sábado, fevereiro 14, 2015

IMAGEM

Já tinham visto a lua em cima de um tripé?



Petula Clark - This Is My Song

Uma maravilhosa canção (1967). Sabem quem a escreveu? O grande e enorme Charlie Chaplin



Bombeiros de Mafamude - Gato Fedorento


Os outros... os que não quiseram ser pobrezinhos.
"Os 

Pobrezinhos"
















Na minha família os animais domésticos não eram cães nem gatos nem pássaros; na minha família os animais domésticos eram pobres. Cada uma das minhas tias tinha o seu pobre, pessoal e intransmissível, que vinha a casa dos meus avós uma vez por semana buscar, com um sorriso agradecido, a ração de roupa e comida.

Os pobres, para além de serem obviamente pobres (de preferência descalços, para poderem ser calçados pelos donos; de preferência rotos, para poderem vestir camisas velhas que se salvavam, desse modo, de um destino natural de esfregões; de preferência doentes a fim de receberem uma embalagem de aspirina), deviam possuir outras características imprescindíveis: irem à missa, baptizarem os filhos, não andarem bêbedos, e sobretudo, manterem-se orgulhosamente fiéis a quem pertenciam.

Parece que ainda estou a ver um homem de sumptuosos farrapos, parecido com o Tolstoi até na barba, responder, ofendido e soberbo, a uma prima distraída que insistia em oferecer-lhe uma camisola que nenhum de nós queria:

- Eu não sou o seu pobre; eu sou o pobre da minha Teresinha.

O plural de pobre não era «pobres». O plural de pobre era «esta gente». No Natal e na Páscoa as tias reuniam-se em bando, armadas de fatias de bolo-rei, saquinhos de amêndoas e outras delícias equivalentes, e deslocavam-se piedosamente ao sítio onde os seus animais domésticos habitavam, isto é, uma bairro de casas de madeira da periferia de Benfica, nas Pedralvas e junto à Estrada Militar, a fim de distribuírem, numa pompa de reis magos, peúgas de lã, cuecas, sandálias que não serviam a ninguém, pagelas de Nossa Senhora de Fátima e outras maravilhas de igual calibre.

Os pobres surgiam das suas barracas, alvoraçados e gratos, e as minhas tias preveniam-me logo, enxotando-os com as costas da mão:

- Não se chegue muito que esta gente tem piolhos.

Nessas alturas, e só nessas alturas, era permitido oferecer aos pobres, presente sempre perigoso por correr o risco de ser gasto - esta gente, coitada, não tem noção do dinheiro... de forma de deletéria e irresponsável.

O pobre da minha tia Carlota, por exemplo, foi proibido de entrar na casa dos meus avós porque, quando ela lhe meteu dez tostões na palma recomendando, maternal, preocupada com a saúde do seu animal doméstico:

- Agora veja lá, não gaste tudo em vinho... o atrevido lhe respondeu, malcriadíssimo:

- Não, minha senhora, vou comprar um Alfa-Romeo.

Os filhos dos pobres definiam-se por não irem à escola, serem magrinhos e morrerem muito. Ao perguntar as razões destas características insólitas foi-me dito com um encolher de ombros

- O que é que o menino quer, esta gente é assim e eu entendi que ser pobre, mais do que um destino, era uma espécie de vocação, como ter jeito para jogar bridge ou para tocar piano.

Ao amor dos pobres presidiam duas criaturas do oratório da minha avó, uma em barro e outra em fotografia, que eram o padre Cruz e a Sãozinha, as quais dirigiam a caridade sob um crucifixo de mogno. O padre Cruz era um sujeito chupado, de batina, e a Sãozinha uma jovem cheia de medalhas, com um sorriso alcoviteiro de actriz de cinema das pastilhas elásticas, que me informaram ter oferecido exemplarmente a vida a Deus em troca da saúde dos pais. A actriz bateu a bota, o pai ficou óptimo e, a partir da altura em que revelaram este milagre, tremia de pânico que a minha mãe, espirrando, me ordenasse:

- Ora ofereça lá a vida que estou farta de me assoar e eu fosse direitinho para o cemitério a fim de ela não ter de beber chás de limão.

Na minha ideia o padre Cruz e a Saõzinha eram casados, tanto mais que num boletim que a minha família assinava, chamado «Almanaque da Sãozinha», se narravam, em comunhão de bens, os milagres de ambos que consistiam geralmente em curas de paralíticos e vigésimos premiados, milagres inacreditavelmente acompanhados de odores dulcíssimos a incenso.

Tanto pobre, tanta Sãozinha e tanto cheiro irritavam-me. E creio que foi por essa época que principiei a olhar, com afecto crescente, uma gravura poeirenta atirada para o sótão que mostrava uma jubilosa multidão de pobres em torno da guilhotina onde cortavam a cabeça aos reis"

António Lobo Antunes (Livro de Crónicas)

Maginei um arraial, mal passa de um arruado.
TOCAIA GRANDE
(Jorge Amado)



Episódio Nº 174




















O velho Ambrósio, a velha Evangelina, conhecida por Vanjé.

Encarquilhados, magrelas, canosos: ele não passara dos cinqüenta, ela ainda não chegara lá. Dois velhos lavradores escorraçados de suas plantações, em busca de braças de terra onde semear e colher por conta própria.

 Fitavam a mata virgem alçada diante deles, pujante e antiga. Terras devolutas, era chegar e tomar posse. Não seria outro embuste, treita vil?

Por que o homem, um capitão, haveria de mentir? O horror ocorrera nos longes de Sergipe, terras cativas. Águas passadas.

Dinorá mantinha-se junto de Vanjé, a criança ao colo. Voltou- se e sorriu para o marido, João José, dito Jãozé. Terminada a peregrinação, iam poder sitiar os parcos teréns, finalmente assentar casa.

Pensara que nunca mais alcançariam pouso, sítio onde amanhar o solo, plantá-lo, criar porcos e galinhas. Criar o filho, engravidar de novo. Temera que o menino morresse na estrada, em seus braços: o enfezado gemia baixinho e devagar, sem forças para o choro.

O marido deu um passo à frente, colocou-se entre a mãe e a mulher; respondeu ao sorriso aflorando com os dedos o rosto lasso da companheira. Ele, João José, desaprendera de sorrir.

Antes dos acontecidos de Maroim - fora ontem ou decorrera muitos anos? - Dinorá povoava a casa de cantigas, face louçã, olhos vivos, garrida, alvoroçada. À noite, ele a tomava nos braços, riam e suspiravam juntos.

Dedos toscos, mão calosa e suja: o carinho inatendido não tocou apenas a face de Dinorá ampliando o sorriso tímido nos lábios ressequidos. Ungüento milagroso, derramou-se sobre as chagas, por fora e por dentro, no exposto e no recôndito.

As pontas dos dedos tocaram cada fibra de seu ser: bálsamo suave, chama voraz. Dinorá sentiu-se renascer, outra vez mulher para a labuta e a cama.

A formosura das cercanias não encobria a pobreza do lugar.
Jãozé queixou-se, macambúzio:

- Maginei um arraial, mal passa de um arruado. Tá nos começos.

- Que nem nós. Diz-que a terra é boa. - Retrucou Ambrósio levantando a voz para impor a confiança.





O Syriza










Não há nada que compense tanto como a satisfação do nosso orgulho, aquele que tem a ver com a nossa dignidade como pessoa e como povo.

Quando era ainda jovem e andava a estudar num Colégio interno, um colega meu, mais velho e mais crescido, ofendeu a minha mãe por palavras e eu dei-lhe um murro sem ele esperar, sem pré – aviso.

Depois levei uma tareia que só não foi maior porque ele não quis e eu fiquei muito feliz. O primeiro murro, o único de resto da minha parte, foi meu e a honra do convento tinha sido salva.

Este episódio que na minha vida remonta às calendas gregas lembra-me o Syrisa, que representa um país “pequenino e falido” no dizer do seu Ministro das Finanças, mas que bate o pé, protesta, expressa a sua vontade, diz o que sente e o que quer mesmo sabendo, lá no fundo, que talvez não tenha sorte nenhuma.

Aquelas pessoas que agora dão a cara nunca estiveram envolvidas em nenhum governo anterior, a bem dizer eles nem são bem um partido político. 

Essencialmente, eles representam o desespero e a humilhação que sente o seu povo e sabem que essa coisa de acabar com a austeridade é treta mas também sabem, igualmente, que há formas diferentes de a viver.

Esta que lhes foi imposta nos últimos anos por estrangeiros com a cumplicidade de alguns gregos que lá dentro executaram as políticas da austeridade, foi demasiado humilhante.

A multidão dos gregos foi caindo, um após outro, abatidos sem poder sequer pegar em armas. Muitos deles vagueiam hoje pelas ruas de Atenas como fantasmas de si próprios.

Eu gostava que a Grécia continuasse a fazer parte do Projecto Europeu. Mais que qualquer outro país da Europa, por razões históricas e acima de tudo culturais, mas eu percebo que o Syriza, se quiser ser coerente com as promessas feitas aos seus eleitores e que se continuam a manifestar em seu apoio em frente do Parlamento, irá ter muitas dificuldades em convencer os restantes parceiros europeus.

Se tiver que regressar ao Dracma com o Syriza a bater com a porta, com mais ou menos violência, as dificuldades, que é como quem diz, a austeridade, irá aumentar, ficarão sem crédito e os seus credores a “ver navios” e eles são muitos porque a Grécia tem a maior frota de navios mercantes do mundo.

Mas será uma austeridade repartida, assumida, de cabeça levantada, sem humilhação como quando eu, em miúdo, dei um murro nas trombas do graúdo e depois, muito feliz, levei uma tareia.

Então, sim, tudo estará nas mãos dos representantes do povo grego, do amor que eles tiverem à sua dignidade, da capacidade para se constituírem numa nova experiência para a Europa, mais que não seja para chatearem os bárbaros do Norte e o nosso Passos Coelho.

sexta-feira, fevereiro 13, 2015

Imagem

Não, infelizmente, este homem não transmite esperança, nunca a transmitiu. Como ele conseguiu obter a confiança dos portugueses em tantas eleições revela bem a natureza e as características do nosso povo. Vai sair de cena fiel a ele próprio, sonso e manhoso, num vazio de popularidade. A verdade é como o azeite, acaba por vir ao de cima.



Camada de Nervos - A Primeira vez


Roberta Flack - First Time Ever Saw Your Face (1972)

Esta voz e esta canção são um sonho... 2 milhões de visualizações do You Tube. Tem a minha idade. Que pena eu não ter tido a voz dela... Uma curiosidade: pelo estudo do seu ADN descende do povo dos Camarões, na costa ocidental de África a sul da Nigéria.


NO PSICÓLOGO










Marido e mulher vão ao psicólogo, após 20 anos de matrimónio. Quando são questionados sobre o problema, a mulher faz uma lista longa e detalhada de todos os problemas que teve durante os 20 anos de matrimónio: ... pouca atenção, falta de intimidade, vazio, solidão, não se sentir amada, não se sentir desejada... A lista é interminável.


Quando ela termina de ler a lista, o terapeuta levanta-se, aproxima-se da mulher, pede a ela que pare, dá-lhe um abraço e beija-a apaixonadamente enquanto o marido os observa, desconfiado... A mulher fica muda e senta-se na cadeira, meio aturdida...


O terapeuta dirige-se ao marido e diz-lhe: "Isto é o que sua esposa necessita pelo menos 3 vezes por semana. Pode fazê-lo?"
O marido medita um instante e responde: "Bem, posso trazê-la aqui às segundas e quartas... Mas às sextas tenho futebol".

Tu tá querendo mesmo que eu apare teu menino?
TOCAIA GRANDE
(Jorge Amado)



Episódio Nº 173

















- Eu? - Pegada de surpresa, Coroca se assustou, estremeceu

- Fiz muita coisa por esse mundo afora, tu nem pode avaliar, até de bexiguento já cuidei. Mas nunca aparei menino.

- Pois vá se preparando pra pegar o meu.

A velha emudeceu. Assistira a mais de um parto, aconteceralhe ajudar a aparadeira na hora do milagre trazendo bacia e água, os panos.

As parteiras, umas rainhas, competentes, compenetradas, o passo tranqüilo, o gesto medido, a palavra definitiva, sumidades nos povoados, nas mãos os poderes de Deus.

Quando voltou a falar, o fez com voz estrangulada, rouca de repente, provinda das entranhas:

- Tu tá querendo mesmo que eu apare teu menino? Tu pensa que sou capaz de fazer um parto? - Deixara de lado agulha e a linha, as peças a remendar.

- Vosmicê se dispondo pode fazer tudo o que quiser.

- Aparar um menino, ajudar ele nascer, ai, meu Deus bendito!

- Olhou as mãos magras, ossudas. - Possa ser que sim!

- Depois que eu parir, a gente vai ser comadre.

- Nós já é comadre desde à São João, tu se esqueceu?

Comadre de fogueira, agora nós vai ser de vida e morte.

Balançou a cabeça, a condenar-se:

- Dizer que eu tava querendo matar o pestinha antes mesmo dele nascer. Velha bronca, zureta!

Riram as duas mansamente, duas putas a quentar sol na porta da casa de madeira no arruado de Tocaia Grande, começo do verão.

Riso gratuito, o da velha e o da moça, igual viração alvoroçando a copa das árvores, arrepiando a correnteza do rio, riso de puro contentamento.

2

- Só pode ser aqui. -  Afirmou Ambrósio suspendendo a marcha.

A planície se estendia nos dois lados do rio, circundada pelas colinas abruptas. Espécie de cerrado raso, a vegetação rasteira e espessa cobria a margem esquerda completamente desabitada.

Na margem direita divisavam ao longe choupanas espalhadas ao léu, e mais próximo o correr de casebres alinhados à beira do caminho.

Avultavam contadas casas de telha, construções de madeira e uma de palha, vasto barracão no campo aberto:

- Bem o homem falou que era bonito. - Murmurou o velho.

- O Capitão. - Corrigiu a velha Vanjé. - Ele disse que era capitão. Capitão Natário.


O Polícia e

o Motorista













Fevereiro de 2015:

- “ Se eu mandasse vocês seriam todos exterminados. Não sabem 0 que eu odeio vocês, raça do caralho, pretos de merda.” Terá dito um agente da polícia da Esquadra de Alfragide na Cova da Moura, em Lisboa.

Ano de 1963:

- Destacamento militar do Lumbala, distrito do Cazombo, perto da fronteira com a Zâmbia.

- “Meu Alferes, está ali um motorista de camião que pede para lhe vendermos pão.”

- “Diz-lhe que aqui não se vende pão, isto é um quartel e não uma padaria. Põe mais um prato na mesa e convida-o para almoçar comigo.”

A mesa estava colocada cá fora, em frente da porta do meu quarto num edifício rectangular, repartido por dentro e com uma cobertura de zinco onde a tropa estava instalada.

A anterior guarnição construiu-o, a minha melhorou-o substancialmente dotando-o com casa de banho e chuveiros apesar do Zambeze passar ali a dois passos e ter sido, nos primeiros tempos, enquanto ele não encheu, o local ideal dos nossos banhos colectivos, uma espécie de recreio dentro de água.

No espaço do quartel as crianças luenas, rapazinhos, movimentavam-se à vontade, sentiam-se bem junto dos soldados a quem, muitos deles, prestavam serviços de lavagem da roupa.

Comiam connosco do rancho, frequentavam uma escola improvisada por um Cabo, o professor, e que eles levavam muito a sério.

Em certo momento do almoço, o camionista, homem de meia-idade, calejado das estradas infindáveis de terra batida, mãos enormes, virou-se na cadeira, apontou uma hipotética metralhadora ás crianças e disse, olhar frio: “matava-as a todas.”

Levantei-me da mesa, virei-lhe as costas, nunca mais o vi.

O coração de certos homens está cheio de ódio: o do polícia da Esquadra da Cova da Moura, um bairro social problemático de Lisboa e o camionista das estradas do fim-do-mundo do Leste de Angola.

Um ódio que é real e radica num passado longínquo de tribos inimigas, rivais, em que era preciso odiar para sobreviver.

Há minha volta, naquele quartel improvisado, dezenas de militares meus concidadãos, tal como o motorista, conviviam com aquelas crianças, alimentavam-nas, ensinavam-nas a ler e defendê-las-iam se as suas vidas estivessem em perigo.

Na Esquadra da Cova da Moura, bairro problemático, a voz daquele polícia era isolada. De certeza não era aquela a cultura e o sentimento da generalidade dos seus colegas e não podemos tomar a nuvem por Juno.

Os camionistas das estradas da Angola do tempo do colonialismo foram autênticos heróis e a vida de cada um deles dava um livro de aventuras.

Conheci as estradas, fiz muitos quilómetros nelas, esburacadas e ensopadas, a apanhar “pontapés nas costas” e conheci também alguns motoristas de camião.

O primeiro deles, tinha eu chegado há pouco ao Norte de Angola, nem o cheguei a ver. Estava reduzido a um tição, junto aos pedais da camioneta que tinha sido atacada e queimada.

O ódio não escolhe raças nem cor: é um fogo que arde cá dentro.

quinta-feira, fevereiro 12, 2015

IMAGEM

Como é que o burro se presta a este papel?...



Mixordia de Temáticas - Body Runing Health Pumping

Roberta Flack - Killing Me Sotly

Eis-me regressado ao passado e esta é uma das funções da música na vida das pessoas. 1973, cidade da Beira, Moçambique. Enchia-me o espírito de nostalgia ao ouvi-la, marcou-me essa fase.


Os Canibais

Os Canibais


















Um grupo de três antropólogos (um inglês, um francês e um português) parte numa arriscada expedição científica para estudar os hábitos de uma tribo tibetana de canibais, famosa pelos seus poderes prodigiosos e por usar a pele humana para fabricar as melhores pirogas do mundo.

Chegados à fronteira do território desta tribo terrível, de onde ninguém regressara vivo, os guias sherpas piraram-se, deixando os três intrépidos cientistas entregues à sua sorte. Preparados para o pior, estranharam a recepção fidalga e hospitaleira dispensada pelos canibais, que os estragaram com mimos de toda a espécie.

Só repararam que tinham estado no período da engorda quando o chefe da tribo lhes comunicou, com uma solene amabilidade, que eles iam ser submetidos a uma prova.

Cada cientista tinha o direito a um pedido - o mais extravagante que a sua imaginação concebesse. Seria devolvido à civilização, se eles conseguissem satisfazer esse o pedido. Caso contrário entraria imediatamente no circuito alimentar da tribo e a sua pele seria usada no fabrico de uma piroga.

"Quero um cognac Cornet Vintage de 1811, servido pela miúda do anúncio da Martini, trazida no Rolls Royce dos Beatles", pediu, bastante seguro de si, o cientista inglês.

Uma onda de agitação percorreu os canibais, que se afadigaram numa lufa-lufa de faxes e telefonemas. Duas horas volvidas, a menina da Martini, saída do célebre Rolls, patinava com a bandeja na mão em direcção ao inglês, que fleumaticamente saboreou o cognac pré-filoxera antes de ser atirado para o fundo da panela.

"Quero ver aqui, a desfilarem à minha frente, nuas e montadas em camelos albinos, as dez últimas Miss Mundo", exigiu o francês. A seguir à azafama habitual dos indígenas, o desejo foi satisfeito, o segundo cientista chacinado e os seus restos mortais transformados em salsichas e pirogas.

Chegada a sua vez, o português surpreendeu tudo e todos ao pedir um garfo. "Um garfo?!? Um garfo de ouro? O garfo cravejado de diamantes do imperador Bokassa?", interrogou atencioso o chefe dos canibais.

"Não, um garfo qualquer", precisou o português que, após ver o pedido atendido, desatou a furar furiosamente a sua pele, espetando-se com o garfo enquanto gritava repetidamente: -  "Ide fazer pirogas pró caralho !!!"
  

Não tem? - E vosmicê?
TOCAIA GRANDE
(Jorge Amado)

Episódio Nº 172


















Espreguiçou-se, colocou as mãos sobre o ventre para melhor exibi-lo; depois pegou a mão de Jacinta e a beijou.

Não havia jeito a dar, garrafada que resolvesse. Coroca assentiu com a cabeça, concordando. Decifrada a charada, desapareciam as razões para a conversa de sotaque - o vinagre fez-se mel para o colóquio:

- Tou vendo. É filho dele, não é?

Não era necessário pronunciar o nome para que Bernarda soubesse a quem Jacinta se referia e abrisse os lábios num sorriso triunfante:

- É de Padrinho, sim, vosmicê adivinhou. - Ergueu o rosto, despira-se da braveza e da contenda, os cabelos rolaram sobre os ombros, fios voaram ao sabor da brisa; Coroca a viu de frente para o sol, ufana. - Que mais posso querer no mundo, que mais posso pedir a Deus? Que nasça homem, parecido com ele.

- Tudo que é filho dele sai a cara do pai. Os de Zilda e os da rua.

- O meu vai ser igual nas feições e no brio. Cada vivente, por mais miserável e despossuído, por mais coitado e sozinho, tem direito a uma quota de alegria, não há sina que seja inteira de amargura. Não importa o custo, o preço a pagar.

A própria Jacinta pagara preços absurdos por um capricho, a chama de um desejo. Nunca se arrependera nem mesmo quando, após fenecerem a excitação e o júbilo, a solidão medrara cinzenta e acerba.

Afinal, que se leva da vida além da dolência e da ânsia, da agonia e da ventura de um xodó? Vale a pena correr o risco: por mais caro que seja o preço, será barato.

- Nesse mundo nada é gratuítes; tudo tem sua paga. Pode se pagar com a vida, já vi se dar. Se tu pegou menino porque teve vontade e se dispôs, ninguém pode se meter e condenar.

Só que, depois, não adianta tu se queixar, tem de agüentar calada.

- Me queixar? De quê? Me diga vosmicê! Não vê que tou feito doida, rindo pelos cantos?

Sobranceiro coração, riso solto, cabeça-de-vento.

- Cabeça-de-vento, tu precisa se prevenir pro parto. Até os bichos do mato se preparam pra parir.

- Tava esperando chegar mais perto pra combinar com vosmicê.
- Mais vale falar de uma vez. Onde tu vai desovar? Em Taquaras? Em Itabuna?

- Vou ter aqui mesmo.

- Aqui? Tu tá maluca? Aqui não tem nem parteira aparar o menino na hora dele nascer.

Bernarda voltou a sorrir:

- Não tem? E vosmicê?

Site Meter