Memórias Futuras
Olhar o futuro pelo espelho retrovisor da história. Qual história? Que futuro?
sábado, agosto 15, 2009
O Dr. Alberto João e o Bailinho da Madeira
O Alberto João, como familiarmente é tratado pelos seus conterrâneos madeirenses, levou 11 anos a tirar o curso de Direito e agora, ao fim de quase uma vida, percebe-se que não terá sido por falta de recursos intelectuais.
É que o Alberto João ao longo desses 11 anos, para além das sebentas de Direito, aprendeu ainda outra coisa que lhe foi muito mais importante para a sua vida:
- Como ser dono e senhor de uma ilha em pleno regime democrático saído da revolução do 25 de Abril.
Alberto João põe e dispõe na Ilha da Madeira a seu belo prazer desde Março de 1978 e a sua liderança é de tal forma incontestada que quando sair do poder, lá para 2011, no fim do novo governo que irá sair das próximas eleições que ele próprio provocou, vai deixar um autentico vazio político e tudo terá que partir novamente do zero porque o seu estilo de governar é de tal forma pessoal que se tornou intransmissível, não fez escola, ele é a própria escola.
Maiorias absolutas consecutivas em vitórias eleitorais têm-lhe permitido usar o poder de uma forma demagógica, populista, arrogante e ditatorial que longe de lhe merecer a censura e a reprovação das forças democráticas estiveram na origem de catorze (14) Condecorações entre Grâ-Cruzes, Comendas, Medalhas de Honra, Colares, Medalhas sem serem de Honra, etc… atribuídas por Portugal, Venezuela, Suécia, Conselho da Europa e por aí fora.
Mas se não é o estilo arrogante, demagógico, populista e ditatorial que está na base de tanta homenagem o que será então?
- É o Poder, o Poder que se alcança, mantém, ostenta, usa e abusa há trinta anos e se reverencia, homenageia e aplaude apenas porque é o Poder e ainda por cima, dito democrático o que permite a Alberto João pavonear-se de peito inchado e olhar desafiador e provocante.
Os outros, fingem não perceber que grande parte dos votos que lhe garantem as maiorias absolutas passaram a ser, a partir de certo momento, dos funcionários, suas famílias e de todo o tipo de gente dependente dos seus Governos e dos interesses progressivamente criados à sua volta o que, numa pequena ilha de 250.000 pessoas, profundamente religiosas, facilmente chega e sobra para maiorias absolutas.
Mas é evidente que também há mérito de Alberto João. Ele é um artista nato na verdadeira acepção da palavra e a liderança é nele uma atitude que nasceu consigo.
O seu estilo entre o trágico e o cómico é arrebatador, empolgante e os seus comícios que deixam embasbacados os seus conterrâneos, espectadores pouco exigentes, são reveladores de uma força e autenticidade que só é possível aos predestinados.
O fenómeno Alberto João percebe-se melhor quando se vai à Madeira e se tem oportunidade de a visitar circulando em belíssimas auto-estradas que perfuram as montanhas e constituem hoje um cartão de visita da ilha, rivalizando com as belíssimas paisagens próprias de uma terra que emerge das profundezas do mar, trepa direita ao céu e lhe conquista as nuvens que, vencidas, lhe servem de tapete no Pico Ruivo, a mais de 1800 metros de altitude.
Os madeirenses são ilhéus, cativos numa pequena ilha que por mais linda não deixa de ser uma prisão e eles sentem-se, por isso, descriminados, injustiçados, condenados a subir e a descer montanha acima, montanha abaixo ou andar à volta até chegar ao ponto de partida…resta o mar, o céu e a emigração, destino inevitável a quem nasce e vive confinado a um espaço que mais cedo ou tarde se esgota e não chega para todos.
Alberto João “abanou-os” com discursos inflamados, vitimou-os, tornou-os credores aos olhos de Portugal e da Europa de todos os apoios possíveis no âmbito dos Quadros Comunitários e do Governo do país numa política que os seus conterrâneos agradeceram:
-Em vez de emigrarem à procura do dinheiro que a Ilha não lhes podia dar era o próprio dinheiro que ia ter com eles…tão simples como isto!
E o dinheiro foi tanto que deu para muita coisa como aquele aeroporto, obra extraordinária e caríssima de engenharia, agora porta de entrada segura e moderna para os turistas e as faraónicas auto-estradas.
Outro, que não o Alberto João, teria conseguido tanto dinheiro?
Outro, que não o Alberto João, com todo aquele dinheiro, teria feito mais e melhor?
As perguntas aí estão e os madeirenses vão-lhe respondendo com votações esmagadoras que ridicularizam as oposições.
Conseguir votos lá dentro e dinheiro cá fora tornou-se já tarefa de rotina para este político a quem Jaime Gama chamou de "Bokassa" madeirense para anos tarde, em visita institucional, o comular de elogios...
É que o Alberto João ao longo desses 11 anos, para além das sebentas de Direito, aprendeu ainda outra coisa que lhe foi muito mais importante para a sua vida:
- Como ser dono e senhor de uma ilha em pleno regime democrático saído da revolução do 25 de Abril.
Alberto João põe e dispõe na Ilha da Madeira a seu belo prazer desde Março de 1978 e a sua liderança é de tal forma incontestada que quando sair do poder, lá para 2011, no fim do novo governo que irá sair das próximas eleições que ele próprio provocou, vai deixar um autentico vazio político e tudo terá que partir novamente do zero porque o seu estilo de governar é de tal forma pessoal que se tornou intransmissível, não fez escola, ele é a própria escola.
Maiorias absolutas consecutivas em vitórias eleitorais têm-lhe permitido usar o poder de uma forma demagógica, populista, arrogante e ditatorial que longe de lhe merecer a censura e a reprovação das forças democráticas estiveram na origem de catorze (14) Condecorações entre Grâ-Cruzes, Comendas, Medalhas de Honra, Colares, Medalhas sem serem de Honra, etc… atribuídas por Portugal, Venezuela, Suécia, Conselho da Europa e por aí fora.
Mas se não é o estilo arrogante, demagógico, populista e ditatorial que está na base de tanta homenagem o que será então?
- É o Poder, o Poder que se alcança, mantém, ostenta, usa e abusa há trinta anos e se reverencia, homenageia e aplaude apenas porque é o Poder e ainda por cima, dito democrático o que permite a Alberto João pavonear-se de peito inchado e olhar desafiador e provocante.
Os outros, fingem não perceber que grande parte dos votos que lhe garantem as maiorias absolutas passaram a ser, a partir de certo momento, dos funcionários, suas famílias e de todo o tipo de gente dependente dos seus Governos e dos interesses progressivamente criados à sua volta o que, numa pequena ilha de 250.000 pessoas, profundamente religiosas, facilmente chega e sobra para maiorias absolutas.
Mas é evidente que também há mérito de Alberto João. Ele é um artista nato na verdadeira acepção da palavra e a liderança é nele uma atitude que nasceu consigo.
O seu estilo entre o trágico e o cómico é arrebatador, empolgante e os seus comícios que deixam embasbacados os seus conterrâneos, espectadores pouco exigentes, são reveladores de uma força e autenticidade que só é possível aos predestinados.
O fenómeno Alberto João percebe-se melhor quando se vai à Madeira e se tem oportunidade de a visitar circulando em belíssimas auto-estradas que perfuram as montanhas e constituem hoje um cartão de visita da ilha, rivalizando com as belíssimas paisagens próprias de uma terra que emerge das profundezas do mar, trepa direita ao céu e lhe conquista as nuvens que, vencidas, lhe servem de tapete no Pico Ruivo, a mais de 1800 metros de altitude.
Os madeirenses são ilhéus, cativos numa pequena ilha que por mais linda não deixa de ser uma prisão e eles sentem-se, por isso, descriminados, injustiçados, condenados a subir e a descer montanha acima, montanha abaixo ou andar à volta até chegar ao ponto de partida…resta o mar, o céu e a emigração, destino inevitável a quem nasce e vive confinado a um espaço que mais cedo ou tarde se esgota e não chega para todos.
Alberto João “abanou-os” com discursos inflamados, vitimou-os, tornou-os credores aos olhos de Portugal e da Europa de todos os apoios possíveis no âmbito dos Quadros Comunitários e do Governo do país numa política que os seus conterrâneos agradeceram:
-Em vez de emigrarem à procura do dinheiro que a Ilha não lhes podia dar era o próprio dinheiro que ia ter com eles…tão simples como isto!
E o dinheiro foi tanto que deu para muita coisa como aquele aeroporto, obra extraordinária e caríssima de engenharia, agora porta de entrada segura e moderna para os turistas e as faraónicas auto-estradas.
Outro, que não o Alberto João, teria conseguido tanto dinheiro?
Outro, que não o Alberto João, com todo aquele dinheiro, teria feito mais e melhor?
As perguntas aí estão e os madeirenses vão-lhe respondendo com votações esmagadoras que ridicularizam as oposições.
Conseguir votos lá dentro e dinheiro cá fora tornou-se já tarefa de rotina para este político a quem Jaime Gama chamou de "Bokassa" madeirense para anos tarde, em visita institucional, o comular de elogios...
sexta-feira, agosto 14, 2009
TIETA DO AGRESTE
EPISÓDIO Nº 206
EPISÓDIO Nº 206
ONDE SE ERGUE UM ÚLTIMO BRINDE À AMIZADE E À GRATIDÃO
Voz de galhofa, Aminthas pergunta, ao ver passar, apressado, suando em bicas, pasta negra sob o sovaco, a potente figura do doutor Baltazar Moreira, bacharel em Direito com escritório em Feira de Santana.
- Será que escolheram Agreste para algum congresso de juristas? Onde a gente chega tropeça num advogado.
Osnar descansa o taco, constata a diferença de pontos a separá-lo de Fidélio, já não vê possibilidade de recuperação e vitória, assume o papel de hierofante em geral exercido pelo poeta Barbozinha:
- Quando os urubus aparecem, é sinal de carniça. Isso aqui vai feder.
Adiadas as partidas decisivas do campeonato, devido à viagem de Ascânio à Capital, os candidatos ao Taco de Ouro contentaram-se com desafios amistosos, à base de apostas de garrafas de cerveja. De pé para melhor observar o jogo de Fidélio, seu próximo adversário nas semifinais, Seixas intervém:
- Ainda bem que vai feder. Vamos sentir o cheiro do petróleo, do enxofre, dos gases das indústrias químicas. Fedor de progresso, Osnar. Não é mesmo Fidélio?
No espanto da pergunta inesperada, Fidélio reage:
- Que é que eu tenho a ver com isso?
- Você não é um dos Antunes, um dos herdeiros do coqueiral? Todo o mundo ouviu o doutor Franklin dizer, no cartório. Ou você pretende esconder sua riqueza da gente? Está aí, está milionário, sócio da Brastânio, pronto para poluir Mangue Seco. Garanto que um desses advogados veio a seu pedido, não é? Qual deles, solte a língua, conte a seus amigos.
Fidélio suspende a tacada, fala sério, sem achar graça na provocação do parceiro:
- Não preciso de advogado – Volta à tacada e à habitual reserva.
- Se você quiser, eu posso me ocupar do seu caso – Seixas persiste na pilhéria sem ligar para a tromba do companheiro:
- Para começar, lhe aconselho a juntar seus trapinhos com os de dona Carlota que é outra candidata ao coqueiral, casamento com comunhão de bens, Antunes com Antunes. Além de tudo, você pega um cabaço enrustido, de antiquário, digno de museu.
Fidélio liquida a partida, uma última carambola, tenta acabar também com a zombaria que evidentemente não lhe agrada:
- Não preciso de advogado nem de conselheiro. Meta-se com sua vida… Sua intenção eu sei qual é: me irritar pôr nervoso para eu perder quando jogar com você. Isso é uma safadeza.
Abespinha-se Seixas:
- Só estava fazendo uma brincadeira, sem nenhuma intenção. Para ganhar de você não preciso disso, já ganhei muitas vezes. Não admito que me chame de desonesto.
Osnar tendo guardado o taco, corta a discussão:
- Que besteira é essa? Vamos acabar com isso. Deixem que a carniça apodreça longe da gente. Eu disse que vai feder e ajunto: vai feder e ferver. Mas quem quiser discutir sobre essas porcarias, vá discutir longe daqui. Nossa chacrinha não tem nada a ver com isso. Há quantos anos somos amigos? – Muda de assunto: - Se vocês garantem não falar a Astério, conto uma surpresa que estou planejando fazer.
Voz de galhofa, Aminthas pergunta, ao ver passar, apressado, suando em bicas, pasta negra sob o sovaco, a potente figura do doutor Baltazar Moreira, bacharel em Direito com escritório em Feira de Santana.
- Será que escolheram Agreste para algum congresso de juristas? Onde a gente chega tropeça num advogado.
Osnar descansa o taco, constata a diferença de pontos a separá-lo de Fidélio, já não vê possibilidade de recuperação e vitória, assume o papel de hierofante em geral exercido pelo poeta Barbozinha:
- Quando os urubus aparecem, é sinal de carniça. Isso aqui vai feder.
Adiadas as partidas decisivas do campeonato, devido à viagem de Ascânio à Capital, os candidatos ao Taco de Ouro contentaram-se com desafios amistosos, à base de apostas de garrafas de cerveja. De pé para melhor observar o jogo de Fidélio, seu próximo adversário nas semifinais, Seixas intervém:
- Ainda bem que vai feder. Vamos sentir o cheiro do petróleo, do enxofre, dos gases das indústrias químicas. Fedor de progresso, Osnar. Não é mesmo Fidélio?
No espanto da pergunta inesperada, Fidélio reage:
- Que é que eu tenho a ver com isso?
- Você não é um dos Antunes, um dos herdeiros do coqueiral? Todo o mundo ouviu o doutor Franklin dizer, no cartório. Ou você pretende esconder sua riqueza da gente? Está aí, está milionário, sócio da Brastânio, pronto para poluir Mangue Seco. Garanto que um desses advogados veio a seu pedido, não é? Qual deles, solte a língua, conte a seus amigos.
Fidélio suspende a tacada, fala sério, sem achar graça na provocação do parceiro:
- Não preciso de advogado – Volta à tacada e à habitual reserva.
- Se você quiser, eu posso me ocupar do seu caso – Seixas persiste na pilhéria sem ligar para a tromba do companheiro:
- Para começar, lhe aconselho a juntar seus trapinhos com os de dona Carlota que é outra candidata ao coqueiral, casamento com comunhão de bens, Antunes com Antunes. Além de tudo, você pega um cabaço enrustido, de antiquário, digno de museu.
Fidélio liquida a partida, uma última carambola, tenta acabar também com a zombaria que evidentemente não lhe agrada:
- Não preciso de advogado nem de conselheiro. Meta-se com sua vida… Sua intenção eu sei qual é: me irritar pôr nervoso para eu perder quando jogar com você. Isso é uma safadeza.
Abespinha-se Seixas:
- Só estava fazendo uma brincadeira, sem nenhuma intenção. Para ganhar de você não preciso disso, já ganhei muitas vezes. Não admito que me chame de desonesto.
Osnar tendo guardado o taco, corta a discussão:
- Que besteira é essa? Vamos acabar com isso. Deixem que a carniça apodreça longe da gente. Eu disse que vai feder e ajunto: vai feder e ferver. Mas quem quiser discutir sobre essas porcarias, vá discutir longe daqui. Nossa chacrinha não tem nada a ver com isso. Há quantos anos somos amigos? – Muda de assunto: - Se vocês garantem não falar a Astério, conto uma surpresa que estou planejando fazer.
quinta-feira, agosto 13, 2009
CANÇÕES BRASILEIRAS
ELIS REGINA - ATRÁS DA PORTA
Composição de Chico Buarque e Francis Hime. Música do LP "Elis Regina" 1972
A HOMOSSEXUALIDADE QUE ME FOI REVELADA
Meu Aspirante, quando cheguei à idade de ser menino só me sentia atraído por outros meninos, as meninas nunca me disseram nada, eram-me completamente indiferentes.
Recordo esta conversa como a abordagem mais importante sobre a homossexualidade que tive em toda a minha vida.
O cenário era a parada do R.I. 16 em Évora, ano de 1961, o contexto, uma recruta para preparar os soldados para a guerra de Angola recentemente iniciada: “…para Angola, Depressa e em Força! … dissera Salazar.
Quem se abria assim comigo era um soldado do meu pelotão de recrutas que nesse dia, por estar magoado num pé, não participava nos exercícios de “ordem unida” que estava a ser ministrada pelos cabos milicianos.
Distraído, como sempre, tinha sido o último a saber e apenas porque um dos cabos resolveu prestar-me a informação, com algum pudor e respeito próprio da época, sobre aquele soldado que estava à minha responsabilidade.
Os tempos eram outros e estas situações constituíam no fim da década de 50, princípios de sessenta, na sociedade fechada, cínica e confessional de Oliveira Salazar, autênticos “bichos-de sete-cabeças”, tantos os tabus e ignorância sobre elas.
Sentado ao meu lado, continuava a desabafar com toda a naturalidade e sinceridade. As palavras, simplesmente, saíam-lhe, percebendo-se através delas uma identidade feminina, sem tom de queixas, aversão ou ressentimento para quem quer que fosse. Os pais tinham-no expulso de casa logo em muito jovem e de toda a família apenas uma irmã, mais sensível, ainda o visitava, provavelmente às escondidas do resto dos parentes.
Trabalhava num restaurante como ajudante de cozinheiro e as conversavas que gostava de ter eram sobre namorados e vestidos, referindo-se a si sempre no feminino:
- “O meu Aspirante já viu o meu tormento a dormir numa camarata de homens e a tomar banho num balneário com eles todos nus”?
As perguntas secaram-se todas na minha garganta, apenas soube o que ele me quis dizer, desabafos naturais da sua vida, estranha e bisonha para mim, inexperiente nos meus 22 anos, desconhecedor das realidades de um mundo que era bem maior, complexo e intrigante do que o meu universo heterossexual.
Ainda debaixo do efeito surpresa fui ter com o Capitão, Comandante da Companhia, e pedi-lhe que diligenciasse para que aquele soldado fosse livre da tropa ao abrigo dos Regulamentos mas a resposta que obtive foi seca, brutal, desumana:
- Qual quê, faz jeito aos soldados lá em Angola!
Fiquei a perceber que ele estava destinado a cumprir dois objectivos para com a pátria: “carne para canhão” e “carne para a carne”.
- “Meu Aspirante, eu nasci assim, não tenho culpa”.
Claro que não tinha culpa mas eu nem tive coragem ou expediente para o reconfortar com essas palavras tão simples de dizer:
- “Claro que não, não tiveste a culpa! …”
E no entanto, aquele jovem “sem culpa”, que se abrira para mim em palavras simples e sinceras e me destapou a verdade oculta por vergonha e pudor dos homens “macho”, a maioria dos quais não teria tido a sua força e coragem para sobreviver a tão profundas provações, estava a ser, por parte da família e da sociedade, vítima de um assassinato em vida, de uma destruição lenta que corrói a alma, a personalidade, a própria identidade, no mais injusto dos castigos apenas… “por ser assim”.
Não me interessa partir deste caso para a problemática dos direitos dos homossexuais e do longo e saudável percurso de quase cinquenta anos percorridos desde esse dia, dessa conversa, até hoje.
Na nossa sociedade de agora é um caso arrumado, discussão esgotada, ficando apenas e ainda por resolver a questão do casamento entre homossexuais cuja importância, sem qualquer desmerecimento, são “trocos” relativamente aos problemas que eles viviam entre nós quando este quase monólogo teve lugar na parada do Quartel do Regimento de Infantaria 16 em Évora.
Apenas relembrar esse jovem e desejar que ele tenha sobrevivido à guerra e à vida.
Se o conseguiu, a uma e à outra, então é um herói.
Recordo esta conversa como a abordagem mais importante sobre a homossexualidade que tive em toda a minha vida.
O cenário era a parada do R.I. 16 em Évora, ano de 1961, o contexto, uma recruta para preparar os soldados para a guerra de Angola recentemente iniciada: “…para Angola, Depressa e em Força! … dissera Salazar.
Quem se abria assim comigo era um soldado do meu pelotão de recrutas que nesse dia, por estar magoado num pé, não participava nos exercícios de “ordem unida” que estava a ser ministrada pelos cabos milicianos.
Distraído, como sempre, tinha sido o último a saber e apenas porque um dos cabos resolveu prestar-me a informação, com algum pudor e respeito próprio da época, sobre aquele soldado que estava à minha responsabilidade.
Os tempos eram outros e estas situações constituíam no fim da década de 50, princípios de sessenta, na sociedade fechada, cínica e confessional de Oliveira Salazar, autênticos “bichos-de sete-cabeças”, tantos os tabus e ignorância sobre elas.
Sentado ao meu lado, continuava a desabafar com toda a naturalidade e sinceridade. As palavras, simplesmente, saíam-lhe, percebendo-se através delas uma identidade feminina, sem tom de queixas, aversão ou ressentimento para quem quer que fosse. Os pais tinham-no expulso de casa logo em muito jovem e de toda a família apenas uma irmã, mais sensível, ainda o visitava, provavelmente às escondidas do resto dos parentes.
Trabalhava num restaurante como ajudante de cozinheiro e as conversavas que gostava de ter eram sobre namorados e vestidos, referindo-se a si sempre no feminino:
- “O meu Aspirante já viu o meu tormento a dormir numa camarata de homens e a tomar banho num balneário com eles todos nus”?
As perguntas secaram-se todas na minha garganta, apenas soube o que ele me quis dizer, desabafos naturais da sua vida, estranha e bisonha para mim, inexperiente nos meus 22 anos, desconhecedor das realidades de um mundo que era bem maior, complexo e intrigante do que o meu universo heterossexual.
Ainda debaixo do efeito surpresa fui ter com o Capitão, Comandante da Companhia, e pedi-lhe que diligenciasse para que aquele soldado fosse livre da tropa ao abrigo dos Regulamentos mas a resposta que obtive foi seca, brutal, desumana:
- Qual quê, faz jeito aos soldados lá em Angola!
Fiquei a perceber que ele estava destinado a cumprir dois objectivos para com a pátria: “carne para canhão” e “carne para a carne”.
- “Meu Aspirante, eu nasci assim, não tenho culpa”.
Claro que não tinha culpa mas eu nem tive coragem ou expediente para o reconfortar com essas palavras tão simples de dizer:
- “Claro que não, não tiveste a culpa! …”
E no entanto, aquele jovem “sem culpa”, que se abrira para mim em palavras simples e sinceras e me destapou a verdade oculta por vergonha e pudor dos homens “macho”, a maioria dos quais não teria tido a sua força e coragem para sobreviver a tão profundas provações, estava a ser, por parte da família e da sociedade, vítima de um assassinato em vida, de uma destruição lenta que corrói a alma, a personalidade, a própria identidade, no mais injusto dos castigos apenas… “por ser assim”.
Não me interessa partir deste caso para a problemática dos direitos dos homossexuais e do longo e saudável percurso de quase cinquenta anos percorridos desde esse dia, dessa conversa, até hoje.
Na nossa sociedade de agora é um caso arrumado, discussão esgotada, ficando apenas e ainda por resolver a questão do casamento entre homossexuais cuja importância, sem qualquer desmerecimento, são “trocos” relativamente aos problemas que eles viviam entre nós quando este quase monólogo teve lugar na parada do Quartel do Regimento de Infantaria 16 em Évora.
Apenas relembrar esse jovem e desejar que ele tenha sobrevivido à guerra e à vida.
Se o conseguiu, a uma e à outra, então é um herói.
TIETA DO AGRESTE
EPISÓDIO Nº 205
EPISÓDIO Nº 205
Por mais de uma vez Astério lhe perguntou o que tem, qual o motivo dessa tristeza, Elisa respondeu que não tem nada, tristeza nenhuma, não se preocupe com ela. Não rira nem mesmo quando ele lhe comunicou estar Osnar disposto a propor à secretária-executiva da Brastânio, aquela de faixa prateada na cabeleira ruiva, se lembra?, o mesmo que propôs à polaca, imagine o despropósito!
Inacreditável: Elisa ficara arrasada com a morte do Velho. Enquanto ele viveu, em nenhum momento Astério percebera qualquer demonstração de amor profundo, entre filha e pai. O medo, isso sim, Elisa não conseguia esconder. Confusamente Astério se dá conta de que ela se casara sobretudo para libertar-se da tirania paterna, da prisão familiar, do cajado. Mesmo depois de casar as filhas, o Velho se impunha, a elas e aos genros. Jamais Astério o ouvira pronunciar uma palavra de carinho, esboçar um gesto de ternura, nem sequer para confortar Elisa quando do passamento de Toninho. No velório do Major, Perpétua por uma vez desfeita em lágrimas, inconsolável, Zé Esteves escarnecera:
- Nunca mais arranja outro, perca a esperança. Idiota dessa espécie aparece um em cada século e olhe lá.
Vivia a acusar Astério devido ao assunto do cheque usado para descontar a duplicata. Transcorriam os anos e o carrasco continuava a lançar na cara da filha, quando não do genro, aquela falcatrua, ameaçando de cadeia se a repetisse.
Meu Deus, como é difícil entender as pessoas! Pensou que Elisa fosse respirar, finalmente liberta do medo, medo do pai e da miséria. Feliz com o presente da irmã, solução para os problemas de dinheiro a agoniá-los, além da nova residência a lhes dar status de ricos, lugar proeminente na sociedade de Agreste. Ao contrário, Elisa parece inconsolável como se, ao perder o pai, houvesse perdido qualquer esperança de felicidade.
Astério não é exactamente um psicólogo apesar das demonstrações intelectuais fornecidas nas carambolas ao bilhar, cálculos exactos milimetrados, perfeitos; certas tacadas suas são obras de arte. Mas as complicações no comportamento das pessoas, calundus, choradeiras, fossas, o perturbam e apoquentam. Talvez dona Carmosina, tão inteligente e lida, possa entender e explicar. Tieta também, nada lhe escapa.
Quando conversaram, ele e Tieta, a propósito do desejo de mudança para São Paulo, expresso por Eliza, a cunhada o aconselhara a botar rédea curta na esposa, a seguir o exemplo do velho Zé Esteves e até falara no bordão.
Tão bondosa, coração de ouro, todavia, em certos instantes, Tieta se parecia com o Velho. Erguer a voz contra Elisa? Trazê-la de rédea curta? Mas por que se ela é tão direita e delicada, dona de casa cuidadosa, sem falar na beleza e elegância?
Recordando tais virtudes da esposa, comove-se Astério. Que mal existe em choro e tristeza da filha, lastimando perda de pai? Com o tempo passará. Mais dia, menos dia voltará a ser a menina Elisa, ostentando o ar distante e um pouco esnobe, um tanto melancólico que lhe vai tão bem. A mulher mais bela e elegante da cidade; outrora pobre, hoje proprietária de terras, quem tem terras é dono de um pedaço do mundo, frase do Velho excomungado. Dona de uma senhora bunda. Falaram a Astério numa tal de Maria Imaculada cujo traseiro sendo cuidado, um dia… Tolice. Igual ao de Elisa, nenhum, por mais se esforce a natureza.
Inacreditável: Elisa ficara arrasada com a morte do Velho. Enquanto ele viveu, em nenhum momento Astério percebera qualquer demonstração de amor profundo, entre filha e pai. O medo, isso sim, Elisa não conseguia esconder. Confusamente Astério se dá conta de que ela se casara sobretudo para libertar-se da tirania paterna, da prisão familiar, do cajado. Mesmo depois de casar as filhas, o Velho se impunha, a elas e aos genros. Jamais Astério o ouvira pronunciar uma palavra de carinho, esboçar um gesto de ternura, nem sequer para confortar Elisa quando do passamento de Toninho. No velório do Major, Perpétua por uma vez desfeita em lágrimas, inconsolável, Zé Esteves escarnecera:
- Nunca mais arranja outro, perca a esperança. Idiota dessa espécie aparece um em cada século e olhe lá.
Vivia a acusar Astério devido ao assunto do cheque usado para descontar a duplicata. Transcorriam os anos e o carrasco continuava a lançar na cara da filha, quando não do genro, aquela falcatrua, ameaçando de cadeia se a repetisse.
Meu Deus, como é difícil entender as pessoas! Pensou que Elisa fosse respirar, finalmente liberta do medo, medo do pai e da miséria. Feliz com o presente da irmã, solução para os problemas de dinheiro a agoniá-los, além da nova residência a lhes dar status de ricos, lugar proeminente na sociedade de Agreste. Ao contrário, Elisa parece inconsolável como se, ao perder o pai, houvesse perdido qualquer esperança de felicidade.
Astério não é exactamente um psicólogo apesar das demonstrações intelectuais fornecidas nas carambolas ao bilhar, cálculos exactos milimetrados, perfeitos; certas tacadas suas são obras de arte. Mas as complicações no comportamento das pessoas, calundus, choradeiras, fossas, o perturbam e apoquentam. Talvez dona Carmosina, tão inteligente e lida, possa entender e explicar. Tieta também, nada lhe escapa.
Quando conversaram, ele e Tieta, a propósito do desejo de mudança para São Paulo, expresso por Eliza, a cunhada o aconselhara a botar rédea curta na esposa, a seguir o exemplo do velho Zé Esteves e até falara no bordão.
Tão bondosa, coração de ouro, todavia, em certos instantes, Tieta se parecia com o Velho. Erguer a voz contra Elisa? Trazê-la de rédea curta? Mas por que se ela é tão direita e delicada, dona de casa cuidadosa, sem falar na beleza e elegância?
Recordando tais virtudes da esposa, comove-se Astério. Que mal existe em choro e tristeza da filha, lastimando perda de pai? Com o tempo passará. Mais dia, menos dia voltará a ser a menina Elisa, ostentando o ar distante e um pouco esnobe, um tanto melancólico que lhe vai tão bem. A mulher mais bela e elegante da cidade; outrora pobre, hoje proprietária de terras, quem tem terras é dono de um pedaço do mundo, frase do Velho excomungado. Dona de uma senhora bunda. Falaram a Astério numa tal de Maria Imaculada cujo traseiro sendo cuidado, um dia… Tolice. Igual ao de Elisa, nenhum, por mais se esforce a natureza.
quarta-feira, agosto 12, 2009
CANÇÕES BRASILEIRAS
ALCIONE e ALEXANDRE PIRES - ESTRANHA LOUCURA (1987)
Música e Letra - Michael SULLIVAN e PAULO PASSADAS
TIETA DO AGRESTE
Episódio Nº 204
Episódio Nº 204
DAS PREOCUPAÇÕES DO NOVO-RICO
Cresce o movimento, modifica-se a cadência. No caso concreto de Astério, promovido de modesto comerciante a novo-rico, de capitão a major, a responsabilidade cabe à cunhada rica de São Paulo e, se intervenção houve da Brastânio, foi indirecta e casual. De qualquer maneira, também para ele o ritmo de vida acelerou-se.
Antes, passava manhã e tarde na loja, despachando reduzida freguesia, vendendo uns poucos metros de fazenda, uma camisa de homem, uma saia de mulher, uma dúzia de botões, agulhas e carretéis de linha, quinquilharias, bagatelas. Sobrando-lhe tempo para transar com os amigos, sobretudo o indefectível Osnar, ouvindo fuxicos, comentando acontecidos, saboreando histórias da trepidante vida nocturna de Agreste (como diz o sarcástico Aminthas) pondo-se a par das qualidades das últimas raparigas recrutadas por Zuleika Cinderela. Dias antes, lhe haviam falado de uma novata, moderninha, quinze anos incompletos, dona de um traseiro que, a continuar se desenvolvendo, será, em breve, o mais vistoso de Agreste; viera do arraial de Saco e se chama Maria Imaculada.
No começo da tarde, hora morta, deixava o moleque Sabino tomando conta do balcão, ia dedicar-se a longos treinos nos dois brunswicks do bar. Agora tem de se desdobrar, dividindo-se entre a loja e as terras e as obras da casa de Tieta.
Ida matinal a Vista Alegre, para fiscalizar rebanho e plantação, colocados sob os cuidados imediatos de Menininho, filho de Lauro Branco, arranjo de Osnar.
- Roubado, major, você vai ser de qualquer maneira, bote quem botar, então, é melhor que seja pelo compadre Lauro que a gente sabe que rouba sem exagero e, tirando isso, é homem sério e trabalhador. Menininho é bom de enxada, sabe cuidar das cabras e tem o compadre ao pé para aperrear. Desde que você controle, como eu faço, a coisa anda.
Corre da loja para as obras em vias de acabamento, na casa comprada a dona Zulmira. O velho Zé Esteves plantava-se ali o dia inteiro, azucrinando mestre Liberato, dando esporro nos operários, ameaçando Deus e o mundo.
Astério precisa impedir que, com a falta do Velho, o trabalho se arraste justamente quando chega ao fim. Prontos os sanitários, os melhores de Agreste, com chuveiros e banheiras, latrinas de luxo, bacanérrimas, começada a pintura, pouco falta para a casa estar habitável. Aliás, o plano de Astério, é efectuar a mudança quanto antes, mesmo não estando completa a reforma. Duas vantagens: deixará de pagar aluguel e com eles dentro da casa as obras andarão mais depressa. Já deu ordens a Elisa para arrumar os teréns.
A morte do velho Zé Esteves viera abrir-lhe o caminho da prosperidade. Mandioca e cabras, terras. Quem possui terras é dono de um pedaço do mundo, repetia o sogro, lastimando o perdido património. Casa porreta, senão própria pelo menos gratuita, uma das melhores residências da cidade. Digna moldura para a beleza e elegância de Elisa.
Elisa o preocupa, anda de cabeça baixa, lacrimosa, pelos cantos. Nem parece haver recebido tantos e tamanhos benefícios, provas de amor fraterno poucas vezes vistas em Agreste. Nunca vistas. Tieta é mão aberta, mais que generosa, mais que generosa, perdulária. Não obstante, Elisa se comporta como se houvesse sido ofendida ou maltratada. Astério não lhe vira mais um único sorriso nos lábios desde aquela tarde, no dia seguinte ao enterro do Velho, quando Tieta anunciou a compra da Vista Alegre em nome do casal.
Cresce o movimento, modifica-se a cadência. No caso concreto de Astério, promovido de modesto comerciante a novo-rico, de capitão a major, a responsabilidade cabe à cunhada rica de São Paulo e, se intervenção houve da Brastânio, foi indirecta e casual. De qualquer maneira, também para ele o ritmo de vida acelerou-se.
Antes, passava manhã e tarde na loja, despachando reduzida freguesia, vendendo uns poucos metros de fazenda, uma camisa de homem, uma saia de mulher, uma dúzia de botões, agulhas e carretéis de linha, quinquilharias, bagatelas. Sobrando-lhe tempo para transar com os amigos, sobretudo o indefectível Osnar, ouvindo fuxicos, comentando acontecidos, saboreando histórias da trepidante vida nocturna de Agreste (como diz o sarcástico Aminthas) pondo-se a par das qualidades das últimas raparigas recrutadas por Zuleika Cinderela. Dias antes, lhe haviam falado de uma novata, moderninha, quinze anos incompletos, dona de um traseiro que, a continuar se desenvolvendo, será, em breve, o mais vistoso de Agreste; viera do arraial de Saco e se chama Maria Imaculada.
No começo da tarde, hora morta, deixava o moleque Sabino tomando conta do balcão, ia dedicar-se a longos treinos nos dois brunswicks do bar. Agora tem de se desdobrar, dividindo-se entre a loja e as terras e as obras da casa de Tieta.
Ida matinal a Vista Alegre, para fiscalizar rebanho e plantação, colocados sob os cuidados imediatos de Menininho, filho de Lauro Branco, arranjo de Osnar.
- Roubado, major, você vai ser de qualquer maneira, bote quem botar, então, é melhor que seja pelo compadre Lauro que a gente sabe que rouba sem exagero e, tirando isso, é homem sério e trabalhador. Menininho é bom de enxada, sabe cuidar das cabras e tem o compadre ao pé para aperrear. Desde que você controle, como eu faço, a coisa anda.
Corre da loja para as obras em vias de acabamento, na casa comprada a dona Zulmira. O velho Zé Esteves plantava-se ali o dia inteiro, azucrinando mestre Liberato, dando esporro nos operários, ameaçando Deus e o mundo.
Astério precisa impedir que, com a falta do Velho, o trabalho se arraste justamente quando chega ao fim. Prontos os sanitários, os melhores de Agreste, com chuveiros e banheiras, latrinas de luxo, bacanérrimas, começada a pintura, pouco falta para a casa estar habitável. Aliás, o plano de Astério, é efectuar a mudança quanto antes, mesmo não estando completa a reforma. Duas vantagens: deixará de pagar aluguel e com eles dentro da casa as obras andarão mais depressa. Já deu ordens a Elisa para arrumar os teréns.
A morte do velho Zé Esteves viera abrir-lhe o caminho da prosperidade. Mandioca e cabras, terras. Quem possui terras é dono de um pedaço do mundo, repetia o sogro, lastimando o perdido património. Casa porreta, senão própria pelo menos gratuita, uma das melhores residências da cidade. Digna moldura para a beleza e elegância de Elisa.
Elisa o preocupa, anda de cabeça baixa, lacrimosa, pelos cantos. Nem parece haver recebido tantos e tamanhos benefícios, provas de amor fraterno poucas vezes vistas em Agreste. Nunca vistas. Tieta é mão aberta, mais que generosa, mais que generosa, perdulária. Não obstante, Elisa se comporta como se houvesse sido ofendida ou maltratada. Astério não lhe vira mais um único sorriso nos lábios desde aquela tarde, no dia seguinte ao enterro do Velho, quando Tieta anunciou a compra da Vista Alegre em nome do casal.
terça-feira, agosto 11, 2009
CANÇÕES BRASILEIRAS
BETH CARVALHO - COISNHA tÃO BONITINHA DO PAI - 1979
Composição de Jorge Aragão, Almiro Gineto e Luís Carlos
Canção escolhida pela funcionária brasileira da NASA para "acordar" um Robô em Marte
A Mãe de Todas as Burcas
(Richard Dawkins)
Um dos espectáculos mais tristes que se pode ver nas ruas, hoje em dia, é a imagem de uma mulher coberta da cabeça aos pés por um trajo preto, sem graça, perscrutando o mundo através de uma minúscula abertura.
A burca não é apenas um instrumento de opressão das mulheres e de repressão enclausurante da sua liberdade e beleza; não é apenas símbolo da gritante crueldade masculina e de uma submissão feminina tragicamente imposta pela intimidação.
Quero aqui usar a fenda do estreito véu como símbolo de uma outra coisa. Os nossos olhos vêem o mundo, também, através de uma estreita fenda no espectro electromagnético.
A luz visível não é mais do que um raio brilhante na vastidão negra do espectro, que vai desde as ondas de rádio, na sua extremidade mais distante, até aos raios gama, na parte mais curta.
Não é fácil conceber quão estreita é essa fenda e tentar transmiti-lo constitui um verdadeiro desafio.
Imagine-se uma gigantesca burca preta com uma fenda para os olhos da largura aproximadamente igual ao seu tamanho normal, ou seja, de 2,5 centímetros. Se a extensão do tecido preto acima da fenda representar a parte do espectro invisível correspondente às ondas mais curtas e a extensão do tecido preto abaixo da fenda representar o segmento das ondas longas de que comprimento teria de ser a burca para comportar uma fenda de 2,5 centímetros à mesma escala?
As dimensões com que estamos a lidar são de uma ordem tão vasta que é difícil representá-las razoavelmente sem recorrer a escalas logarítmicas. Por isso, garanto apenas, que seria a mãe de todas as burcas.
A janela de 2,5 centímetros de luz visível é ridiculamente pequena comparada com os quilómetros e quilómetros de tecido preto necessários para representar a parte invisível do espectro desde as ondas de rádio, na bainha da saia até aos raios gama no alto da cabeça.
Aquilo que a Ciência faz por nós é alargar a janela e esta abre-se de tal forma que a aprisionadora peça de vestuário preta quase desaparece por completo, expondo os nossos sentidos a uma liberdade arejada e revigorante.
Os telescópios ópticos usam espelhos e lentes de vidro para examinar os céus e o que vêem é a cintilação de estrelas situadas na estreita faixa de comprimentos de onda a que chamamos luz visível. Mas outros telescópios “vêem” nos comprimentos de onda dos raios X ou de ondas rádio, revelando-nos toda uma cornucópia de céus nocturnos alternativos.
A uma escala mais pequena, certas câmaras com filtros apropriados conseguem “ver” no ultra violeta e fotografar flores que mostram uma estranha gama de listas e manchas visíveis aos olhos dos insectos e aparentemente para eles “desenhadas”mas que a nossa vista não consegue divisar a olho nu.
Os olhos dos insectos possuem uma janela espectral de largura semelhante à nossa, mas situada um pouco acima relativamente à posição da burca; não são sensíveis ao vermelho e conseguem penetrar mais no ultravioleta do que nós.
A metáfora da janela de luz estreita que se vai expandindo até um espectro espectacularmente amplo serve para outras áreas da Ciência.
Vivemos algures perto do centro de um complexo de galerias de magnitudes diversas. Vemos o mundo com órgãos sensoriais e com sistemas nervosos que estão equipados para percepcionar e compreender apenas uma escassa gama intermédia de tamanhos, movendo-se de acordo com uma gama igualmente intermédia de velocidades.
Sentimo-nos à vontade com objectos cujo tamanho varia entre alguns quilómetros (a vista do cume de uma montanha) e cerca de uma décima de milímetro (a ponta de um alfinete).
Fora desta gama, até a nossa imaginação é deficiente pelo que necessitamos da ajuda de instrumentos e da matemática de que, felizmente, podemos aprender a servir-nos.
A gama de tamanhos, distâncias ou velocidades com que a nossa imaginação se sente à vontade corresponde a uma faixa minúscula situada no meio da gigantesca gama do possível, que vai desde a escala da estranheza quântica, na extremidade das pequenas dimensões, até à escala da cosmologia einsteiniana, na extremidade das dimensões maiores.
A nossa imaginação, ou imaginações, estão irremediavelmente sub equipadas para lidar com as distâncias situadas fora da estreita gama intermédia que nos é, ancestralmente, familiar.
Tentamos visualizar um electrão como uma minúscula bola orbitando à volta de um cacho maior de bolas que representam protões e neutrões. Mas não é nada que se pareça com isso. Os electrões não são como pequenas bolas. Não são como nada do que conhecemos. Nem sequer é claro que a palavra «como» tenha qualquer significado quando os nossos voos nos levam a acercar-nos dos horizontes mais remotos da realidade As nossas imaginações ainda não possuem as ferramentas necessárias para nos avizinharmos do quantum. A essa escala, nada se comporta como seria de esperar que a matéria – tal como a evolução nos condicionou a pensar – se comportasse.
Também não estamos aptos a lidar com o comportamento de objectos que se movam a fracções consideráveis da velocidade da luz.
O senso comum deixa-nos ficar mal porque evoluiu num mundo em que nada se move muito depressa e nada é muito pequeno ou muito grande.
“O facto de vivermos na base de um profundo poço de gravidade, à superfície de um planeta coberto de gás que gira em torno de uma bola de fogo nuclear situada a 145 milhões de quilómetros de distância e pensarmos que isto é normal é já, obviamente, um sinal de quão distorcida a nossa perspectiva tende a ser”.
A evolução da vida complexa, para já não falar no próprio facto da sua ocorrência num universo que obedece a leis da Física, é algo de maravilhosamente surpreendente ou sê-lo-ia, se não fosse a circunstância de a surpresa ser uma emoção que só pode existir num cérebro que é, ele mesmo, produto desse surpreendente processo.
Pensemos nisto um pouco. Num dado planeta, e possivelmente num só em todo o Universo, algumas moléculas que normalmente não formariam nada mais complicado do que um simples calhau, congregam-se em pedaços de matéria do tamanho de calhaus e dotados de uma complexidade tão espantosa que são capazes de correr, saltar, nadar, voar, ver, ouvir, capturar e comer outros pedaços de complexidade igualmente animados; em certos casos, capazes de pensar, de sentir e ainda de se apaixonar por outros pedaços de matéria complexa.
Agora, compreendemos como é que o truque, essencialmente, se processa, mas só desde 1859. Antes de 1859 tudo terá parecido, efectivamente, muitíssimo estranho. Hoje, graças a Darwin, é só muito estranho.
Darwin, pegou na janela da burca e franqueou-a de par em par, deixando entrar uma corrente de compreensão cuja ofuscante novidade e capacidade de elevar o espírito humano não tivesse precedente a não ser, por ventura, na descoberta de Copérnico de que a Terra não era o centro do Universo.
O modo como vemos o mundo e a razão pela qual consideramos certas coisas intuitivamente fáceis de compreender e outras difíceis é que os nossos cérebros são, eles próprios, órgãos resultantes de uma evolução: verdadeiros computadores de bordo que foram evoluindo para nos ajudarem a sobreviver num mundo onde os objectos que eram importantes para a nossa sobrevivência não eram nem muito grandes nem muito pequenos; um mundo onde as coisas ou estavam paradas ou se deslocavam lentamente em comparação com a velocidade da luz e onde o mais seguro era chamar impossível ao improvável.
A janela da nossa burca mental é estreita porque não precisava de ser mais larga para ajudarem os nossos antepassados a sobreviverem.
A Ciência, à total revelia da intuição gerada pelo processo evolutivo, ensinou-nos que as coisas aparentemente sólidas, como sejam cristais e pedras, são na realidade compostas quase totalmente por espaço vazio.
A ilustração mais corrente representa o núcleo de um átomo como uma mosca no centro de um estádio de futebol. O átomo seguinte encontra-se logo ao lado de fora do estádio.
Assim, a pedra mais dura, mais sólida e mais densa é, na realidade, quase só espaço vazio apenas interrompido por minúsculas partículas, tão afastadas entre si que praticamente nem contam.
Sendo assim, por que motivo dão as pedras a impressão de serem sólidas, duras e impenetráveis?
Enquanto biólogo da evolução, eu responderia da seguinte maneira:
- Os nossos cérebros evoluíram no sentido de ajudarem os nossos corpos a situarem-se no mundo, à escala em que esses corpos funcionam. A nossa evolução não foi no sentido de nos orientarmos. Se assim fosse, é provável que os nossos cérebros tivessem das pedras exactamente essa percepção de espaço preenchido pelo vazio.
As pedras parecem duras e impenetráveis ao tacto porque as nossas mãos não as conseguem penetrar e a razão pela qual não conseguem fazer isso não tem a ver com as dimensões nem o afastamento das partículas que constituem a matéria, mas antes com os campos de força associados a essas partículas muito afastadas que compõem a matéria sólida.
Aos nossos cérebros convém construir noções como solidez e impenetrabilidade, porque elas ajudam-nos a orientar os nossos corpos através de um mundo em que os objectos – que dizemos sólidos – não podem ocupar o espaço uns dos outros.
Quando entregue a si mesma, a intuição humana, produto da evolução e de toda uma habituação no seio do mundo mediano, tem até dificuldade em acreditar em Galileu quando este nos diz que uma bala de canhão e uma pena, sem atrito do ar, cairiam no solo no mesmo momento se fossem largadas de uma torre inclinada.
Isto acontece porque no mundo mediano o atrito do ar está sempre presente. Se tivéssemos evoluído no vácuo, esperaríamos que a pena e a bala de canhão atingissem o solo simultaneamente.
Existe um sentido em que nós, animais, temos de sobreviver não só no mundo mediano, mas também no micro mundo dos átomos e dos electrões. Os próprios impulsos nervosos com que pensamos e imaginamos dependem de actividades que se desenrolam no micro mundo mas não há nenhuma acção que os nossos antepassados selvagens alguma vez tivessem de desempenhar, nem nenhuma decisão que alguma tivessem de tomar, que pudesse ter beneficiado com uma compreensão do micro mundo.
Seria diferente se fossemos bactérias, constantemente fustigadas pelos movimentos térmicos das moléculas, mas nós, habitantes do mundo mediano, somos demasiado avantajados para repararmos no movimento browniano.
De tal forma as nossas vidas são dominadas pela gravidade que somos praticamente insensíveis à força delicada da tensão superficial.
Um pequeno insecto inverte esta prioridade, pois para ele a tensão superficial será tudo menos delicada.
Somos criaturas do mundo mediano, aí se deu a nossa evolução, e isso limita aquilo que estamos em condições de imaginar. A menos que sejamos especialmente dotados ou peculiarmente cultos, a janela estreita da nossa burca apenas nos permite ver esse mundo.
(Richard Dawkins)
Um dos espectáculos mais tristes que se pode ver nas ruas, hoje em dia, é a imagem de uma mulher coberta da cabeça aos pés por um trajo preto, sem graça, perscrutando o mundo através de uma minúscula abertura.
A burca não é apenas um instrumento de opressão das mulheres e de repressão enclausurante da sua liberdade e beleza; não é apenas símbolo da gritante crueldade masculina e de uma submissão feminina tragicamente imposta pela intimidação.
Quero aqui usar a fenda do estreito véu como símbolo de uma outra coisa. Os nossos olhos vêem o mundo, também, através de uma estreita fenda no espectro electromagnético.
A luz visível não é mais do que um raio brilhante na vastidão negra do espectro, que vai desde as ondas de rádio, na sua extremidade mais distante, até aos raios gama, na parte mais curta.
Não é fácil conceber quão estreita é essa fenda e tentar transmiti-lo constitui um verdadeiro desafio.
Imagine-se uma gigantesca burca preta com uma fenda para os olhos da largura aproximadamente igual ao seu tamanho normal, ou seja, de 2,5 centímetros. Se a extensão do tecido preto acima da fenda representar a parte do espectro invisível correspondente às ondas mais curtas e a extensão do tecido preto abaixo da fenda representar o segmento das ondas longas de que comprimento teria de ser a burca para comportar uma fenda de 2,5 centímetros à mesma escala?
As dimensões com que estamos a lidar são de uma ordem tão vasta que é difícil representá-las razoavelmente sem recorrer a escalas logarítmicas. Por isso, garanto apenas, que seria a mãe de todas as burcas.
A janela de 2,5 centímetros de luz visível é ridiculamente pequena comparada com os quilómetros e quilómetros de tecido preto necessários para representar a parte invisível do espectro desde as ondas de rádio, na bainha da saia até aos raios gama no alto da cabeça.
Aquilo que a Ciência faz por nós é alargar a janela e esta abre-se de tal forma que a aprisionadora peça de vestuário preta quase desaparece por completo, expondo os nossos sentidos a uma liberdade arejada e revigorante.
Os telescópios ópticos usam espelhos e lentes de vidro para examinar os céus e o que vêem é a cintilação de estrelas situadas na estreita faixa de comprimentos de onda a que chamamos luz visível. Mas outros telescópios “vêem” nos comprimentos de onda dos raios X ou de ondas rádio, revelando-nos toda uma cornucópia de céus nocturnos alternativos.
A uma escala mais pequena, certas câmaras com filtros apropriados conseguem “ver” no ultra violeta e fotografar flores que mostram uma estranha gama de listas e manchas visíveis aos olhos dos insectos e aparentemente para eles “desenhadas”mas que a nossa vista não consegue divisar a olho nu.
Os olhos dos insectos possuem uma janela espectral de largura semelhante à nossa, mas situada um pouco acima relativamente à posição da burca; não são sensíveis ao vermelho e conseguem penetrar mais no ultravioleta do que nós.
A metáfora da janela de luz estreita que se vai expandindo até um espectro espectacularmente amplo serve para outras áreas da Ciência.
Vivemos algures perto do centro de um complexo de galerias de magnitudes diversas. Vemos o mundo com órgãos sensoriais e com sistemas nervosos que estão equipados para percepcionar e compreender apenas uma escassa gama intermédia de tamanhos, movendo-se de acordo com uma gama igualmente intermédia de velocidades.
Sentimo-nos à vontade com objectos cujo tamanho varia entre alguns quilómetros (a vista do cume de uma montanha) e cerca de uma décima de milímetro (a ponta de um alfinete).
Fora desta gama, até a nossa imaginação é deficiente pelo que necessitamos da ajuda de instrumentos e da matemática de que, felizmente, podemos aprender a servir-nos.
A gama de tamanhos, distâncias ou velocidades com que a nossa imaginação se sente à vontade corresponde a uma faixa minúscula situada no meio da gigantesca gama do possível, que vai desde a escala da estranheza quântica, na extremidade das pequenas dimensões, até à escala da cosmologia einsteiniana, na extremidade das dimensões maiores.
A nossa imaginação, ou imaginações, estão irremediavelmente sub equipadas para lidar com as distâncias situadas fora da estreita gama intermédia que nos é, ancestralmente, familiar.
Tentamos visualizar um electrão como uma minúscula bola orbitando à volta de um cacho maior de bolas que representam protões e neutrões. Mas não é nada que se pareça com isso. Os electrões não são como pequenas bolas. Não são como nada do que conhecemos. Nem sequer é claro que a palavra «como» tenha qualquer significado quando os nossos voos nos levam a acercar-nos dos horizontes mais remotos da realidade As nossas imaginações ainda não possuem as ferramentas necessárias para nos avizinharmos do quantum. A essa escala, nada se comporta como seria de esperar que a matéria – tal como a evolução nos condicionou a pensar – se comportasse.
Também não estamos aptos a lidar com o comportamento de objectos que se movam a fracções consideráveis da velocidade da luz.
O senso comum deixa-nos ficar mal porque evoluiu num mundo em que nada se move muito depressa e nada é muito pequeno ou muito grande.
“O facto de vivermos na base de um profundo poço de gravidade, à superfície de um planeta coberto de gás que gira em torno de uma bola de fogo nuclear situada a 145 milhões de quilómetros de distância e pensarmos que isto é normal é já, obviamente, um sinal de quão distorcida a nossa perspectiva tende a ser”.
A evolução da vida complexa, para já não falar no próprio facto da sua ocorrência num universo que obedece a leis da Física, é algo de maravilhosamente surpreendente ou sê-lo-ia, se não fosse a circunstância de a surpresa ser uma emoção que só pode existir num cérebro que é, ele mesmo, produto desse surpreendente processo.
Pensemos nisto um pouco. Num dado planeta, e possivelmente num só em todo o Universo, algumas moléculas que normalmente não formariam nada mais complicado do que um simples calhau, congregam-se em pedaços de matéria do tamanho de calhaus e dotados de uma complexidade tão espantosa que são capazes de correr, saltar, nadar, voar, ver, ouvir, capturar e comer outros pedaços de complexidade igualmente animados; em certos casos, capazes de pensar, de sentir e ainda de se apaixonar por outros pedaços de matéria complexa.
Agora, compreendemos como é que o truque, essencialmente, se processa, mas só desde 1859. Antes de 1859 tudo terá parecido, efectivamente, muitíssimo estranho. Hoje, graças a Darwin, é só muito estranho.
Darwin, pegou na janela da burca e franqueou-a de par em par, deixando entrar uma corrente de compreensão cuja ofuscante novidade e capacidade de elevar o espírito humano não tivesse precedente a não ser, por ventura, na descoberta de Copérnico de que a Terra não era o centro do Universo.
O modo como vemos o mundo e a razão pela qual consideramos certas coisas intuitivamente fáceis de compreender e outras difíceis é que os nossos cérebros são, eles próprios, órgãos resultantes de uma evolução: verdadeiros computadores de bordo que foram evoluindo para nos ajudarem a sobreviver num mundo onde os objectos que eram importantes para a nossa sobrevivência não eram nem muito grandes nem muito pequenos; um mundo onde as coisas ou estavam paradas ou se deslocavam lentamente em comparação com a velocidade da luz e onde o mais seguro era chamar impossível ao improvável.
A janela da nossa burca mental é estreita porque não precisava de ser mais larga para ajudarem os nossos antepassados a sobreviverem.
A Ciência, à total revelia da intuição gerada pelo processo evolutivo, ensinou-nos que as coisas aparentemente sólidas, como sejam cristais e pedras, são na realidade compostas quase totalmente por espaço vazio.
A ilustração mais corrente representa o núcleo de um átomo como uma mosca no centro de um estádio de futebol. O átomo seguinte encontra-se logo ao lado de fora do estádio.
Assim, a pedra mais dura, mais sólida e mais densa é, na realidade, quase só espaço vazio apenas interrompido por minúsculas partículas, tão afastadas entre si que praticamente nem contam.
Sendo assim, por que motivo dão as pedras a impressão de serem sólidas, duras e impenetráveis?
Enquanto biólogo da evolução, eu responderia da seguinte maneira:
- Os nossos cérebros evoluíram no sentido de ajudarem os nossos corpos a situarem-se no mundo, à escala em que esses corpos funcionam. A nossa evolução não foi no sentido de nos orientarmos. Se assim fosse, é provável que os nossos cérebros tivessem das pedras exactamente essa percepção de espaço preenchido pelo vazio.
As pedras parecem duras e impenetráveis ao tacto porque as nossas mãos não as conseguem penetrar e a razão pela qual não conseguem fazer isso não tem a ver com as dimensões nem o afastamento das partículas que constituem a matéria, mas antes com os campos de força associados a essas partículas muito afastadas que compõem a matéria sólida.
Aos nossos cérebros convém construir noções como solidez e impenetrabilidade, porque elas ajudam-nos a orientar os nossos corpos através de um mundo em que os objectos – que dizemos sólidos – não podem ocupar o espaço uns dos outros.
Quando entregue a si mesma, a intuição humana, produto da evolução e de toda uma habituação no seio do mundo mediano, tem até dificuldade em acreditar em Galileu quando este nos diz que uma bala de canhão e uma pena, sem atrito do ar, cairiam no solo no mesmo momento se fossem largadas de uma torre inclinada.
Isto acontece porque no mundo mediano o atrito do ar está sempre presente. Se tivéssemos evoluído no vácuo, esperaríamos que a pena e a bala de canhão atingissem o solo simultaneamente.
Existe um sentido em que nós, animais, temos de sobreviver não só no mundo mediano, mas também no micro mundo dos átomos e dos electrões. Os próprios impulsos nervosos com que pensamos e imaginamos dependem de actividades que se desenrolam no micro mundo mas não há nenhuma acção que os nossos antepassados selvagens alguma vez tivessem de desempenhar, nem nenhuma decisão que alguma tivessem de tomar, que pudesse ter beneficiado com uma compreensão do micro mundo.
Seria diferente se fossemos bactérias, constantemente fustigadas pelos movimentos térmicos das moléculas, mas nós, habitantes do mundo mediano, somos demasiado avantajados para repararmos no movimento browniano.
De tal forma as nossas vidas são dominadas pela gravidade que somos praticamente insensíveis à força delicada da tensão superficial.
Um pequeno insecto inverte esta prioridade, pois para ele a tensão superficial será tudo menos delicada.
Somos criaturas do mundo mediano, aí se deu a nossa evolução, e isso limita aquilo que estamos em condições de imaginar. A menos que sejamos especialmente dotados ou peculiarmente cultos, a janela estreita da nossa burca apenas nos permite ver esse mundo.
CAMANÉ - ESQUINA DE RUA
Letra: João Fezas Vital
Música: Pedro Rodrigues
Um dos mais bonitos fados castiços por um dos melhores fadistas dos nossos dias.
TIETA DO AGRESTE
EPISÓDIO Nº203
EPISÓDIO Nº203
ONDE SE SABE DAS MÁQUINAS NA ESTRADA OU JAIRO, O JUBILOSO
Pois assim é: um dia de caça, outro de caçador ou ri melhor quem ri por último. Extinta a luz do motor ao toque das nove no sino da Matriz, accionado por Vavá de mão ainda enfaixada, soam palmas insistentes na porta da casa do humilhado Jairo.
Apresenta-se um ajudante de chofer, membro da equipe de asfaltadores, bons de vaia e de achincalhe. Solicita ferramentas emprestadas e, se possível, a presença de Jairo, seu precioso auxílio. Duas das máquinas encontram-se quebradas na estrada, apenas o rolo compressor prosseguira a marcha para Esplanada. Quanto ao jipe e ao caminhão com os operários, ao sair de Agreste tocaram-se na frente e a estas horas já devem estar próximos da Bahia. O moço veio a pé, está morto de sede, aceita um copo com água. Desculpe o incómodo.
- Onde se deu?
- Pertinho daqui, todas duas. Uns sete ou oito quilómetros. Naquela lombada, sabe, onde tinha um mata-burro meio rebentado. Acabou de rebentar com o peso da patrola que afundou. A outra nem chegou lá. Deu galho antes.
Cabe aos vitoriosos a generosidade. Magnânimo, Jairo coloca-se às ordens:
- Vamos ver isso. Não há-de ser nada. Dá-se um jeitinho.
Dirige-se à garagem. Acaricia a marinete, murmura-lhe palavras de carinho e confiança:
- Vamos socorrer os ricos, meu Disco Voador, eles te chamaram de lixo, de ferro-velho, agora chegou a nossa vez. Veja como se comporta, esqueça as manhas. Não vá fazer feio, me deixar na mão, prove seu valor, minha sensual.
A manhosa e sensual comporta-se à altura. Desenvolve apreciável velocidade, o motor não rateia nem uma só vez. Bichinho bom, constata o ajudante de chofer ao vê-la prosseguir, indiferente a crateras, atoleiros, cacundas, abismos. Impávida e serena, ao som de música pois, por incrível que pareça, até o rádio russo funcionou.
Jairo presta a ajuda solicitada, sobra-lhe competência. Postas as máquinas em ordem, meia-noite passada, sem esperar agradecimentos, limpa as mãos na estopa, sobe o degrau da porta, liga o motor, a marinete parte soltando a descarga de despedida. Beleza de descarga!
Obrigado, Estrela do Sertão; vamos em frente, minha picurrucha.
Apresenta-se um ajudante de chofer, membro da equipe de asfaltadores, bons de vaia e de achincalhe. Solicita ferramentas emprestadas e, se possível, a presença de Jairo, seu precioso auxílio. Duas das máquinas encontram-se quebradas na estrada, apenas o rolo compressor prosseguira a marcha para Esplanada. Quanto ao jipe e ao caminhão com os operários, ao sair de Agreste tocaram-se na frente e a estas horas já devem estar próximos da Bahia. O moço veio a pé, está morto de sede, aceita um copo com água. Desculpe o incómodo.
- Onde se deu?
- Pertinho daqui, todas duas. Uns sete ou oito quilómetros. Naquela lombada, sabe, onde tinha um mata-burro meio rebentado. Acabou de rebentar com o peso da patrola que afundou. A outra nem chegou lá. Deu galho antes.
Cabe aos vitoriosos a generosidade. Magnânimo, Jairo coloca-se às ordens:
- Vamos ver isso. Não há-de ser nada. Dá-se um jeitinho.
Dirige-se à garagem. Acaricia a marinete, murmura-lhe palavras de carinho e confiança:
- Vamos socorrer os ricos, meu Disco Voador, eles te chamaram de lixo, de ferro-velho, agora chegou a nossa vez. Veja como se comporta, esqueça as manhas. Não vá fazer feio, me deixar na mão, prove seu valor, minha sensual.
A manhosa e sensual comporta-se à altura. Desenvolve apreciável velocidade, o motor não rateia nem uma só vez. Bichinho bom, constata o ajudante de chofer ao vê-la prosseguir, indiferente a crateras, atoleiros, cacundas, abismos. Impávida e serena, ao som de música pois, por incrível que pareça, até o rádio russo funcionou.
Jairo presta a ajuda solicitada, sobra-lhe competência. Postas as máquinas em ordem, meia-noite passada, sem esperar agradecimentos, limpa as mãos na estopa, sobe o degrau da porta, liga o motor, a marinete parte soltando a descarga de despedida. Beleza de descarga!
Obrigado, Estrela do Sertão; vamos em frente, minha picurrucha.
segunda-feira, agosto 10, 2009
Formas de Capitalismo - As Vacas
CAPITALISMO IDEAL
Você tem duas vacas.
Vende uma e compra um boi.
Eles multiplicam-se, e a economia cresce.
Você vende a manada e aposenta-se. Fica rico!
CAPITALISMO AMERICANO
Vende uma e compra um boi.
Eles multiplicam-se, e a economia cresce.
Você vende a manada e aposenta-se. Fica rico!
CAPITALISMO AMERICANO
Você tem duas vacas.
Vende uma e força a outra a produzir o leite de quatro vacas.
Fica surpreso quando ela morre.
CAPITALISMO JAPONÊS
Vende uma e força a outra a produzir o leite de quatro vacas.
Fica surpreso quando ela morre.
CAPITALISMO JAPONÊS
Você tem duas vacas.
Redesenha-as para que tenham um décimo do tamanho de uma vaca normal e produzam 20 vezes mais leite.
Depois cria desenhinhos de vacas chamados Vaquimon e vende-os para o mundo inteiro.
CAPITALISMO BRITÂNICO
Redesenha-as para que tenham um décimo do tamanho de uma vaca normal e produzam 20 vezes mais leite.
Depois cria desenhinhos de vacas chamados Vaquimon e vende-os para o mundo inteiro.
CAPITALISMO BRITÂNICO
Você tem duas vacas.
As duas são loucas.
CAPITALISMO HOLANDÊS
As duas são loucas.
CAPITALISMO HOLANDÊS
Você tem duas vacas.
Elas vivem juntas, em união de facto, não gostam de bois e tudo bem.
CAPITALISMO ALEMÃO
Elas vivem juntas, em união de facto, não gostam de bois e tudo bem.
CAPITALISMO ALEMÃO
Você tem duas vacas.
Elas produzem leite regularmente, segundo padrões de quantidade e horário previamente estabelecido, de forma precisa e lucrativa.
Mas o que você queria mesmo era criar porcos.
CAPITALISMO RUSSO
Elas produzem leite regularmente, segundo padrões de quantidade e horário previamente estabelecido, de forma precisa e lucrativa.
Mas o que você queria mesmo era criar porcos.
CAPITALISMO RUSSO
Você tem duas vacas.
Conta-as e vê que tem cinco.
Conta de novo e vê que tem 42.
Conta de novo e vê que tem 12 vacas.
Você pára de contar e abre outra garrafa de vodca.
CAPITALISMO SUÍÇO
Conta-as e vê que tem cinco.
Conta de novo e vê que tem 42.
Conta de novo e vê que tem 12 vacas.
Você pára de contar e abre outra garrafa de vodca.
CAPITALISMO SUÍÇO
Você tem 500 vacas, mas nenhuma é sua.
Você cobra para guardar as vacas dos outros.
CAPITALISMO ESPANHOL
Você cobra para guardar as vacas dos outros.
CAPITALISMO ESPANHOL
Você tem muito orgulho de ter duas vacas.
CAPITALISMO BRASILEIRO
CAPITALISMO BRASILEIRO
Você tem duas vacas.
E reclama porque o rebanho não cresce...
CAPITALISMO HINDU
Você tem duas vacas.
Ai de quem tocar nelas.
Ai de quem tocar nelas.
CAPITALISMO PORTUGUÊS
Você tem duas vacas.
Uma delas é roubada.
A outra foi comprada através do Fundo Social Europeu.
O governo cria O IVVA - Imposto de Valor Vacuum Acrescentado.
Um fiscal vem e multa-o, porque embora você tenha pago correctamente o IVVA, o valor era pelo número de vacas presumidas e não pelo de vacas reais.
O Ministério das Finanças, por meio de dados também presumidos do seu consumo de leite, queijo, sapatos de couro, botões, presume que você tenha 200 vacas. Para se livrar do sarilho, você dá a vaca que resta ao inspector das finanças para que ele feche os olhos e dê um jeitinho...
TIETA DO AGRESTE
EPISÓDIO Nº 202
EPISÓDIO Nº 202
E ainda há quem fale mal da grande indústria, reflecte Ascânio, revoltado com as injustiças do mundo. Percorre com o olhar os curiosos, constata a admiração geral. Caloca, dono do Bar Elite, cacete armado onde vende cachaça no Beco da Amargura, sintetiza a opinião geral:
- Porreta! Vá trabalhar depressa assim na puta que o pariu!
Vitorioso, o coração aos pulos, o secretário da Prefeitura de Agreste retira-se para tomar outras providências. Passa na pensão de dona Amorzinho, encomenda comida para toda a equipa. Ele e mais três virão almoçar na sala da pensão, os trabalhadores comerão no próprio local de trabalho – faça um bom feijão e cabrito assado. Quem paga é a Prefeitura, não vá cobrar aos homens. Dirige-se a seguir, à casa de Perpétua para contar as novidades a Leonora, comunicar-lhe a inesperada ida à capital. Dar-se-á ela conta da importância dessa viagem que poderá transformar o namoro sem perspectivas, um sonho absurdo, em exaltante realidade de noivado e casamento? Voltará trazendo o requerimento da Brastânio dirigido à Prefeitura, solicitando autorização para se instalar em Agreste. Somente isso? O horizonte é amplo em sua frente.
Em companhia de Ascânio, ao meio-dia, os dois engenheiros e o fiscal da obra comem o melhor almoço de suas vidas: pitus fritos, aferventados, escalfados com ovos, moqueca de peixe, galinha de molho pardo, cabrito assado, carne-de-sol com pirão de leite. Doces de sabores raros: de jaca, carambola, groselha, araça mirim. Passas de caju e jenipapo. Refrescos de mangaba e de cajá. O sorumbático engenheiro-chefe comeu tanto, com tal disposição, a ponto de aflorar-lhe às faces desbotadas um ar de viço. Deixando o calçamento por conta do colega, estende-se numa rede para só acordar no fim da tarde, a tempo de assistir à conclusão dos trabalhos.
Quando, depois da bóia, a marinete de Jairo buzinou na curva, os operários ainda no prazer do feijão e da cerveja – o feijão de dona Amorzinho, não um feijão qualquer – acabavam de passar a primeira camada de piche grosso e reluzente sobre o aplainado terreno. Retiraram os cavaletes para abrir caminho à resfolegante viatura, saudando-a com assobios e dichotes: ferro-velho, calhambeque podre, sobra de guerra, lixo; imensa vaia a acompanha.
Por volta das seis horas, maleta em punho, Ascânio aparece, de braço dado com Leonora. O calçamento chega ao fim. Brilha o betume, húmido e negro. Saindo do carro químico, um tubo asperge uma última camada de asfalto fino. Está pronta para ser inaugurada, a Rua Antonieta Esteves Cantarelli.
Caloca aproxima-se de Ascânio, pede, provocando risos:
- Seu Ascânio, aproveite e mande eles calçar o meu beco, fazem num minuto.
Ainda sonolento, o engenheiro Remo Quarantini ordena a partida, que almoço! Ascânio despede-se de Leonora, beijando-a na face diante da multidão. Deixa-a junto de dona Carmosina, na primeira fila dos curiosos. Não resiste e provoca a adversária e amiga:
- Conheceu, papuda?
Não espera a resposta. O engenheiro no jipe, pede pressa, toca a busina. De agora em diante faz-se necessário correr, terminaram-se os tempos de leseira. De leseira ou de lazer?
- Porreta! Vá trabalhar depressa assim na puta que o pariu!
Vitorioso, o coração aos pulos, o secretário da Prefeitura de Agreste retira-se para tomar outras providências. Passa na pensão de dona Amorzinho, encomenda comida para toda a equipa. Ele e mais três virão almoçar na sala da pensão, os trabalhadores comerão no próprio local de trabalho – faça um bom feijão e cabrito assado. Quem paga é a Prefeitura, não vá cobrar aos homens. Dirige-se a seguir, à casa de Perpétua para contar as novidades a Leonora, comunicar-lhe a inesperada ida à capital. Dar-se-á ela conta da importância dessa viagem que poderá transformar o namoro sem perspectivas, um sonho absurdo, em exaltante realidade de noivado e casamento? Voltará trazendo o requerimento da Brastânio dirigido à Prefeitura, solicitando autorização para se instalar em Agreste. Somente isso? O horizonte é amplo em sua frente.
Em companhia de Ascânio, ao meio-dia, os dois engenheiros e o fiscal da obra comem o melhor almoço de suas vidas: pitus fritos, aferventados, escalfados com ovos, moqueca de peixe, galinha de molho pardo, cabrito assado, carne-de-sol com pirão de leite. Doces de sabores raros: de jaca, carambola, groselha, araça mirim. Passas de caju e jenipapo. Refrescos de mangaba e de cajá. O sorumbático engenheiro-chefe comeu tanto, com tal disposição, a ponto de aflorar-lhe às faces desbotadas um ar de viço. Deixando o calçamento por conta do colega, estende-se numa rede para só acordar no fim da tarde, a tempo de assistir à conclusão dos trabalhos.
Quando, depois da bóia, a marinete de Jairo buzinou na curva, os operários ainda no prazer do feijão e da cerveja – o feijão de dona Amorzinho, não um feijão qualquer – acabavam de passar a primeira camada de piche grosso e reluzente sobre o aplainado terreno. Retiraram os cavaletes para abrir caminho à resfolegante viatura, saudando-a com assobios e dichotes: ferro-velho, calhambeque podre, sobra de guerra, lixo; imensa vaia a acompanha.
Por volta das seis horas, maleta em punho, Ascânio aparece, de braço dado com Leonora. O calçamento chega ao fim. Brilha o betume, húmido e negro. Saindo do carro químico, um tubo asperge uma última camada de asfalto fino. Está pronta para ser inaugurada, a Rua Antonieta Esteves Cantarelli.
Caloca aproxima-se de Ascânio, pede, provocando risos:
- Seu Ascânio, aproveite e mande eles calçar o meu beco, fazem num minuto.
Ainda sonolento, o engenheiro Remo Quarantini ordena a partida, que almoço! Ascânio despede-se de Leonora, beijando-a na face diante da multidão. Deixa-a junto de dona Carmosina, na primeira fila dos curiosos. Não resiste e provoca a adversária e amiga:
- Conheceu, papuda?
Não espera a resposta. O engenheiro no jipe, pede pressa, toca a busina. De agora em diante faz-se necessário correr, terminaram-se os tempos de leseira. De leseira ou de lazer?
domingo, agosto 09, 2009
CANÇÕES BRASILEIRAS
FLÁVIO VENTURINI - TE AMO ESPANHOLA
Composição de Flávio Venturini e Guarabyra, lançada originalmente no LP "Nascente" de Flávio Venturini de 1982.
Por Que Somos Bons?
(Richard Dawkins )
Por que nos condoemos com o choro de uma criança que sofre?
Por que sentimos compaixão por uma viúva idosa em desespero devido à solidão?
O que nos provoca o impulso para enviarmos uma dádiva anónima para as vítimas de um cataclismo que não conhecemos nem viremos a conhecer e nunca nos retribuirá?
De onde vem o bom samaritano que vive em nós?
Recordemos Einstein:
Estranha é a nossa situação aqui na Terra. Cada um de nós vem para uma curta visita, sem saber porquê, contudo, parecemos adivinhar um objectivo. No entanto, do ponto de vista do quotidiano, há uma coisa que sabemos: que o homem está aqui pelos outros homens – acima de tudo por aqueles de cujos sorrisos e bem-estar depende a nossa própria felicidade.
Será realmente pelos outros homens que nós aqui estamos e terá isso alguma coisa a ver com a religião?
É por causa dela que somos bons?
Muitas pessoas religiosas consideram difícil imaginar como sem religião alguém pode ser bom ou há-de sequer querer ser bom, e esta incapacidade para compreender e aceitar a bondade fora da religião leva algumas pessoas religiosas a paroxismos de ódio contra aqueles que não professam a sua religião.
E assim, a religião, que se proclama como fonte de inspiração para a bondade e o amor transforma-se, ela própria, num imenso reservatório de ódio e maldade.
Brian Fleming, autor e realizador de um documentário sincero e comovente em defesa do ateísmo recebeu uma carta em 21 de Dezembro de 2005 que rezava assim:
"Decididamente, vocês têm cá uma lata! Adorava pegar numa faca e esventrá-los a todos, seus idiotas, e gritar de alegria a ver as vossas entranhas a derramarem-se à vossa frente. Vocês andam a ver se arranjam como atear uma guerra santa em que um dia eu e outros como eu, possamos a vir ter o prazer de passar aos actos como o atrás mencionado."
Chegado a este ponto o autor da carta reconhece tardiamente que a sua linguagem não é muito cristã, pois continua, agora num tom mais amistoso:
"Contudo Deus ensina-nos a não procurar a vingança mas sim a rezar pelas pessoas como vocês."
Mas a benevolência dura-lhe pouco:
"Vai consolar-me saber que o castigo que Deus vos há-de trazer será mil vezes pior do que o que quer que seja que eu possa infligir. O melhor de tudo é que vocês hão-de sofrer para toda a eternidade por estes pecados de que estão completamente ignorantes. A ira de Deus não há-de mostrar misericórdia. Para vosso próprio bem, espero que a verdade vos seja revelada antes que a faca vos toque na carne. Feliz NATAL!!!
P.S: Vocês não fazem mesmo ideia do que vos está reservado…Eu agradeço a Deus por não ser vocês."
Estas cartas rancorosas, de que esta é apenas um exemplo, são mais comuns na América do Norte provenientes de pessoas afectas a Igrejas de Cristo e a Seitas que proliferam por todos os EUA, mas a carta que se segue, de Maio de 2005, é de um médico inglês e foi dirigida a Richard Dawkins.
Depois de uns parágrafos introdutórios a denunciar a evolução e a incitar o autor a ler um livro que defende que o mundo tem apenas 8.000 anos (será que ele pode mesmo ser médico?) conclui:
"Os seus livros, o prestígio de que goza em Oxford, tudo o que ama na vida, e tudo aquilo que alcançou são um exercício de total futilidade…A interpeladora pergunta de Camus torna-se inescapável: porque não cometemos todos suicídio? Na verdade, a sua visão do mundo tem esse tipo de efeito sobre os estudantes e em muitas outras pessoas…que todos evoluímos por puro acaso, a partir do nada, e que a esse nada voltaremos. Mesmo que a religião não fosse verdadeira, é melhor, muito melhor acreditar num mito nobre, como o de Platão, se durante as nossas vidas ele conduzir à paz de espírito.
Mas a sua visão do mundo leva à ansiedade, à toxicodependência, à violência, ao niilismo, ao hedonismo, à ciência Frankenstein, ao inferno na Terra e à terceira guerra mundial. Pergunto-me quão feliz será o senhor nas suas relações pessoais? Divorciado? Viúvo? Homossexual? As pessoas como o senhor nunca são felizes, caso contrário não se esforçariam tanto para provar que não existe felicidade nem significado em nada."
Segundo este médico inglês o Darwinismo é intrinsecamente uma evolução ao acaso quando, a selecção natural, é precisamente o oposto de um processo casual.
A evolução acontece à custa de alterações genéticas que favorecem a sobrevivência da espécie e essa é a essência da selecção natural de Darwin.
Muitas vezes, a selecção natural conduz a “becos sem saída” e, nesses casos, a espécie extingue-se e esse foi o desfecho de todas aquelas que hoje estudamos sob a forma de fósseis.
Os grandes dinossauros que noutros tempos dominaram a vida sobre a Terra foram eliminados por alterações drásticas e bruscas que lhes retiraram totalmente as possibilidades de sobrevivência tendo-se aberto então caminho para a evolução de outras espécies que até aí não tinham hipótese de evoluir.
Há cerca de sessenta milhões de anos, após o desaparecimento dos grandes dinossauros, pequenos animais que viviam nas florestas passaram a encontrar um espaço que até aí não dispunham.
Eram os antepassados dos mamíferos dos quais, hoje, nós somos os seus mais recentes representantes.
Nada aconteceu por acaso!
Muitos cientistas sustentam que o nosso sentido de certo e errado provem do nosso passado darwiniano.
Richard Dawkins apresenta, a este respeito, a sua versão:
-Em primeiro lugar temos os comportamentos de altruísmo e bondade para com os nossos parentes dos quais o carinho e a protecção que dispensamos aos nossos filhos é o exemplo mais óbvio mas não o único no mundo animal.
Cuidar dos parentes próximos para os defender, para os alertar contra os perigos ou partilhar com eles alimentos são comportamentos normais entre indivíduos que partilham cópias dos mesmos genes.
-Em segundo lugar temos um outro tipo de altruísmo para o qual existe uma sólida fundamentação lógica darwiniana que é o altruísmo recíproco (temos de ser uns para os outros).
Esta teoria trazida para a biologia por Robert Trivers não depende da partilha de genes e funciona até igualmente bem entre animais de espécie diferentes, sendo aí chamada de simbiose.
Trata-se do mesmo princípio que está na base de todo o comércio e das trocas entre os seres humanos.
O caçador precisa de uma lança e o ferreiro precisa de carne. É assimetria que medeia o acordo.
A abelha precisa de néctar e a flor de ser polinizada.
A selecção natural favorece os genes que predispõem os indivíduos, em relações de necessidade e oportunidade assimétricas, para darem quando podem e solicitarem quando não podem.
E favorece também as tendências para lembrar as obrigações, para guardar rancor, para fiscalizar as relações de troca e para punir os trapaceiros que recebem, mas que não dão quando chega a sua vez de o fazerem.
-Em terceiro lugar, os comportamentos altruístas favorecem o indivíduo que os pratica porque lhes permite ganhar fama de bondosos e generosos e essa reputação é importante e os biólogos reconhecem nela valor de sobrevivência darwiniana não só pelo facto de serem bons como também por alimentarem essa reputação.
Reputação que não se restringe apenas ao ser humano, de acordo com experiências recentemente feitas em animais, nomeadamente peixes, e publicadas num artigo de R. Bshary e A. S. Grutter na revista Nature de Junho de 2006.
-Em quarto lugar, o economista norueguês-americano Thorstein Veblen e de uma forma diferente o zoólogo israelita Amotz Zahavi, acrescentaram ainda uma ideia mais fascinante quanto à vantagem dos comportamentos altruístas considerando-os uma proclamação implícita de domínio ou superioridade.
Por exemplo, os chefes rivais das tribos do noroeste do Pacífico competiam entre si organizando festins de uma abundância ruinosa.
Só um indivíduo genuinamente superior pode dar-se ao luxo de anunciar o facto por meio de uma oferta dispendiosa.
Os indivíduos compram o êxito através de demonstrações de superioridade, incluindo a generosidade ostentatória e o assumir de riscos pelo bem comum.
Temos então quatro boas razões Darwinianas para os indivíduos serem altruístas, generosos ou “morais” uns para com os outros e ao longo da nossa Pré-Histórica, o ser humano viveu em condições que terão favorecido bastante a evolução destes 4 tipos de altruísmo.
Vivíamos em aldeias ou, em tempos mais recuados, em bandos nómadas discretos, parcialmente isolados de aldeias ou de bandos vizinhos, e estas eram condições que favoreceram extraordinariamente o evoluir das relações altruístas familiares como factor importante para a sobrevivência do grupo.
E não só para o altruísmo de base parental como igualmente do altruísmo recíproco ao cruzarem-se com frequência com os mesmos indivíduos e estas são as condições ideais para se construir a reputação do altruísmo e também para publicitarem uma generosidade conspícua.
É fácil perceber a razão pela qual os nossos antepassados pré históricos terão sido bons para os membros do seu próprio grupo mas maus, chegando à xenofobia, em relação a outros grupos.
Mas agora que a maior parte de nós vive em grandes cidades onde já não estamos rodeados de parentes e conhecemos indivíduos que não mais voltaremos a encontrar, por que motivo somos ainda tão bons uns para os outros e até para aqueles que pertencem a grupos exteriores ao nosso?
É importante não transmitir uma ideia errada sobre o alcance da selecção natural pois ela não favorece a evolução de uma consciência cognitiva do que é bom para os nossos genes, o que ela favorece são regras de base empírica que na prática funcionam no sentido de prover os genes que as criaram.
Vejamos um exemplo:
-No cérebro de um pássaro a regra «cuidar daquelas coisas pequenas que soltam grasnidos e vivem no ninho e deixar-lhes cair comida nas bocas vermelhas e escancaradas» tem o objectivo de preservar os genes que criaram a regra porque os objectos que soltam grasnidos e ficam de boca aberta são os seus descendentes.
Mas esta regra falha se outra cria de pássaro entra para dentro do ninho, situação que foi engendrada pelos cucos.
Esta falha ou “tiro fora do alvo”pode também acontecer com os impulsos para a bondade, altruísmo, empatia, piedade, que o homem continua a desenvolver quando as condições já são diferentes das que existiam em tempos ancestrais.
Por outras palavras, as condições são outras mas a regra empírica manteve-se e, portanto, embora hoje as pessoas já não sejam nossos parentes, façam parte do nosso grupo, ou tenham possibilidade de retribuir, tal como a ave que por impulso continua a alimentar o filho do cuco, também nós continuamos a sentir o desejo de sermos bons e generosos.
É como o desejo sexual que não deixa de ser sentido mesmo quando a mulher é estéril ou toma a pílula e fica incapaz de reproduzir.
São ambos “tiros fora do alvo”, erros darwinianos: abençoados e inestimáveis erros.
Em tempos ancestrais a melhor forma da selecção natural assegurar a sobrevivência da nossa espécie foi instalando no cérebro não só a necessidade de acreditar, da qual já falamos num texto anterior, como também, o desejo sexual e a compaixão ou generosidade.
Por que sentimos compaixão por uma viúva idosa em desespero devido à solidão?
O que nos provoca o impulso para enviarmos uma dádiva anónima para as vítimas de um cataclismo que não conhecemos nem viremos a conhecer e nunca nos retribuirá?
De onde vem o bom samaritano que vive em nós?
Recordemos Einstein:
Estranha é a nossa situação aqui na Terra. Cada um de nós vem para uma curta visita, sem saber porquê, contudo, parecemos adivinhar um objectivo. No entanto, do ponto de vista do quotidiano, há uma coisa que sabemos: que o homem está aqui pelos outros homens – acima de tudo por aqueles de cujos sorrisos e bem-estar depende a nossa própria felicidade.
Será realmente pelos outros homens que nós aqui estamos e terá isso alguma coisa a ver com a religião?
É por causa dela que somos bons?
Muitas pessoas religiosas consideram difícil imaginar como sem religião alguém pode ser bom ou há-de sequer querer ser bom, e esta incapacidade para compreender e aceitar a bondade fora da religião leva algumas pessoas religiosas a paroxismos de ódio contra aqueles que não professam a sua religião.
E assim, a religião, que se proclama como fonte de inspiração para a bondade e o amor transforma-se, ela própria, num imenso reservatório de ódio e maldade.
Brian Fleming, autor e realizador de um documentário sincero e comovente em defesa do ateísmo recebeu uma carta em 21 de Dezembro de 2005 que rezava assim:
"Decididamente, vocês têm cá uma lata! Adorava pegar numa faca e esventrá-los a todos, seus idiotas, e gritar de alegria a ver as vossas entranhas a derramarem-se à vossa frente. Vocês andam a ver se arranjam como atear uma guerra santa em que um dia eu e outros como eu, possamos a vir ter o prazer de passar aos actos como o atrás mencionado."
Chegado a este ponto o autor da carta reconhece tardiamente que a sua linguagem não é muito cristã, pois continua, agora num tom mais amistoso:
"Contudo Deus ensina-nos a não procurar a vingança mas sim a rezar pelas pessoas como vocês."
Mas a benevolência dura-lhe pouco:
"Vai consolar-me saber que o castigo que Deus vos há-de trazer será mil vezes pior do que o que quer que seja que eu possa infligir. O melhor de tudo é que vocês hão-de sofrer para toda a eternidade por estes pecados de que estão completamente ignorantes. A ira de Deus não há-de mostrar misericórdia. Para vosso próprio bem, espero que a verdade vos seja revelada antes que a faca vos toque na carne. Feliz NATAL!!!
P.S: Vocês não fazem mesmo ideia do que vos está reservado…Eu agradeço a Deus por não ser vocês."
Estas cartas rancorosas, de que esta é apenas um exemplo, são mais comuns na América do Norte provenientes de pessoas afectas a Igrejas de Cristo e a Seitas que proliferam por todos os EUA, mas a carta que se segue, de Maio de 2005, é de um médico inglês e foi dirigida a Richard Dawkins.
Depois de uns parágrafos introdutórios a denunciar a evolução e a incitar o autor a ler um livro que defende que o mundo tem apenas 8.000 anos (será que ele pode mesmo ser médico?) conclui:
"Os seus livros, o prestígio de que goza em Oxford, tudo o que ama na vida, e tudo aquilo que alcançou são um exercício de total futilidade…A interpeladora pergunta de Camus torna-se inescapável: porque não cometemos todos suicídio? Na verdade, a sua visão do mundo tem esse tipo de efeito sobre os estudantes e em muitas outras pessoas…que todos evoluímos por puro acaso, a partir do nada, e que a esse nada voltaremos. Mesmo que a religião não fosse verdadeira, é melhor, muito melhor acreditar num mito nobre, como o de Platão, se durante as nossas vidas ele conduzir à paz de espírito.
Mas a sua visão do mundo leva à ansiedade, à toxicodependência, à violência, ao niilismo, ao hedonismo, à ciência Frankenstein, ao inferno na Terra e à terceira guerra mundial. Pergunto-me quão feliz será o senhor nas suas relações pessoais? Divorciado? Viúvo? Homossexual? As pessoas como o senhor nunca são felizes, caso contrário não se esforçariam tanto para provar que não existe felicidade nem significado em nada."
Segundo este médico inglês o Darwinismo é intrinsecamente uma evolução ao acaso quando, a selecção natural, é precisamente o oposto de um processo casual.
A evolução acontece à custa de alterações genéticas que favorecem a sobrevivência da espécie e essa é a essência da selecção natural de Darwin.
Muitas vezes, a selecção natural conduz a “becos sem saída” e, nesses casos, a espécie extingue-se e esse foi o desfecho de todas aquelas que hoje estudamos sob a forma de fósseis.
Os grandes dinossauros que noutros tempos dominaram a vida sobre a Terra foram eliminados por alterações drásticas e bruscas que lhes retiraram totalmente as possibilidades de sobrevivência tendo-se aberto então caminho para a evolução de outras espécies que até aí não tinham hipótese de evoluir.
Há cerca de sessenta milhões de anos, após o desaparecimento dos grandes dinossauros, pequenos animais que viviam nas florestas passaram a encontrar um espaço que até aí não dispunham.
Eram os antepassados dos mamíferos dos quais, hoje, nós somos os seus mais recentes representantes.
Nada aconteceu por acaso!
Muitos cientistas sustentam que o nosso sentido de certo e errado provem do nosso passado darwiniano.
Richard Dawkins apresenta, a este respeito, a sua versão:
-Em primeiro lugar temos os comportamentos de altruísmo e bondade para com os nossos parentes dos quais o carinho e a protecção que dispensamos aos nossos filhos é o exemplo mais óbvio mas não o único no mundo animal.
Cuidar dos parentes próximos para os defender, para os alertar contra os perigos ou partilhar com eles alimentos são comportamentos normais entre indivíduos que partilham cópias dos mesmos genes.
-Em segundo lugar temos um outro tipo de altruísmo para o qual existe uma sólida fundamentação lógica darwiniana que é o altruísmo recíproco (temos de ser uns para os outros).
Esta teoria trazida para a biologia por Robert Trivers não depende da partilha de genes e funciona até igualmente bem entre animais de espécie diferentes, sendo aí chamada de simbiose.
Trata-se do mesmo princípio que está na base de todo o comércio e das trocas entre os seres humanos.
O caçador precisa de uma lança e o ferreiro precisa de carne. É assimetria que medeia o acordo.
A abelha precisa de néctar e a flor de ser polinizada.
A selecção natural favorece os genes que predispõem os indivíduos, em relações de necessidade e oportunidade assimétricas, para darem quando podem e solicitarem quando não podem.
E favorece também as tendências para lembrar as obrigações, para guardar rancor, para fiscalizar as relações de troca e para punir os trapaceiros que recebem, mas que não dão quando chega a sua vez de o fazerem.
-Em terceiro lugar, os comportamentos altruístas favorecem o indivíduo que os pratica porque lhes permite ganhar fama de bondosos e generosos e essa reputação é importante e os biólogos reconhecem nela valor de sobrevivência darwiniana não só pelo facto de serem bons como também por alimentarem essa reputação.
Reputação que não se restringe apenas ao ser humano, de acordo com experiências recentemente feitas em animais, nomeadamente peixes, e publicadas num artigo de R. Bshary e A. S. Grutter na revista Nature de Junho de 2006.
-Em quarto lugar, o economista norueguês-americano Thorstein Veblen e de uma forma diferente o zoólogo israelita Amotz Zahavi, acrescentaram ainda uma ideia mais fascinante quanto à vantagem dos comportamentos altruístas considerando-os uma proclamação implícita de domínio ou superioridade.
Por exemplo, os chefes rivais das tribos do noroeste do Pacífico competiam entre si organizando festins de uma abundância ruinosa.
Só um indivíduo genuinamente superior pode dar-se ao luxo de anunciar o facto por meio de uma oferta dispendiosa.
Os indivíduos compram o êxito através de demonstrações de superioridade, incluindo a generosidade ostentatória e o assumir de riscos pelo bem comum.
Temos então quatro boas razões Darwinianas para os indivíduos serem altruístas, generosos ou “morais” uns para com os outros e ao longo da nossa Pré-Histórica, o ser humano viveu em condições que terão favorecido bastante a evolução destes 4 tipos de altruísmo.
Vivíamos em aldeias ou, em tempos mais recuados, em bandos nómadas discretos, parcialmente isolados de aldeias ou de bandos vizinhos, e estas eram condições que favoreceram extraordinariamente o evoluir das relações altruístas familiares como factor importante para a sobrevivência do grupo.
E não só para o altruísmo de base parental como igualmente do altruísmo recíproco ao cruzarem-se com frequência com os mesmos indivíduos e estas são as condições ideais para se construir a reputação do altruísmo e também para publicitarem uma generosidade conspícua.
É fácil perceber a razão pela qual os nossos antepassados pré históricos terão sido bons para os membros do seu próprio grupo mas maus, chegando à xenofobia, em relação a outros grupos.
Mas agora que a maior parte de nós vive em grandes cidades onde já não estamos rodeados de parentes e conhecemos indivíduos que não mais voltaremos a encontrar, por que motivo somos ainda tão bons uns para os outros e até para aqueles que pertencem a grupos exteriores ao nosso?
É importante não transmitir uma ideia errada sobre o alcance da selecção natural pois ela não favorece a evolução de uma consciência cognitiva do que é bom para os nossos genes, o que ela favorece são regras de base empírica que na prática funcionam no sentido de prover os genes que as criaram.
Vejamos um exemplo:
-No cérebro de um pássaro a regra «cuidar daquelas coisas pequenas que soltam grasnidos e vivem no ninho e deixar-lhes cair comida nas bocas vermelhas e escancaradas» tem o objectivo de preservar os genes que criaram a regra porque os objectos que soltam grasnidos e ficam de boca aberta são os seus descendentes.
Mas esta regra falha se outra cria de pássaro entra para dentro do ninho, situação que foi engendrada pelos cucos.
Esta falha ou “tiro fora do alvo”pode também acontecer com os impulsos para a bondade, altruísmo, empatia, piedade, que o homem continua a desenvolver quando as condições já são diferentes das que existiam em tempos ancestrais.
Por outras palavras, as condições são outras mas a regra empírica manteve-se e, portanto, embora hoje as pessoas já não sejam nossos parentes, façam parte do nosso grupo, ou tenham possibilidade de retribuir, tal como a ave que por impulso continua a alimentar o filho do cuco, também nós continuamos a sentir o desejo de sermos bons e generosos.
É como o desejo sexual que não deixa de ser sentido mesmo quando a mulher é estéril ou toma a pílula e fica incapaz de reproduzir.
São ambos “tiros fora do alvo”, erros darwinianos: abençoados e inestimáveis erros.
Em tempos ancestrais a melhor forma da selecção natural assegurar a sobrevivência da nossa espécie foi instalando no cérebro não só a necessidade de acreditar, da qual já falamos num texto anterior, como também, o desejo sexual e a compaixão ou generosidade.
Estas regras que ditam estes impulsos para acreditar, para o sexo, para a generosidade e para a xenofobia, são muito anteriores à religião, às civilizações e aos vários contextos culturais que se limitaram mais tarde a regulá-los, condicioná-los, instrumentalizá-los, cada um à sua maneira, fazendo deles o cerne da vida dos homens ao longo de toda a sua existência.
Se voltarmos novamente a pôr a questão de saber qual a razão ou razões pelas quais somos bons, a resposta parece-nos ser agora clara, acessível à nossa razão, quase natural e, acima de tudo, nada ter a ver com qualquer religião.
TIETA DO AGRESTE
EPISÓDIO Nº 201
EPISÓDIO Nº 201
O engenheiro faz perguntas sobre a estrada. Desculpe-lhe a franqueza: aquele caminho de mulas não merece ser tratado sequer de estrada carroçável.
Trilha incerta, estreita picada repleta de lombadas, lamaçais, cacundas, valetas, crateras, em suma, uma escrotidão. Será necessário refazê-la por completo, modificando-lhe talvez o traçado, considerável mão-de-obra. Ascânio fornece alguns dados mas somente Jairo, proprietário da marinete, familiar da travessia, pode dar informação precisa, quando chegar de Esplanada.
Um sorriso zombeteiro desenha-se no rosto macambúzio de doutor Quarantini; na saída de Esplanada haviam deixado para trás o extraordinário veículo, tão obsoleto a ponto de ser ultrapassado pelas máquinas de marcha reduzida. Realmente, quem a leva e traz deve conhecer aquela buraqueira palmo a palmo. Ascânio recomenda-lhe prudência no trato com Jairo: o dono da marinete anda de mau humor desde que vira no jornal mural da Prefeitura o desenho dos magníficos ônibus previstos para o serviço de passageiros na nova estrada, essa que o engenheiro vai traçar e construir.
Falando nisso, solicita ao engenheiro um minuto do seu precioso tempo para admirar o jornal mural, antes de ir ver o trecho a asfaltar pelo qual, aliás, vem de passar pois fica na entrada da cidade. O barbudo, diante do desenho, concede outro sorriso, dúbio. Ascânio fica sem saber se devido à discutível vocação artística de Lindolfo ou ao entusiasmo, demonstrado no mural, pela Brastânio e seus efluentes progressistas. O visitante não comenta nem os desenhos nem as afirmações, em letras coloridas:
- Vamos indo. Quanto antes se comece, melhor.
Tem pressa. Exceptuando-se o doutor Mirko Stefano, pausado e calmo, todas as demais pessoas ligadas ao progresso não admitem perder tempo, estão sempre correndo, impacientes. Seguindo a careca para o jipe, Ascânio comprova que ele próprio deve mudar de ritmo. Distante da capital, habituara-se, nos últimos anos, ao lento compasso das horas de Agreste.
Jipe, caminhão e máquinas descem a rua, acompanhados pela massa crescente de basbaques. Na entrada da cidade param, despejando técnicos, capatazes e operários. Ascânio, os dois engenheiros e o fiscal da Companhia percorrem o trecho do caminho a ser pavimentado, a futura rua Antonieta Esteves Cantarelli.
- Esse pedacinho, só? – doutor Quarantini dirige-se aos capatazes:
- Não precisa armar as tendas, essa bobagem a gente factura hoje mesmo. Pensei que fosse coisa de vulto – fala para Ascânio: - Muito bem, meu caro, vamos meter mãos à obra. Quem sabe o amigo pode providenciar a gororoba para o pessoal e uns cascos de cerveja? E almoço para nós. Tem algum restaurante que preste? Pelo jeito… – Um desanimado gesto de resignação: - Qualquer coisa serve.
- Fique descansado, cuidarei disso. Que horas pensa voltar?
- No fim da tarde. Vamos fazer o possível para terminar antes do pôr-do-sol. Dá, não dá, Sante?
- Sante, possante mulato a mastigar uma ponta de charuto, confirma:
- Demais – Ordena aos homens: - Toca o bonde.
Cavaletes pintados de amarelo demarcam os limites onde o trânsito torna-se proibido, os curiosos são afastados, as grandes máquinas entram em acção.
Acotovelando-se por detrás dos cavaletes, sob o sol intenso, o povo acompanha atento o desenvolvimento do trabalho. A patrola levanta, espalha a terra e aplaina, sua pá enorme causa admiração. Ainda mais o rolo compressor, indo e vindo nos cem metros de caminho, sujeitando a terra solta, transformando-a em sólido leito de rua. Da rua Antonieta Esteves Cantarelli, curta mas asfaltada, primeira beneficiária do progresso trazido pela Brastânio.
Trilha incerta, estreita picada repleta de lombadas, lamaçais, cacundas, valetas, crateras, em suma, uma escrotidão. Será necessário refazê-la por completo, modificando-lhe talvez o traçado, considerável mão-de-obra. Ascânio fornece alguns dados mas somente Jairo, proprietário da marinete, familiar da travessia, pode dar informação precisa, quando chegar de Esplanada.
Um sorriso zombeteiro desenha-se no rosto macambúzio de doutor Quarantini; na saída de Esplanada haviam deixado para trás o extraordinário veículo, tão obsoleto a ponto de ser ultrapassado pelas máquinas de marcha reduzida. Realmente, quem a leva e traz deve conhecer aquela buraqueira palmo a palmo. Ascânio recomenda-lhe prudência no trato com Jairo: o dono da marinete anda de mau humor desde que vira no jornal mural da Prefeitura o desenho dos magníficos ônibus previstos para o serviço de passageiros na nova estrada, essa que o engenheiro vai traçar e construir.
Falando nisso, solicita ao engenheiro um minuto do seu precioso tempo para admirar o jornal mural, antes de ir ver o trecho a asfaltar pelo qual, aliás, vem de passar pois fica na entrada da cidade. O barbudo, diante do desenho, concede outro sorriso, dúbio. Ascânio fica sem saber se devido à discutível vocação artística de Lindolfo ou ao entusiasmo, demonstrado no mural, pela Brastânio e seus efluentes progressistas. O visitante não comenta nem os desenhos nem as afirmações, em letras coloridas:
- Vamos indo. Quanto antes se comece, melhor.
Tem pressa. Exceptuando-se o doutor Mirko Stefano, pausado e calmo, todas as demais pessoas ligadas ao progresso não admitem perder tempo, estão sempre correndo, impacientes. Seguindo a careca para o jipe, Ascânio comprova que ele próprio deve mudar de ritmo. Distante da capital, habituara-se, nos últimos anos, ao lento compasso das horas de Agreste.
Jipe, caminhão e máquinas descem a rua, acompanhados pela massa crescente de basbaques. Na entrada da cidade param, despejando técnicos, capatazes e operários. Ascânio, os dois engenheiros e o fiscal da Companhia percorrem o trecho do caminho a ser pavimentado, a futura rua Antonieta Esteves Cantarelli.
- Esse pedacinho, só? – doutor Quarantini dirige-se aos capatazes:
- Não precisa armar as tendas, essa bobagem a gente factura hoje mesmo. Pensei que fosse coisa de vulto – fala para Ascânio: - Muito bem, meu caro, vamos meter mãos à obra. Quem sabe o amigo pode providenciar a gororoba para o pessoal e uns cascos de cerveja? E almoço para nós. Tem algum restaurante que preste? Pelo jeito… – Um desanimado gesto de resignação: - Qualquer coisa serve.
- Fique descansado, cuidarei disso. Que horas pensa voltar?
- No fim da tarde. Vamos fazer o possível para terminar antes do pôr-do-sol. Dá, não dá, Sante?
- Sante, possante mulato a mastigar uma ponta de charuto, confirma:
- Demais – Ordena aos homens: - Toca o bonde.
Cavaletes pintados de amarelo demarcam os limites onde o trânsito torna-se proibido, os curiosos são afastados, as grandes máquinas entram em acção.
Acotovelando-se por detrás dos cavaletes, sob o sol intenso, o povo acompanha atento o desenvolvimento do trabalho. A patrola levanta, espalha a terra e aplaina, sua pá enorme causa admiração. Ainda mais o rolo compressor, indo e vindo nos cem metros de caminho, sujeitando a terra solta, transformando-a em sólido leito de rua. Da rua Antonieta Esteves Cantarelli, curta mas asfaltada, primeira beneficiária do progresso trazido pela Brastânio.