sexta-feira, novembro 02, 2007


Lembranças da Guerra (cont.)

Os Luenas


Como era costume, naquela fase da guerra em Angola, as baixas e o desgaste das tropas que iniciavam sempre a sua comissão pelo norte atingia tais limites que ao fim de mais ou menos de um ano eram substituídas por contingentes chegados de Portugal e rumavam para outras regiões do sul e leste onde não havia confrontações.

Por esta razão, o meu Batalhão foi transferido para a região leste tendo ficado sedeado em Vila Teixeira de Sousa, na fronteira com o Congo, a minha Companhia seguiu para o Cazombo e eu, com o meu grupo de Combate, mais uma vez fui destacado para o Lumbala, ainda mais a sul, nas margens do rio Zambeze, a 50 Km do Posto de Caripande, na fronteira com a Rodésia do Norte que declararia a independência meses mais tarde, em 1964, para dar lugar à actual Zâmbia.

Foi uma viagem épica, primeiro de comboio, no vagão J, de mercadorias, atravessando todo o território do Lobito até Vila Teixeira de Sousa, durante dois dias e uma noite, numa distância de 1300 km e sem mais delongas, que não fosse o tempo necessário para mudarmos para as camionetas que nos esperavam, seguimos para o Cazombo e eu continuei até ao Lumbala onde passei os Natais de 1963 e 64 até ao fim da comissão, em Março de 1965.

Foram 15 meses vivendo em harmonia com as populações e a natureza mas foram também, rigorosamente, os últimos 15 meses de paz em toda aquela zona.

Precisamente, um dia depois de termos partido foi atacado e morto um soldado que estava de serviço no Aeroporto do Cazombo e este acontecimento marcou o início da guerra no leste de Angola.

Quis, portanto, o simples desígnio das coisas e da vida que tivesse chegado ao norte de Angola suficientemente tarde para ter sido poupado ao terrível espectáculo das cruéis mortandades e cedo suficiente ao leste para não ter participado na mortífera luta que o MPLA ali desencadeou e que pelas características do terreno, plano e com pouca vegetação, expunha mais os militares e ocasionava mais baixas.

Mas esta já não foi a minha guerra, eu tive a oportunidade de conviver pacificamente com as populações, respeitando-as e ajudando-as dentro das possibilidades ao meu alcance.

Visitava-as regularmente para lhes prestar apoio médico, lembro-me de um menino de um quimbo (aldeia) ainda distante e que visitei várias vezes para o tratar de uma ferida feia que tinha num pé, na zona do artelho.

Partilhava com eles a carne da caça que matava para alimentação e só lhes comprava o que aceitavam vender-me e pelo preço que estabeleciam mesmo que fosse inferior ao que lhes queria pagar, como aconteceu certa vez com um pequeno saco de cebolas que para mim valiam ouro e pelas quais queria dar 20 escudos mas que o vendedor exigiu que fossem 10 por mais explicações que lhe tivesse apresentado.

As portas do aquartelamento simplesmente não existiam e todos os dias de manhã a enfermaria estava à disposição das populações tirando partido de um cabo enfermeiro que muito embora com os seus modos, por vezes rudes e bruscos, nunca recusava atender ninguém nem que fosse para lhes dar um simples aspirina.

Ali perto, com a ajuda das pessoas das aldeias próximas, construímos um telheiro com os mesmos materiais com que se faziam as casas das aldeias e pusemos uma escola a funcionar com a colaboração de um cabo que levava muito a sério as funções de professor.

Aos sábados à noite convidavam-nos para os seus batuques e os soldados, com a sua melhor farda e ao pescoço o lenço verde distintivo da nossa Companhia, participavam como se estivessem nos bailes da sua aldeia.

Ofereciam-nos hidromel, bebida alcoólica fermentada à base de água e mel, e que ia produzindo os seus efeitos à medida que a noite ia avançando e o batuque ia aquecendo os corpos e amolecendo os sentidos.

Primeiro procediam à afinação dos tambores encostando-lhes as chamas de uma tocha enquanto lhes batiam levemente para conseguirem o som ideal e de seguida, dispensando a intervenção de qualquer chefe de orquestra, homens e tambores formavam uma entidade única e criavam um fundo de sons ritmados, electrizantes, que vinham lá do princípio dos tempos quando tudo para nós, homens, começou.

Nenhum outro espectáculo me reconduziu tão próximo das minhas origens como aqueles batuques na aldeia dos Luenas, nas terras do fim do mundo do Alto Zambeze, debaixo dos céus de África em noites de lua cheia que não dispensava a sua presença.


A terra ali era pobre, pouco ou nada se conseguia criar para além da mandioca mas se os elefantes resolvessem invadir as lavras e não fossem enxotados a tempo nem ela sobrava.

O governo de Angola tinha proibido a caça do elefante em toda aquela região ao contrário do que acontecia no outro lado da fronteira. Por isso, os animais procuravam a segurança do lado de cá com custos enormes para a população.

Parece-me que ainda estou a ver a rainha Nhakatolo Chissengo, pequenina no tamanho mas grande em dignidade, dizer textualmente, olhos nos olhos, ao Governador General Silvino Silvério Marques que ali estava de visita:

-“Governador, os teus elefantes causam muito prejuízo”…e perderam-se na minha memória o resto das suas palavras.

O Governador mandou, pouco tempo mais tarde, um caçador profissional que matou uma fêmea que deixou órfão um pequeno elefante. Adoptado pelos soldados ia com eles tomar banho ao rio mas acabou por morrer porque a sobrevivência sem a mãe e o apoio da manada era praticamente impossível.

Claro que no fundo a situação continuou na mesma. As autoridades serviam para recolher o imposto de palhota, as licenças, por exemplo, para fazer os batuques… e periodicamente o recenseamento das populações que a eles nada interessava.

Os Luenas eram um povo de gente simpática que depois de termos ganho a sua confiança tinham sincero prazer na nossa convivência.

Eram pessoas aparentemente alegres na simplicidade das suas vidas ao estilo tradicional a começar pelas crianças educadas na tolerância e na quase ausência de castigos.

Conviviam de forma muito estreita umas com as outras, de idades diferentes e, desta maneira se fazia, em grande parte, a sua aprendizagem.

Nunca esqueci a forma como as pessoas se cumprimentavam segurando com firmeza os pulsos uma da outra, agitavam os braços ligeiramente para baixo e para cima e olhando-se bem nos olhos perguntavam repetidamente: gum-gum-gum? a que corresponde, entre nós, estás bom?

Como também nunca esqueci o meu amigo Sózinho, cipaio no Posto da Administração e que normalmente me acompanhava como intérprete nas minhas viagens.

Sozinho, o que está a ele a dizer?
-“Nada, nosso Alferes, está só a falar.

À pergunta provocatória de que o facto dos homens terem várias mulheres podia contribuir para o adultério ele deu uma enorme gargalhada mostrando a mais esplendorosa dentadura e disse-me com toda aquela sinceridade que lhe ia na alma:

"Oh nosso Alferes, mulher Luena nasceu para foder! "


Mas quando numa viagem, não resisti à tentação de fazer à sua frente uma sopa liofilizada como se fosse um número de ilusionismo, provou e disse para meu desapontamento: "Tchi… Até tem sal e tudo!"

Pelos tempos de guerra que se seguiram, temo pelo seu destino, talvez tenha fugido para a Zâmbia, talvez tenha sobrevivido, talvez…talvez…

Recebi dos Luenas a alcunha do SARICOGE cujo significado só com muita dificuldade e depois de grande insistência consegui saber através do velho Sacuá, cozinheiro do Chefe de Posto.

As alcunhas que punham aos portugueses, e eu digo portugueses e não brancos porque naquela zona de fronteira com a Rodésia do Norte, para os indígenas, brancos eram os ingleses. Nós éramos simplesmente os portugueses.

Mas, dizia eu, que as nossas alcunhas, e todos as tínhamos, constituíam um assunto que era deles e só para eles porque representavam uma incursão perigosa entre a gente que mandava e que podia ficar desagradada pois as alcunhas, tal como entre nós, não eram postas para agradar ao destinatário.

Eu revelo o significado da minha alcunha com algum pudor mas também com orgulho, muito maior do aquele que senti pelo louvor que me foi atribuído pelo Comandante de Batalhão relativamente àqueles 15 meses.

Saricoge, significa em Luena, e a responsabilidade é do Sacuá: “Um homem bom, que não estabelece diferenças entre brancos e pretos, pobres e ricos”.

Hoje, recordando esses 15 meses, reconheço que enquanto os vivi não lhes dei toda a importância que eles tinham e estive muito longe de os ter vivido em toda a sua plenitude.

Embora tenham sido, num certo sentido, os 15 meses mais felizes da minha vida, deixaram-me um sabor a oportunidade não perdida mas em parte desperdiçada.

Aquele contexto foi o último da história daquela gente e da minha vida, depois, foi um virar de página, nada voltaria a ser igual nem sequer parecido.

A guerra com os portugueses durante 13 anos a que se seguiu a independência e a guerra civil foi um parto extraordinariamente doloroso com muito mais mortes, dor e confusão no espírito das pessoas repartidas entre a UPA, que em 1962 se passou a chamar FNLA, o MPLA e a UNITA que começou a intervir em 1966.

A guerra civil teve, em grande parte, características tribais e rácicas que nem o MPLA conseguiu disfarçar totalmente para grande desgosto do Dr. Agostinho Neto casado com uma senhora branca.

Os conceitos de Nação e País era coisa importada, estranha, não fazia parte da cultura ou da tradição das suas organizações políticas e sociais.

Mas os dados estavam lançados, não se podia voltar para trás e todos têm o direito e a obrigação a construir a sua própria história, aprender permanentemente com as suas experiências, boas e más, sem a presença dominante, imposta pela força, de quem quer que seja.

Que a simples convivência pacífica e harmoniosa entre pessoas de raças, culturas, credos e línguas diferentes é possível, eu posso testemunhá-lo mas, é claro, o contexto em que vivi essa experiência correspondia àquilo a que eu gosto de chamar de situação de equívoco em que tudo está errado da cabeça aos pés.

Pensar que essa convivência pacifica e harmoniosa de 15 meses pode ter tido alguma coisa a ver com a circunstância de a guerra ter começado, exactamente, no dia a seguir a que me vim embora, talvez seja demasiada pretensão da minha parte mas gosto de alimentar essa dúvida dentro de mim.

Gostaria que os meus amigos Luenas que nos receberam e trataram tão bem durante todo aquele tempo em que estivemos entre eles tenham hoje, talvez mais os seus filhos, agora que a poeira da guerra já assentou em definitivo, encontrado uma via para o desenvolvimento à sua justa medida ou seja, que os ajude a serem felizes.

Eu vou acompanhando-os cá de longe, através da Internet, nos “sites” que me dão notícias dos Luenas porque o mundo hoje, como já é vulgar dizer-se, não passa de uma aldeia global.

Quanto à guerra em que participei, a norte, a teimosia dos portugueses em permanecerem no território resistindo às atrocidades que sobre eles foram cometidas e que devolveram com igual intensidade e crueldade, pode ter surpreendido Holden Roberto.

A guerra foi de completo genocídio em que da parte da UPA se pretendeu matar todos os brancos e negros que com eles colaboravam enquanto, no exército português, as instruções eram para atirar contra tudo o que mexesse na mata.

O desprezo pelas vidas humanas, mais uma vez, foi total, rodeando-se a morte de requintes de crueldade que só o ódio e a vingança podiam explicar.

A loucura atingiu o seu máximo expoente quando os líderes da UPA convenceram as populações de que as balas dos brancos eram água levando a que milhares de pessoas se deixassem matar caminhando na direcção das metralhadoras de peito aberto batendo com paus no chão.

Depois do que tinham feito nas fazendas aos colonos e seus empregados, aquela demonstração de determinação quanto aos seus objectivos mais parecia uma decisão de suicídio colectivo.

A esperada exaustão política e económica e a oposição interna e externa à guerra colonial levou à Revolução dos Cravos e ao fim da luta.

Falharam os políticos em Portugal que em vez de negociarem em tempo uma saída digna que tivesse acautelado os interesses possíveis, permitiram aquela retirada vergonhosa para os cidadãos portugueses e desprestigiante para o país.

Falharam os políticos em Angola que ávidos de poder desprezaram os interesses da população que mergulharam numa guerra civil ainda mais destruidora e prolongada do que a colonial.

Ficou a história, vivida, contada e escrita de ambos os lados e segue a paz e o esforço de recuperação para o desenvolvimento tendo em vista melhores condições de vida no futuro.

Afinal, não terá sido sempre assim ao longo dos tempos?




















terça-feira, outubro 30, 2007

Lembranças de guerra (cont)


Lembranças da Guerra (cont.)


Sejamos sinceros, perseguir e abater o inimigo, não incluindo nesta designação as populações que viviam fugidas no mato depois das matanças de Março de 1961, era um objectivo quase inalcançável para os nossos soldados.

A sua preparação em termos de treino militar para a guerra de guerrilha não existira, o seu recrutamento não satisfizera nenhum critério de selecção pois com excepção dos cegos e coxos toda a gente era apurada para ir para a guerra.

Os motoristas, por exemplo, chegavam a Angola praticamente sem saberem guiar e uma percentagem enorme de feridos e mortos ocorreram em consequência de desastres de viação o que era até referido, com um certo orgulho, pelos comandos militares, para afirmarem a ineficácia do inimigo.

Especialmente depois das mortes ocorridas na emboscada que vitimou os nossos colegas da Companhia 389, duas ou três semanas logo após a nossa chegada, o objectivo não era matar mas apenas não morrer.

Éramos um exército de presença, de ocupação, que pretendia assegurar a defesa das populações, manter abertas as vias de comunicação e permitir, lentamente, o retomar das actividades económicas.

Em resumo, dávamos o peito às balas e o corpo às minas do inimigo.

Para se ganhar a guerra, se ela tivesse uma vitória possível que não tinha, seria preciso um outro tipo de militares, profissionais da guerra sob todos os aspectos, homens seleccionados entre voluntários vocacionados e preparados para perseguir e combater os guerrilheiros.

Os responsáveis pela condução da guerra logo se aperceberam disto e ainda em 1962 iniciou-se a constituição de uma tropa de elite, os denominados Comandos, constituídos por militares que se destacavam pelas suas aptidões e que eram convidados ou se ofereciam para receber um treino especial dado por um antigo sargento da Legião Estrangeira, um italiano de seu nome Dante Vachi, especialista em guerra subversiva com experiências na Argélia e Indochina e que, no início das sessões de instrução gritava para os instruendos num italiano aportuguesado:

-“Prima Cosa: fare la barba, tropa suja não ganha a guerra”.

Que não se pedisse mais aos nossos soldados provenientes, na sua maioria esmagadora, do meio rural sem nenhuma experiência de vida fora das suas aldeias, com as mãos mais habituadas ao cabo das enxadas do que à delicadeza de um gatilho num meio hostil e completamente desconhecido.

Recordo um soldado meu, que quando juntamente com outros, mandei apear da viatura para fazerem umas rajadas para a esquerda e direita de uma curva da estrada que, mais à frente, me pareceu suspeita pôs-se a rezar, ajoelhado, em vez de fazer os tiros como lhe tinha mandado.

Até ao fim da comissão ficou com a alcunha do Pai Nosso.

Outro, depois de chegar ao aquartelamento após ter participado numa escolta confessava aos camaradas: “É pá, tive tanto medo que não me cabia no cu a cabeça de um alfinete”.

Também este ficou com a alcunha do Cabeça de Alfinete.

Consolava-os a ideia de que o tempo jogava a seu favor e que cada dia que passava era menos um que faltava para o regresso e como eles costumavam dizer para se animarem, o que era preciso “era acordar todos os dias com os dedos dos pés a mexer e a ramela ao canto do olho”.

E então, numa data que já não consigo recordar com precisão, talvez Abril/Maio de 63, no cumprimento de instruções do Comando do Batalhão, senão mesmo do Quartel-general, por pressão dos colonos, donos das roças de café, lá fui, com o meu Grupo de Combate, ocupar a fazenda Rainha Santa abandonada desde o início da guerra, dois anos antes, o que se assemelhava à “reconquista” de território ao inimigo.

Os donos da maioria destas fazendas estavam em Luanda ou mesmo em Portugal e recorriam a homens da sua confiança que com outros empregados asseguravam o trabalho nas roças com recurso aos bailundos, etnia proveniente do sul, distrito do Huambo, que constituíam agora a fonte da mão-de-obra perante a indisponibilidade dos quimbundos, fugidos no mato e em guerra aberta connosco.

A Rainha Santa ficava para sul do Pango e tinha limites com a fazenda Sana Clara por onde tínhamos que passar para seguir para o nosso destino.

Sem que fizesse muito sentido esta última fazenda continuava a laborar normalmente sem ter sido importunada pelos denominados “terroristas”, creio mesmo que nunca tinha deixado de funcionar muito embora pertencesse também a um português.

Não foi fácil obter esclarecimentos, as pessoas refugiavam-se num silêncio comprometido pois era evidente que tinha que haver uma razão qualquer e ela podia estar ligada a um entendimento com os guerrilheiros no entanto, o que me chegou aos ouvidos, mais tarde, é que o português, dono da fazenda, tinha por princípio respeitar as populações e mesmo relativamente à apropriação das terras não o tinha feito sem o acordo das autoridades indígenas locais.

Depois de um cafezinho que amavelmente nos foi oferecido seguimos viagem pela picada que ligava as duas propriedades e fizemo-lo num estado de espírito de grande descontracção pois era muito improvável que alguém estivesse à nossa espera.

Éramos os primeiros a aparecer ao fim de dois anos de guerra e não tínhamos, propriamente, efectuado nenhum anúncio sobre a nossa chegada e daí que não temíamos nenhuma surpresa desagradável, de tal maneira que até parámos pelo caminho para tentar caçar um veado que apareceu do lado direito da picada por entre o emaranhado das plantas do café, “invadido” pela vegetação exuberante da floresta equatorial dois anos após o abandono da cultura.

Imaginemos um monte alentejano com um grande terreiro ao centro, do lado esquerdo, casas térreas contíguas para alojar os trabalhadores e do direito, grandes armazéns onde se guardavam os grãos de café depois de secos no terreiro.

Era esta a fazenda Rainha Santa que nos apareceu depois de uma curva para a esquerda a subir ligeiramente, tudo por entre uma vegetação exuberante de um verde esplêndido, que teria engolido completamente a própria picada se ela se mantivesse sem circulação por mais uns tempos.

Ocupámos os armazéns e lembro-me, muito bem, que a minha cama, coisa de luxo, era um colchão em cima de uma porta que por lá estava no chão, abandonada, em cima de 4 tijolos com um mosqueteiro montado com a ajuda de uns paus.

Nessa noite, depois de estabelecida a segurança com recurso a sentinelas, dormimos descansadamente.

Na manhã seguinte, a primeira coisa a fazer era ir buscar água que passava, clarinha, num pequeno riacho que tínhamos atravessado antes de chegar à fazenda e, com toda a probabilidade, o inimigo lá estaria à nossa espera emboscado para nos fazer sentir que ali era a terra deles e não a nossa.

Era, assim, como uma espécie de um encontro anunciado com local e hora marcada para de manhã, cedo, antes do café.

Em outras ocasiões teria, talvez, exagerado nos perigos para redobrar os cuidados e a atenção mas daquela vez estava a ser completamente sincero e por isso chamei quatro soldados e o motorista e disse-lhes:

-“Eles vão lá estar à vossa espera por isso, apenas o motorista vai em cima da viatura, os restantes quatro vão a pé, dois à frente e dois atrás, um pouco afastados, bala na câmara, dedo no gatilho e todos os olhos atentos ao que possam ver de suspeito”.

Regressei ao armazém, preparei as coisas para fazer a barba, como dizia o italiano: “tropa suja não ganha a guerra”, mas ainda não estava completamente ensaboado quando começou o tiroteio.

Instintivamente, corri para a pistola-metralhadora e atravessei o terreiro aos tiros para o ar e a gritar juntamente com o restante pessoal: “ aí vai tropa, aí vai tropa, aí vai tropa” numa tal produção de fogo que teria feito fugir o inimigo mais temerário.

Depois, silencio, o que tinha acontecido lá em baixo não sabíamos, teria morrido ou ficado ferido algum dos nossos?

Minutos de ansiedade e logo, à distância, começou a ouvir-se o matraquear característico do motor do Unimog que mais me pareceu, então, música celestial e atrás, caminhando com todos os cuidados, lá vinham os meus quatro soldados sãos e escorreitos.

O estado de espírito era diferente em cada um deles.

O “Maia”, que propus para um louvor e que era, realmente, o mais corajoso do grupo, mantivera o sangue frio e conseguira descobrir por entre a vegetação um dos “terroristas” que estava a alvejá-los e gritou para o colega, de alcunha o “Alferes”, que estava na linha de tiro e era o mais medroso de todos:”baixa a cabeça “Alferes” e este, que não podia baixar mais a cabeça, gritava com a boca colada ao chão:

-“É pá não me chames alferes que eles matam-me…”

A história do alferes conta-se rapidamente:

Em 1960 os portugueses traziam as diferenças sociais bem evidenciadas no vestir, no falar, na maneira de estar, em suma, na apresentação e este nosso amigo, que era Lisboeta, empregado de uma drogaria, tinha uma figura delicada, pele branca, louro, de olhos verdes nada condizente com a generalidade dos camaradas, provenientes do meio rural, morenos, de tez escura queimada do sol e feições menos delicadas.

Por estas razões puseram-lhe a alcunha de Aspirante que era a patente do oficial que dava a Instrução e como estes, à data de embarque, eram promovidos a Alferes, também a ele o promoveram.

Parece que da emboscada terá resultado, na parte do inimigo, um ferido ou morto pois embora não tivéssemos encontrado nenhum corpo a água do riacho correu tinta de sangue.

Este encontro violento marcou, entre nós e eles, uma espécie de armistício, eles cumpriram a sua obrigação patriótica atacando-nos e nós marcámos a nossa presença defendendo-nos com toda a determinação numa espécie de mensagem de que não estávamos ali para ser mortos e que qualquer outro ataque poderia representar mais baixas para eles.

Mensagem entendida, nem nós alguma vez os perseguimos nem eles nos voltaram a incomodar, numa palavra: tréguas.




























Site Meter