- A vida é uma confusão, não dá para se entender. Elisa só pensa em ir
para São Paulo. Leonora agora deu para falar que quer viver em Agreste, não
quer sair daqui, nunca mais.
Um sorriso aparece, clareando o rosto anuviado de dona Carmosina,
aquele era um tema exaltante. Aproximou-se do rio, cresce o rumor da correnteza
sobre as pedras, rolam estrelas do céu, desfazem-se nas sombras.
- É verdade, ela me disse que decidiu não ir mais embora.
Conversamos
muito, Nora e eu, nesses dias que você passou em Mangue Seco. Ela
está gamada, morta de paixão. Coisa mais linda, Tieta.
Dois desiludidos, dois…
– busca na memória a palavra moderna, lida há poucos dias no artigo da revista
… - carentes que se encontram, dão-se as mãos e se completam. Está disposta a
ficar aqui.
- E você pensa que ela vai se acostumar nestes confins? Por ora, está
feliz porque no namoro com Ascânio esquece o que sofreu e ela sofreu como
cabrito desmamado.
Mas, depois?
Eu nasci aqui
e aqui quero terminar meus dias mas
só voltarei de vez quando estiver velha, coroca. Antes, só a passeio. Para quem
chega da cidade grande, acostumar em Agreste não é fácil.
Mesmo quem nunca arredou
os pés daqui se queixa da
pasmaceira, veja Elisa. Se eu imaginasse o que ia acontecer, não teria trazido
Nora. É uma tolona, sentimental, acaba perdendo a cabeça, afeiçoando-se a
Ascânio, vai dar problema.
- Eu sei. – Dona Carmosina suspira, dramática que nem autor de folhetim
em cena de culminante, de novela de rádio em fim de capítulo. – Ela é
milionária e ele é pobre! Mas…
- Não é por isso, Carmô, todos os dias a gente assiste a casamento de
rico com pobre. Você pensa que eu ia me preocupar se o problema fosse esse? Já
estaria cuidando do enxoval.
- Qual é então?
Tieta detém-se na beira do caminho para dar maior ênfase à confidência,
persiste o clima de melodrama, o suspense. Dona Carmosina espera, tensa,
incapaz de esconder a impaciência:
- O quê?
- Você sabe que ela foi noiva de um vigarista que só queria o dinheiro
dela. Botou máscara de engenheiro, fachada não lhe faltava mas era tudo.
Ela,
cega de paixão, querendo financiar uns projectos do tipo, só não largou o
dinheiro porque eu manjei a coisa e manerei.
Foi quando a polícia apareceu
atrás dele e se ficou sabendo da ficha completa do patife. A pobre caiu de
cama, quase morreu. A mim não me surpreenderam as revelações da polícia, não me
engano com as pessoas, bato os olhos num fulano e já sei o que vale, a
qualidade do carácter e o tamanho do cacete…
Dona Carmosina, descontraindo-se, explode numa gargalhada:
- Mulher mais maluca, nem depois de morta vai tomar jeito. Inventa cada
uma: a qualidade do carácter, o tamanho do cacete… Essa é boa! – perdida em
riso, refaz-se aos poucos, volta ao amor de Nora e Ascânio.
– Disso tudo eu já
sabia, você mesma tinha me contado. E é por isso que eu digo: dois feridos que
convalescem, dois carentes – Dona Carmosina aproveita para repetir a palavra
recém-aprendida – que se completam. Se o problema da diferença de fortuna não
atrapalha, então…
- Acontece que ela foi noiva desse tipo uns bons seis meses, Carmô.
Noivado em São Paulo
não é como em Agreste. Lá,
namorados e noivos têm muita liberdade, saem sozinhos para festas, para boates,
fazem passeios que duram dias e dias… noites e noites… As moças andam com a
pílula na bolsa, junto do batom.
- Estou entendendo…
- Pois é. Esse negócio de noiva casar virgem, já era, como dizem os
cabeludos. Só vigora em Agreste.
O facto dele ser pobre não tem nenhuma importância, Nora não dá a mínima para isso. Nem ela nem eu. Mas você acha que nosso amigo Ascânio…
- uma pausa. . – É por isso que estou preocupada, Carmô.
- Agora, quem fica preocupada, sou eu. Preocupadíssima. Por que a vida
é tão complicada, Tieta?
- Sei lá! E podia ser tudo tão fácil, não é? Porca miséria!, como dizem
meus patrícios, os italianos de São Paulo.
Voltam a andar, dona Carmosina digerindo a incómoda revelação, ai, meu
Deus, o que fazer? Tieta completa antes que alcancem as margens do rio:
- Agora que comprei a casa, mandei arrumar e pintar, instalo os velhos,
deixo dinheiro com Ricardo para acabar de construir o barraco em Mangue Seco, pego
Leonora e vou embora.
_ Você não pode ir embora antes da inauguração de luz, já lhe disse. De
jeito nenhum.
- Tinha pensado em ficar mas não posso. Não é tanto por mim, se bem não
deva me retardar demais, deixei em
São Paulo tudo o que é meu na mão dos outros…
- Na mão de gente de confiança…
- Mesmo assim. Quem engorda o porco é o olho do dono. Eu ficaria para a
festa se não fosse por Nora. Preciso tirar ela daqui
enquanto é tempo. Ela não aguenta outro baque, pode até morrer…
- Não se precipite. Espere uns dias, quando você voltar de Mangue seco
eu lhe direi alguma coisa.
- Sobre? - Ascânio e Leonora…
- A vida pode ser tão fácil, a gente mesmo é que complica tudo.
Atingem a beira do rio, as canoas descansam no ancoradouro.
Um pouco
além, na Bacia de Catarina, os pés de chorão debruçam-se sobre os penedos,
aumentam a escuridão. A brisa traz um leve gemido, vem daquelas bandas.
As
amigas avançam uns passos com pés de lã. Vultos nos esconsos; sussurros, ais,
sob os chorões. A vida pode ser tão fácil, repete Tieta. Sorriem as duas
comadres, a bonita e a feia, a que conhece o gosto e a carente (para usar a
palavra da moda, tão do agrado de dona Carmosina) Tieta anuncia:
- Já escolhi o nome para a minha cabana em Mangue Seco:
- E qual é?
- Curral do Bode Inácio. Era o garanhão do rebanho do Velho, um bode
que mais parecia um jegue de tão grande.
O saco arrastava no chão. Com ele aprendi a querer e a conseguir.
Multiplicam-se os ais de amor na ribanceira. Apressadas as duas amigas
retomam o caminho da casa cheia em cuja sala de visitas o vate Barbozinha, em
encarnação anterior, à frente do povo de Paris, assalta e conquista a Bastilha, liberta milhares de patriotas
aprisionados.
Magnífico episódio, com espadas e arcabuzes, fidalgos, tribunos,
a carmanhola e sem perigo de cadeia.