O tsunami e os ONGES
A NATUREZA É AO MESMO TEMPO BELA E MORTÍFERA.
Ontem, dia 26 de Dezembro, passado que foi precisamente um ano sobre a maior tragédia natural dos tempos modernos com mais de 250000 entre mortos e desaparecidos a televisão, quer a RTP quer a dos canais temáticos, fizeram-nos reviver, com um círculo no canto superior direito do ecrã para avisar os mais sensíveis, as imagens, as entrevistas e os relatos repetidos já dezenas de vezes por aqueles que tendo estado no centro daquele imenso desastre tiverem a sorte de escapar com vida.
Todas as palavras que têm a ver com dor, lágrimas, sofrimento, luto mas também de conformação e esperança terão sido utilizadas quase até à exaustão a propósito desta tragédia. No entanto, o tempo que é o grande remédio para recuperar das feridas da alma, irá progressivamente, transformar a dor em saudade, libertando o espírito para as tarefas e preocupações do dia a dia porque o instinto de sobrevivência, tal como a dor e a saudade é inerente à condição humana.
Sempre, ao longo da história dos seres vivos aconteceram cataclismos, digamos que é o preço que o planeta Terra cobra por facultar as condições que lhes permitem a existência. A Terra pertence ao cosmo e está sujeita às contingências das suas leis, os seres vivos são simples passageiros que em determinado momento iniciaram uma viagem para a qual não tiraram bilhete nem receberam garantias de espécie alguma, entraram e a partir desse momento ficaram por sua conta entregues à sua sorte.
Nós próprios, os últimos a entrar nesta aventura, beneficiámos de um cataclismo que eliminando da superfície da terra a espécie dominante na altura permitiu aos nossos pequenos e tímidos antepassados mamíferos a oportunidade de evoluírem até nós.
Decididamente, o nosso meio de transporte nesta viagem pelo espaço que um dia terá o seu fim, é perfeitamente indiferente à sorte dos passageiros mas nós somos os primeiros que disso temos consciência embora sem a humildade suficiente para perceber que neste contexto somos apenas um acessório insignificante por muito importantes que nos julguemos ser.
Repartidos entre a protecção divina e o recurso à utilização das novas tecnologias, dezenas de milhar de pessoas foram vítimas de um deus que não os protegeu e de uma tecnologia que por incúria, irresponsabilidade ou incompetência não foi utilizada com a alegação de que o último tsunami no Oceano Índico tinha ocorrido em meados do século XIX como se o calendário da Terra fosse o mesmo que o do homem.
Mas o que faltou em sensatez àqueles que tinham o poder para mandar instalar um sistema de alarme anti-tsunamis e não o fizeram, sobrou em oportunismo a alguns representantes de vários credos religiosos que logo chamaram a atenção dos fiéis para o que eles apelidaram de castigo divino à boa maneira da idade média, na linha de Sodoma e Gomorra do Velho Testamento, em que todas as desgraças eram aproveitadas para aumentar o temor dos crentes perante um deus implacável e dessa forma reforçar a autoridade e o poder dos dignitários das Igrejas junto dos seus seguidores. Um espírito amedrontado e em sofrimento torna-se mais frágil e carente e perante o seu “pastor” fica mais humilde e obediente, sempre assim foi e há-de continuar a ser. Prevalece o irracional: um deus que fosse responsável, à luz de uma qualquer justiça divina, pela morte indiscriminada de milhares de crianças, inocentes pela sua tenra idade, estaria a negar a sua própria divindade! Como é que estes homens conseguem ser “pastores” de outros homens? Mas em que mundo é que vivemos?
A mesma televisão que nos mostra, de uma forma muito perceptível com recurso a imagens trabalhadas, como é que uma placa tectónica pressionando outra placa que se lhe opõe, depois de ultrapassados os limites de resistência ao fim de muitos milhares de anos, galga sobre ela e em segundos cria um desnível no fundo mar fazendo com que a água que estava sobre a parte que se afunda caia de repente enquanto que a outra que estava por cima da parte que se eleva suba em simultâneo e em segundos, ao longo de centenas de quilómetros, incalculáveis massas de água põem-se em movimento e partem oceano fora à velocidade de 1000k/H avançando sobre os continentes perto quais abrandam por lhes faltar profundidade…pois bem, é esta mesma televisão, que no mesmo noticiário nos fala do castigo divino!
Viajamos todos na mesma “nave espacial” mas dentro dela circulamos a velocidades diferentes ou então, como nos comboios, em carruagens de categorias diferentes.
Mas deste cataclismo retenho uma imagem, duas personalidades e os Onges.
A imagem é a de um homem, indiano, que tendo perdido toda a família ou grande parte dela fica sentado no meio da estrada, amparando com o corpo a bicicleta, direita ao seu lado. Ele está ali mas não está, estará algures ou em parte alguma, o seu rosto está sereno, não chora, não expressa dor, apenas apatia, alheamento, não morreu mas sucumbiu, não reage, mais tarde irá recuperar e despertar para a vida e para a saudade dos entes queridos.
Depois temos o testemunho daquele senhor que foi demitido das suas funções de Director dos Serviços Meteorológicos porque anos antes emitiu um alarme falso de um tsunami e isto porque, diga-se de passagem, o tsunami não é uma ocorrência inevitável na sequência de um terramoto que tenha o seu epicentro no fundo dos Oceanos, há mais que uma variável e nem todas serão apreendidas no momento em que a terra treme e portanto, o procedimento correcto é que o alarme deve ser dado mesmo nas situações em que não havendo certezas há uma forte probabilidade de ele vir a acontecer, e foi isso que o escrupuloso e competente funcionário terá feito anos atrás.
Contudo, esse procedimento pôs de sobreaviso os turistas e desagradou aos empresários do sector que logo se queixaram ao governo por não defender os interesses da principal e quase única grande fonte de rendimento do país e o respectivo Ministro, coitado, com vontade ou sem ela, pôs o funcionário na rua por incompetente e irresponsável… mas o senhor não era uma coisa nem outra e por isso, quando a 26 de Dezembro tomou conhecimento da magnitude do marmoto imediatamente se apercebeu, e desta vez sem quaisquer dúvidas, de que se seguiria um tsunami. Telefonou para as autoridades, para as rádios dizendo quem era mas tudo foi infrutífero, não o conheciam e não lhe reconheceram credibilidade… terá conseguido ainda salvar umas dezenas ou poucas centenas de pessoas em vez das dezenas de milhar que poderiam ter sido salvas se lhe tivessem sido dado ouvidos. Será que por esta altura já foi reintegrado no seu posto de trabalho?
A terceira personalidade que muito justamente a reportagem não esqueceu foi uma jovem representante da guerrilha Tamil que impecavelmente vestida no seu uniforme camuflado sobraçava uma metralhadora que era quase maior que ela, com uma longa fita de balas que lhe pendia pelas costas, numa imagem que procurava impressionar pelo seu poder bélico.
Os Tamis são uma etnia de origem indiana e de religião Hindu que constituem no Sri Lanka, antigo Ceilão, uma minoria de 20% de um total de 20 milhões de habitantes em que o forte da população são os representantes das tribos Cingalesas, também oriundas da Índia mas de religião Budista.
Os Tamis desencadearam a luta armada pela independência nas zonas leste e norte onde vivem, em 1983 e desde então mais de 65000 pessoas morreram, centenas de milhar ficaram feridas e outras tantas emigraram.
A razão de ser desta luta, iniciada em 1956 quando o Cingalês foi declarado língua oficial do país, recrudesceu em 1972 pelo facto da nova Constituição ter consagrado também o Budismo como religião oficial ao mesmo tempo que punha termo às cláusulas de salvaguarda dos direitos das minorias.
Há propostas de negociação da paz, lançadas em 2002, para a Administração conjunta do território do povo Tamil mas elas não conduziram ainda a uma situação de convivência pacífica e daí a representante da guerrilha apresentar-se à entrevista com todo aquele aspecto bélico.
Mas o que me impressionou naquela mulher foi a imagem de uma pessoa endurecida pelos anos de luta, determinada, intransigente, talvez mesmo cruel, sem perceber muito bem como é que o mar que até ali tinha sido um fiel aliado permitindo-lhes rápidas deslocações nas pequenas embarcações a motor, lhes fazia agora aquela traição e olhando-o fixamente, metralhadora apontada, numa lógica de guerra subversiva, aguardava-se a todo o momento o disparo de uma rajada que punisse em definitivo aquele comportamento traidor.
A guerra faz disto às pessoas…
Depois, temos aquela menina, inglesa, aluna aplicada e que em boa hora os seus pais levaram de férias às lindas praias do extremo oriente como se fosse enviada por algum anjo bom e que se encontrava no lugar certo e à hora certa para salvar milhares de pessoas com o que aprendeu na escola e com o seu sentido de observação.
Vendo o mar recuar para além do que era normal imediatamente relacionou o que os seus olhos viam com o que lhe tinham ensinado e percebendo a transcendência do momento que se aproximava correu para tudo quanto era gente gritando-lhes para fugirem do tsunami que se aproximava. Um ano depois foi muito justamente homenageada.
Os Onges, tal como os Jarawas e os Sentinelenses estão em vias de extinção. Em 1901 eram 672,em 1921, 346 e neste momento, como resultado da infertilidade das mulheres, 42% em 1972 e a mortalidade infantil 40%, são apenas 51.
O antropólogo que os estuda e a eles tem acesso ficou em pânico e na primeira oportunidade voou de helicóptero para a ilha Andaman, onde eles vivem, receando não encontrar nenhum vivo, Receios infundados, os 51 Onges que restam estavam todos a salvo sem que o tsunami tivesse constituído qualquer perigo para eles, não por algum golpe fortuito de sorte mas apenas porque o previram a tempo e se dirigirem para a zona mais elevada da ilha ficando completamente a salvo.
Um deles, em conversa com o antropólogo que o visitou, explicou-lhe que há muito que os Onges sabem que quando a maré fica muito para alem dos limites da maré baixa é sinal que se aproxima um tsunami e portanto só têm que se afastar para os locais mais altos da ilha e aguardarem que tudo volte ao normal.
Mas quem são estes Onges?
Os Onges, juntamente com os Jarawas e os Sentinelenses constituem o grupo de humanos que geneticamente se encontram mais próximos daqueles nossos antepassados que entre 60 a 80000 anos saíram do continente africano para ocuparem todos os recantos do planeta. Após séculos de aridez, a chegada de chuvas frequentes criaram um corredor geográfico por onde os caminhantes ancestrais conseguiram alcançar a pé o Médio Oriente e daí, ao longo de milhares de gerações, toda a Europa e a Ásia.
Nesta longa e incrível jornada desenvolveram-se as etnias, os grupos linguísticos e ideológicos que hoje conhecemos, sendo que esta diversidade, tendo jogado ao longo do tempo como um trunfo adaptativo da nossa espécie, por outro, constituiu-se numa fonte de conflitos e de intolerância na medida em que as várias comunidades humanas se tornam etnocentricas e narcisistas considerando-se a si próprias, cada uma delas, “os filhos dilectos da Criação”.
Excepcionalmente alguns grupos, porém, depois de terem iniciado essa caminhada ficaram, por razões várias, retidos em nichos ecológicos de acesso difícil parando por aí o seu deambular pelo mundo e cruzando-se entre si, mantiveram-se fiéis a si próprios e às tradicionais e primitivas formas de viver e foram precisamente essas formas primitivas de vida que salvaram os Onges quando todos os restantes povos nativos vivendo nas margens das terras atingidas sucumbiram aos milhares ao tsunami.
Mas então qual o segredo? Como se explica que um pequeno povo, o mais primitivo de todos, se subtraia com toda a facilidade aos efeitos do tsunami quando os restantes povos, vivendo igualmente em contacto com o mar e do mar há gerações, não souberam ler os sinais da natureza, excepção feita à jovem estudante inglesa de férias naquelas praias?
Parece que a resposta se encontra nas características da cultura Xamânica a que pertencem os Onges como povo primitivo que é, e que serviu de substrato ao homem do paleolítico permitindo-lhe sobreviver até ao dealbar do sedentarismo, da agricultura e das civilizações vencendo com armas e utensílios rudimentares mas com inteligência, coragem e espírito de união dentro do seu grupo, uma natureza agreste, climas inóspitos e perigos de toda a ordem.
Escreve o etnobiólogo Rogério Favilla:
-“Reunidos em torno do fogo, os nossos ancestrais compartilhavam as aventuras do dia; planejavam e decidiam sobre os problemas e situações que se apresentavam e contavam, cantavam e dançavam para os jovens as histórias e experiências acumuladas. Na presença do fogo realizavam os seus rituais xamânicos com a mãe Natureza e o mundo espiritual. Ou seja, reunidos na segurança do calor e luz, os nossos ancestrais, em constante união, estreitavam os laços sócio-afectivos que permitiriam lançar a sua presença e influência nos variados espaços físicos que passariam a ocupar”.
“Os valores familiares, a reverência espiritual aos ancestrais e o respeito às manifestações da Natureza compõem o núcleo “ecopolítico” das sociedades tribais, nas quais os anciãos são profundamente respeitados: a experiência e méritos acumulados por eles são o fundamento da reverência e escuta dos mais jovens. Complementando este conjunto de respeitos totalmente estranhos à sociedade contemporânea, nas sociedades ancestrais as crianças são respeitadas em suas necessidades básicas e orientadas para a manutenção da harmonia comunal, ao mesmo tempo em que são estimuladas a desenvolver as suas capacidades individuais no máximo das suas possibilidades.”
“Todas as questões são discutidas e decididas em conselhos familiares e tribais, de volta ao redor do fogo sagrado, onde os participantes admitidos têm o pleno direito de manifestarem à vontade os seus pensamentos e, o que é mais importante ainda, de serem verdadeiramente escutados”.
“ É o momento de re-olhar e aprender os valores perdidos da celebração significativa, do êxtase espiritual transformador, da pedagogia da independência e liberdade pessoal aliada ao respeito natural aos ancestrais e à relação familiar e comunitária, valores que permitiram a sua sobrevivência e prosperidade nos ambientes mais inóspitos por incontáveis gerações e mesmo a sobreviverem no mundo contemporâneo”.
Será que a sobrevivência dos Onges ao Tsunami do dia 26 de Dezembro de 2004 não deveria fazer-nos reflectir sobre as virtualidades da cultura dos nossos ancestrais?