A Espiral Imortal
Terminamos o texto anterior afirmando que nós, humanos, somos as máquinas de sobrevivência dos Replicadores que entretanto passaram a chamar-se Genes.
Mas não apenas as pessoas, todos os animais, plantas, bactérias e vírus, todos eles são máquinas de sobrevivência dos Genes e o número dessas máquinas é de tal forma grande que até mesmo o número total de espécies é desconhecido.
Esta enorme diversidade de espécies de seres vivos a que chamamos de Biodiversidade é uma consequência de erros de cópia no processo de reprodução que, posteriormente, a selecção natural vai determinar, pela competição que se estabelece entre eles, quais os mais aptos que continuam gerações fora e os que perdem essa luta e ficam pelo caminho.
Falando apenas de insectos, o número actual de espécies tem sido estimado em cerca de 3 milhões e o número total de insectos individuais poderá atingir um milhão de biliões.
As diferenças entre si apresentadas pelas máquinas de sobrevivência é enorme, não só externa como internamente.
Um rato não se parece com um polvo e ambos ainda se parecem menos com um carvalho ou uma oliveira mas todos são máquinas de sobrevivência com uma química que é bastante semelhante e comum a todos eles, particularmente ao nível dos genes, que são todos do mesmo tipo.
Existem, no entanto, no mundo, muitas “maneiras diferentes de ganhar a vida” e os Replicadores construíram uma gama muito vasta de máquinas dentro das quais se preservam e que, com este objectivo, as exploram.
Um macaco é uma máquina que preserva os genes em cima das árvores, um peixe é uma máquina que preserva os genes dentro de água e existe até uma minhoca pequena que preserva os genes em suportes de cortiça para copos de cerveja alemães.
O ADN trabalha de maneiras misteriosas.
Uma molécula de ADN é demasiada pequena para poder ser vista a olho nu e a sua forma exacta consiste num par de cadeias de nucleótidos, ambas torcidas numa espiral muito elegante que é chamada de «hélice dupla» ou a «Espiral Imortal».
Os nucleótidos, por sua vez, têm apenas 4 variedades: adosina, timidina, citosina e guanina que, abreviadamente, se denominam A, T, C e G e são exactamente os mesmos em todas as plantas e em todos os animais variando apenas na ordem pela qual se dispõem.
Por exemplo:
- Um bloco construtor G de um homem é, em todos os seus detalhes, idêntico a um bloco construtor G de um caracol mas a sequência de blocos construtores no homem é diferente não só da do caracol mas também (em muito menor grau) da de outro homem a não ser que se trate de um gémeo idêntico.
O nosso ADN vive no interior do nosso corpo, em nenhuma parte em particular mas distribuído pelas células, presente em cada uma delas, num total de cerca de 1.000 biliões.
Em todas elas, lá está uma cópia do ADN daquele corpo.
Bem vistas as coisas, o ADN pode ser considerado um conjunto de instruções sobre como construir aquele corpo escritas no alfabeto A, T, C, G dos nucleótidos.
Supondo que o nosso corpo é um prédio imenso, em cada quarto existe uma estante com os planos do arquitecto para a construção do prédio inteiro, planos esses que são constituídos, no caso do homem, por 46 volumes, noutras espécies será um número diferente.
À estante chama-se «Núcleo» e a cada “volume”, «Cromossoma» que, sendo visível ao microscópio, se apresenta como fios longos com os Genes, finalmente, alinhados ao longo deles segundo uma ordem precisa.
Aos Genes chamaremos também, metaforicamente, de «Página».
Desnecessário é dizer que não há nenhum “arquitecto”: as instruções do ADN foram compiladas pela selecção natural.
As moléculas do ADN realizam duas coisas importantes:
- Em primeiro lugar, replicam-se, fazem cópias de si mesmas e agora de uma forma muito mais eficiente do que nos tempos dos primeiros Replicadores.
- Em segundo lugar, supervisionam a construção porque uma coisa é ter os planos para construir o corpo e outra é pôr os planos em prática e aqui intervêm a imensa variedade de moléculas proteicas.
Estas moléculas não só constituem grande parte do suporte material do corpo como também exercem um controle importante sobre todos os processos químicos que ocorrem no interior da célula.
Saber como tudo isto conduz a um bebé é uma história que ainda vai levar muito tempo a ser desvendada mas uma coisa é certa:
- Características adquiridas não são herdadas. Não importa quanto conhecimento e sabedoria adquirimos em vida, nem uma só gota será transmitida aos nossos filhos por meios genéticos; cada nova geração vai ter de começar do zero porque, não nos esqueçamos, o nosso corpo é a forma de os genes se preservarem inalterados.
A circunstância dos Genes controlarem o desenvolvimento embrionário significa que, pelo menos parcialmente, eles passam a ser responsáveis pela sua sobrevivência no futuro na medida em que ela depende da eficiência dos corpos que habitam e ajudam a construir.
Cada vez mais a selecção natural favorece os Replicadores que sejam bons a construir máquinas de sobrevivência, genes que sejam hábeis a controlar o desenvolvimento embrionário.
Longe vão os tempos da selecção automática entre moléculas vivas de acordo com a sua longevidade/fecundidade/fidelidade de cópia, agora as coisas já não são tão simples como eram, quando bastava aos Replicadores, para se protegerem a si próprios, usarem meios químicos ou erguerem uma simples barreira física de proteína à sua volta.
Nos últimos 600 milhões de anos os Replicadores alteraram completamente características fundamentais do seu modo de vida, tornaram-se altamente gregários.
Uma máquina de sobrevivência é um veículo que contém não um mas milhares de genes e a manufactura de um corpo é um empreendimento cooperativo tão complexo que é quase impossível distinguir a contribuição de cada gene.
Este, terá efeitos sobre diferentes partes do corpo, uma certa parte do corpo será influenciada por muitos genes e o efeito de qualquer deles dependerá da sua interacção com todos os outros e alguns comportam-se como Genes-Directores que controlam a acção de um grupo de outros genes.
Alcançaram triunfos tecnológicos notáveis relativamente às suas máquinas de sobrevivência tais como o músculo, o coração e o olho que evoluíram independentemente, por várias vezes.
A Reprodução Sexuada teve como efeito misturar e baralhar os genes, os seus caminhos cruzam-se e voltam a cruzar-se constantemente ao longo de gerações.
A vida física de qualquer molécula de ADN é bastante curta, talvez uma questão de meses, não mais que a duração de uma vida mas, teoricamente, ela pode viver, na forma de cópias de si mesma, durante 100 milhões de anos.
Nós, quando tivermos cumprido a nossa missão somos postos de lado mas os genes são cidadãos do tempo geológico, os genes são para sempre, como os diamantes são eternos mas não da mesma forma.
Os diamantes são cristais que permanecem como padrões inalterados de átomos enquanto que as moléculas de ADN não têm esse tipo de constância.
Mas esta capacidade da vida de um gene se prolongar, através das suas próprias cópias por milhões de anos é «potencial».
É verdade que ele pode viver durante todos esses anos mas muitos genes novos não passam sequer da primeira geração.
Um gene novo “com futuro” tem que exercer um efeito sobre o desenvolvimento embrionário que contribua para que a sua máquina de sobrevivência se revele mais eficiente em termos de sobrevivência.
Suponhamos que um gene novo contribui para pernas mais compridas num corpo que precisa de correr muito para escapar aos seus predadores, naturalmente, esse seria um gene “bom” porque ajudaria à sobrevivência da sua “máquina”.
Mas se esse gene aparecesse numa toupeira, as pernas compridas só iriam atrapalhar e seria então considerado “mau” e posteriormente eliminado porque toupeiras com pernas mais compridas não sobreviveriam.
Não esqueçamos que os «erros de cópia» são aleatórios e na maioria esmagadora dão lugar a casos de insucesso.
Mas esqueçamos os “genes das pernas compridas” e pensemos antes em qualidades universais que fazem um gene “bom” ou seja, de vida longa, ou um gene “mau”, de vida curta.
Uma dessas propriedades universais do gene “bom”, (de vida longa) dá o título ao livro de R. Dawkins: o Gene Egoísta por oposição ao Altruísta.
Em síntese, diz Richard Dawkins:
- Os Genes competem directamente com os seus “alelos”(formas alternativas do mesmo gene) pela sobrevivência. Uma vez que esses “alelos” do “pool” (espécie de população) são seus rivais na conquista de posições nos cromossomas das gerações futuras, qualquer Gene que se comporte de forma a aumentar as suas probabilidades de sobrevivência no “pool” genética à custa dos seus “alelos” tenderá, por definição, a sobreviver, logo, o Gene é a Unidade Básica do Egoísmo.
Mas, se construir um bebé é uma tarefa cooperativa e se cada gene precisa de vários milhares de outros genes para completar a sua tarefa como se concilia isto com a ideia de que eles são agentes livres e interesseiros?
Vejamos as coisas através de um exemplo:
- Um remador não ganha sozinho as regatas de Oxford ou de Cambridge, precisa de oito colegas e no seu lugar cada um é especialista: o proa, o timoneiro, o voga, etc.
Remar é um empreendimento cooperativo mas alguns dos homens são melhores do que outros.
Suponhamos então que treinador tem que escolher a sua equipa ideal a partir de um “pool” de candidatos em que alguns são especialistas na posição de proa, outros de timoneiro e por aí fora e procede da seguinte forma:
- Constitui equipas experimentais com os vários especialistas em cada lugar e faz com que elas compitam entre si e no fim de várias semanas fica claro que o barco vencedor terá tendência para conter os mesmos indivíduos;
- Outros indivíduos que aparecem consistentemente nas equipas mais lentas serão rejeitados;
- Pode acontecer que um remador excepcionalmente bom seja membro de uma equipa mais vagarosa ou por inferioridade dos outros membros da equipa ou por simples pouca sorte, como seja apanhar vento contrário muito forte e por isso, só em média, é que os melhores se encontrarão no barco vencedor.
Transportando este exemplo para a genética, os remadores são os genes, os concorrentes a cada lugar no barco serão os alelos potencialmente capazes de ocupar a mesma posição no cromossoma e remar rapidamente será construir um corpo que seja bem sucedido na luta pela sobrevivência, sendo que, nesta luta; todos os remadores, ou sejam, todos os genes estão no mesmo barco.
Finalmente, o vento que dificulta a progressão do barco é o meio ambiente externo.
No corpo de uma criança muitos genes bons estão na companhia de um gene letal que mata o corpo durante a sua infância e a criança, ao morrer, mata o gene letal que é destruído com tudo o resto mas, muitas outras cópias de genes bons continuam a viver em corpos onde o gene letal não está presente.
Os genes letais terão, assim, tendência para serem eliminados da “pool” de genes mas, se sua acção for tardia, isto é, se ele exercer a sua influência negativa numa fase avançada da vida do corpo este já terá procriado e esse gene letal terá sido bem sucedido porque cópias suas aparecerão pelo menos em alguns descendentes.
Vamos, portanto, supor um gene que faça desenvolver um cancro num corpo velho, um outro que faça desenvolver um cancro num corpo de um adulto jovem e, finalmente, um terceiro que actuasse em crianças jovens.
O primeiro poderia ser transmitido a muitos descendentes, o segundo a alguns, bastante menos, e o terceiro, simplesmente, não se transmitiria.
Temos, assim, que a selecção natural favoreceu genes de acção letal simplesmente porque são de acção tardia.
Apenas por especulação, se quiséssemos prolongar a duração da vida humana, impediríamos a reprodução antes de uma certa idade, por hipótese, 40 anos.
Depois, ao fim de alguns séculos essa idade seria aumentada para os 50, e assim por diante até que a longevidade se prolongasse por vários séculos…pelo menos até que a deterioração senil acabasse por produzir os seus efeitos.
Finalmente, a reprodução sexuada.
Porque terá surgido o sexo?
Propagar apenas 50% dos nossos genes quando poderíamos fazer brotar filhos que fossem a nossa réplica exacta com 100% dos nossos genes?
É exactamente isso que faz o pulgão verde do sexo feminino que pode gerar descendentes vivos do mesmo sexo, sem pai, ou então o olmo em que podemos encontrar uma floresta de olmos em que os rebentos se mantêm ligados à planta “mãe” podendo ser considerada um único indivíduo.
E portanto a pergunta é: se os pulgões e os olmos não o fazem porque fomos, o resto de nós, ao ponto de misturar os nossos genes com os de outra pessoa antes de fazermos um bebé?
Não será isto uma perversão da replicação directa?
Para que serve o sexo?
Richard Dawkins afirma que para um evolucionista esta é uma pergunta de resposta muito difícil e a maioria das tentativas sérias para lhe responder envolvem raciocínios matemáticos muito sofisticados.
Mas ele avança com a explicação de que devemos considerar o indivíduo como uma máquina de sobrevivência construída por uma confederação efémera de genes de vida longa e, sendo assim, a “eficiência” do ponto de vista do indivíduo é considerada irrelevante.
A sexualidade versus assexualidade será considerada um atributo controlado por um único gene, tal como olhos azuis versus olhos castanhos.
Um gene “para” sexualidade manipula todos os outros para os seus próprios fins egoístas e se a sexualidade beneficiar um gene para a reprodução sexuada isso será o suficiente para a explicar não interessando se ela beneficia ou não o conjunto de genes do indivíduo no seu todo.
Do ponto de vista do gene egoísta o sexo, afinal, não é assim tão bizarro… ou não fosse ele, o Gene, a Unidade Básica do Egoismo.