me dão licença vou andar na praia. – Mansa e discreta, tão querida.

- Olha que o almoço não demora e, antes, devemos ir a casa de seu Modesto. A moqueca já está sendo preparada, Gripa é especialista. – Na pequena cozinha a gorda mulata clara sorri a escamar os peixes.

- Volto já, vou só dar uma espiada.

- Vou com você. – A voz rouca de Tieta.

Peto sai correndo na frente, começa a escalar as dunas, logo chega ao alto, monta numa palma seca de coqueiro, desce veloz a cavalgá-la. Convida a tia e Leonora. A ventania uiva, a areia voa em rodopio.

Tieta sente no rosto o sopro da maresia, o inconfundível olor. A areia fina trazida do outro lado da barra na força do vento, penetra-lhe os cabelos. O sol queima-lhe a pele. Ali fora mulher pela primeira vez.

Em Agreste, perguntara ao Árabe Chalita pelo mascate. Pois não sabe? Morreu de um tiro quando a polícia quis prendê-lo na Vila de Santa Luzia, há uns dez anos, mais ou menos. Valente, não se entregou, nunca encontraram a mercadoria, as provas. Chalita cofia a bigodeira.

- Gostava de levar umas quengas para Mangue Seco. Molecas também.

- Repousa em Tieta o olhar de sultão decadente. Entre eles, ali, na porta do cinema, por um instante redivivo, o contrabandista.

Os cômoros crescendo entre as duas mulheres, Peto a descer estendido na palma do coqueiro. Qual dessas dunas galgou Tieta na distante tarde de mascate? Leonora a interroga com os olhos, ela abana a cabeça:

- Quem pode saber? Sinto uma coisa por dentro, Leonora. Por estar aqui de novo, com esse vento na cara e esse mar na minha frente. Quase tudo no mundo já apodreceu, mas ficou Mangue Seco, você entende? Quando chegar lá em cima, você vai ver.

Estão próximos do cume, Peto as alcance, Leonora força o passo, os pés se enterram na areia.

- Ai! Que coisa! Isso não existe – exclamou a moça paulista ao divisar inteira a paisagem ilimitada.

Busca Tieta com os olhos ofuscados pelo sol e a enxerga erguida no ponto mais alto, no extremo das dunas sobre o oceano, envolta pelo vento, invadida de areia, pastora de cabras diante de sua cama de noiva.

Leonora chega junto dela, a voz estrangulada:

- Mãezinha, não quero ir embora daqui, nunca mais. Não vou voltar para São Paulo.

Peto as convida a cavalgar as palhas de coqueiro, venham ver como é bom. O vento leva as loucas palavras de Leonora, Tieta não responde.

- Nunca mais! – repete a moça.

Melhor seria se afogar ali, nas vagas desmedidas, no mar enfurecido.

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